11.10.05

Silêncios

Para além de perigoso, o mundo está barulhento. A recente campanha autárquica é um bom exemplo. Uma personagem de Shakespeare em Tanto Barulho por Nada diz que o silêncio é a única forma de realmente exprimir a felicidade pois pequena seria ela ( a nossa felicidade ) se a pudéssemos descrever em palavras. Já George Steiner, ao falar do holocausto, diz que o silêncio é antes a única forma de exprimir o que é tão terrível que não é susceptível de ser revelado através das palavras. Embora distantes e quase opostas, estas duas leituras partilham uma evidência: o silêncio é o único recurso que temos quando as palavras já não chegam.
Vários sentidos podem ser associados ao silêncio: ele pode ser um instrumento de resistência e uma forma de cumplicidade; pode exprimir um estado de alma e esconder um segredo; pode ser um instrumento de reflexão e uma forma de acção. A conclusão é simples: o silêncio é a única linguagem pessoal, quer apenas a nós pertence. Todavia, tal não significa que seja um instrumento para um refúgio em nós próprios. Ele é também um meio de comunicarmos algo aos outros. O Alberto Caeiro de Fernando Pessoa diz que o silêncio deve ser antes utilizado para procurar sentir sem pensar pois pensar é não compreender um mundo que apenas foi feito para sentir.
Existirá hoje mais ou menos silêncio? Está banalizada a sensação de indiferença ou de intolerância. Cruzamo-nos na estrada com carros que têm o volume do som no máximo, os donos dos cachorros são incapazes de mandar calar os animais que ladram a toda a hora, os nossos vizinhos oferecem-nos concertos musicais sem o desejarmos, as próprias igrejas ( associadas tantas vezes ao silêncio ) introduziram em fundo a música sacra e cada vez mais as palmas. Deste modo, o silêncio não tem vida própria. Uma análise rápida ao nosso tipo de vida moderna, feita de constantes mutações e vivida a um ritmo alucinante, procurando experimentar tudo no mais breve espaço de tempo, tem o reverso da medalha no “outro Lado”, os dolorosos fins, a insatisfação permanente e uma incerteza eterna. Recentemente, o “homem do piano” assumiu uma postura silenciosa e ao nosso lado existem cada vez mais pessoas que abandonam tudo por uma vida meditativa e isolada. A vida em silêncio parece ser a única alternativa a uma vida sem silêncio.
O famoso maestro italiano Claudio Abbado realça a importância do silêncio no contexto de uma música: para ele, o silêncio não serve apenas para assinalar o fim de um frase musical e o início de outra, ao contrário, é parte da música alterando a nossa percepção do que estava antes e condicionando o que vem a seguir. Não se passará a mesma coisa com a vida? Eis um exemplo: no cinema, tempo narrativo e tempo real raramente coincidem; se os anos passam em breves segundos, basta um silêncio para provocar uma eternidade. Este momento é suficiente para criar uma série de perturbações: o espectador tem dúvidas e torna-se ansioso; numa expressão, antecipa o desconhecido. Na literatura o silêncio é representado pela pontuação. Através desta, reforçamos a importância do que queremos ou não transmitir. Voltando à música, ficou famosa uma composição denominada 4´33`` da autoria de John Cage e que é apenas silêncio. O seu objectivo não é a imposição do silêncio mas provar que o silêncio não existe e que há sempre alguns sons que escutamos. Contudo, estes sons têm tanto de real como de imaginário.
O silêncio é associado a uma personalidade inteligente ( “saber estar calado” )? Engano, pode estar calado porque não tem nada para dizer. Eça dizia que existiam muitos génios que passavam a vida em silêncio: ”Toda a gente diz que é um génio”. ”Mas já ouviste ou leste alguma coisa dele?”. “Não, mas toda a gente sabe que é um génio. É um génio tão grande e tão insatisfeito que prefere não escrever nada”.
Que opção tomar? Optar pelo silêncio ou adoptar o ruído? Provavelmente, colarmo-nos às duas: apreciar em silêncio tudo o que é merecido e expressarmo-nos em situações onde não devemos, de forma alguma, ficar calados. Um momento para viver em silêncio e outro para trocar umas palavras. A fronteira? Um silêncio...
( Nova Aliança, 14/10/2005 )