14.12.05

Os acidentes de trânsito e as mentiras dos políticos

1. Como muitos portugueses, não pude deixar de registar as imagens ( repetidas à exaustão pelos nossos jornais televisivos ) do jovem de 21 anos que entrou no tribunal como potencial recluso e acabou por sair como um herói, devidamente aclamado pelos colegas, familiares e amigos. Conte-se a história de forma breve: ele conduzia sem carta porque chumbou uma vez no exame de código e desistiu; todavia, nunca desistiu de conduzir, primeiro motos e depois carros; foi multado dezenas de vezes que, agora em tribunal, somaram trinta e cinco condenações nesta primeira leva e três anos de prisão, com pena suspensa por decisão do juiz. Como existem mais condenações em lista de espera, talvez o encaminhem mesmo para trás das grades. Talvez…
Este jovem feriu ou matou alguém? Não. Provocou alguns estragos materiais? Não. Constitui uma ameaça maior que muitos condutores devidamente encartados? Provavelmente não. A questão não é todavia esta. A estrada não é propriamente o cenário de um jogo de velocidade que podemos instalar nos nossos computadores ou jogar no ecrã de televisão. Estando em causa vidas humanas, deve evitar-se o autodidactismo sob pena de vivermos todos no reino do absurdo.
A verdade é simples: este jovem transgrediu a lei. E se é verdade que existem alguns habilidosos desencartados, todos sabemos que também existem os aventureiros perigosos que colocam em perigo a sua vida e a dos outros. Segundo números de 2004, 72 vítimas mortais e 266 feridos em acidentes de viação conduziam sem carta. Juntamente com os que conduziam com ela suspensa ou caducada, perfaziam 1523.
Como conseguiu este jovem conduzir durante tanto tempo sem carta, com autuações múltiplas, sem que houvesse alguém que o conseguisse deter? De frente para os holofotes, ele próprio confessou que sempre conseguiu escapar ao controlo policial e, por isso, foi somando condenações. No meio da euforia dos que o esperavam e aplaudiam, premiando a nossa irresponsabilidade, o jovem saiu do tribunal sem ter sido condenado sequer a uma pena efectiva de carácter social, cumprindo, por exemplo, algum tipo de trabalho comunitário como ajudar num centro de solidariedade ou numa biblioteca, ou obrigá-lo mesmo a tirar a carta sob vigilância. A mensagem que daqui sai e é transmitida para a sociedade não pode ser mais errada. Significa que vivemos à mercê da sorte. A nossa sobrevivência depende da sorte e da audácia com que desafiamos o destino. E se todos nós temos o nosso destino, o nosso fado, temos também, pelos vistos, a nossa irresponsabilidade total. E também a desafiamos, e também a repetimos, e também a lamentamos. Muitas vezes em vão, quase sempre tarde de mais.
2. A mentira instalou-se na nossa vida política. O secretário-geral de um partido político chama mentiroso a um colega de partido e candidato à Presidência da República. O candidato responde na mesma onda e chama mentiroso ao primeiro-ministro de Portugal. Outro candidato a Belém, Francisco Louçã, também ele deputado, diz que um secretário de Estado mentiu aos portugueses e foi realmente destituído de um cargo autárquico que ocupava por excesso de faltas, o referido secretário de Estado nega tal acusação e chama mentiroso ao tal candidato. Em que ficamos? Muito claramente e sem nenhuma dúvida tiramos a seguinte conclusão: duas criaturas que ocupam altas funções de Estado e que deveriam constituir um verdadeiro exemplo aos olhos dos portugueses são mentirosos. Continuará a existir esperança no ser humano? A propósito disto convirá recordar uma história antiga passada na barra de um tribunal entre um jovem acusado de um crime e uma juíza impaciente por mudar o mundo e arrastar-nos a todos consigo: a juíza perguntou ao rapaz se ele achava bem o que tinha feito e ele respondeu que sim; depois, se estava arrependido do que fizera e ele disse que não; de seguida, se ele voltaria a fazer o mesmo e ele garantiu que sim; finalmente, se ele não achava estranho dar tantas respostas conformadas, ao que ele respondeu que não. Confortemo-nos, pois…

Nova Aliança, 9 / Novembro / 2005