25.1.06

O Mundo da Informação

1. Nunca como hoje circulou no mundo inteiro tanta informação. Serge Proulx, sociólogo e especialista em ciências da comunicação que esteve recentemente em Lisboa para proferir uma conferência sobre a Cibernética, considera ser necessário refundar a educação para enfrentar a overdose de informação. Existirá uma relação directa e automática entre sobrecarga de informação e crescimento de comunicação? Proulx tem dúvidas e evoca o fundador da cibernética, o matemático Norbert Wiener, que aplicou às sociedades um dos princípios da termodinâmica e acreditava que a circulação da informação era a única hipótese de a humanidade sobreviver ao caos. Wiener opõe informação e entropia, pela aproximação ao segundo princípio da termodinâmica: a informação é o que dá forma à organização do real e a entropia é a desorganização. Proulx explica numa das suas obras que a cibernética colocava as máquinas e os seres humanos num plano de igualdade, uma vez que ambos gerem a informação que existe no meio ambiente. Foi quando desenhou um sistema de defesa anti-aérea que disparava antecipando o ponto para onde o alvo iria escapar que Wiener começou a desenvolver o seu conceito de máquina inteligente. Essa máquina era uma máquina retroactiva, ou seja, que tinha um mecanismo de feedback. Proulx, num livro do qual é co-autor com Philippe Breton ( A Explosão da Comunicação, Bizâncio, 1989 ) explica como a crença na informação é, para Wiener, uma resposta à violência da II Guerra Mundial e ao totalitarismo, mas também uma reacção à investigação científica dominada pelos militares, como aconteceu durante o conflito de 39-45 e nos anos da guerra fria. A Internet ajuda-nos a perceber que o problema da comunicação é omnipresente. Hoje em dia, tudo é comunicação. Depois da máquina energética e da máquina mecânica, este é o tempo da máquina informacional. Sinal dos tempos.

2. Uma leitura atenta dos jornais é uma óptima lição para nos actualizarmos sobre um discurso rico em lugares-comuns de mau gosto, em chavões falsamente tecnocráticos e em tiques ideológicos baratos. Políticos, economistas, jornalistas têm-se especializado numa “gíria” de pendor “novo-rico”. Aí vão alguns exemplos: “priorizar”, “calendarizar”, “implementar”, “derrapagem”, “tabu”, “incontornáveis”, “elencar”. “Enumerar” e “enunciar” são hoje expressões quase jurássicas que um candidato a político definitivamente não usa. “Atempadamente” é um vocábulo da moda, por oposição a “oportunamente”, “no prazo”, “a seu tempo”, “a tempo”, “em tempo” ou “em tempo útil” infelizmente esquecidas.
É impressionante a contribuição dada à língua portuguesa por todo o tipo de criaturas com acesso aos meios de comunicação social. Quando existe um microfone por perto, já sabemos de antemão estar a chegar uma catrefada
( vocábulo giro que se deve poder utilizar aqui ) de “prontos” e outras palavras inventadas para compensar o desconhecimento. “Descontinuar” é uma palavra que está na moda por oposição a “interromper” caído no esquecimento. Alguém dizia que quando um político substitui a palavra “subsídio” por “subvenção”, apenas pretende inovar no plano vocabular o que não sabe mudar na política. Obviamente não se coloca em causa o número de leituras em francês, nem sequer o profundo conhecimento que os portugueses têm da palavra “subsídio”. Trata-se apenas de um desejo de “dar ares”. Ensina-se na escola que o discurso técnico é usado em certas profissões e em certos meios para transmitir certos conceitos ou noções. Facilmente se conclui ser necessária a sua utilização e quem o conhece não deve ser impedido de o usar. O problema reside no facto de alguns utilizarem palavras sem saber bem o que significam e apenas nos quererem impressionar com a sua utilização. Ao fim de tantos anos a utilizar expressões em inglês, os nossos economistas continuam a mostrar-se incapazes de as traduzir para português. Até porque não estando a falar uns para os outros mas para todos nós, através dos media, exigir-se-ia um maior esforço no sentido de uma maior precisão dos termos aplicados. Politiquês, economês e jornalês? Talvez, mas na dose certa. Aquilo que em culinária se apelida de de q.b.

Nova Aliança, 20 / Janeiro / 2006

Os Inquéritos em Portugal

Qual a finalidade dos inquéritos em Portugal? Esta é realmente uma boa pergunta mas duvido que existam duas respostas verdadeiras. Levi, dois anos, morreu em Maio de 2005 por negligência da mãe na sequência de uma decisão do Tribunal de Menores que decretava a entrega “gradual” da criança ao pai; Vanessa, cinco anos, morreu no mesmo mês, queimada viva pelo pai e pela avó, enquanto a mãe se queixava de burocracia em burocracia; Daniel, seis anos, surdo mudo e com diversas outras deficiências, morreu em Setembro, espancado até à morte pelo padrasto, depois de ter passado por três hospitais de Lisboa, sem que alguém denunciasse a situação; Joana, dez anos, morreu em Setembro de 2004, assassinada pela mãe e pelo tio; Catarina, dois anos e meio, morreu em Outubro de 2003, devido a torturas praticadas por uma tia e pelo pai, ao qual fora devolvida pela Comissão de Protecção de Menores…
Os exemplos podiam continuar até ao final deste texto e no momento em que escrevo se sabe ainda se Fátima Letícia, a bebé que encontrou em coma depois de ter sido barbaramente agredida pelos pais, sobreviverá. Certo, certo é que ficará com lesões neurológicas irreversíveis. No meio de tudo isto existem os tais inquéritos dos inquéritos dos inquéritos… Como compreender então a frase de Armando Leandro, presidente da chamada Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco segundo a qual “ a comissão agiu bem ao fazer tudo para que o bebé se mantivesse no seu seio natural de vida”. Eis o primeiro “azar” de Fátima Letícia: manter-se no seu “meio natural de vida”… Ele próprio explicava que “desta vez, o sistema até funcionou, porque houve uma avó que tentou estar sempre presente e se preocupou, tendo denunciado tudo o que se passou”. Foi o segundo “azar” da criança, o sistema ter funcionado.
Vejamos o funcionamento do sistema: entre 4 de Novembro e 9 de Dezembro, a bebé esteve internada três vezes no Hospital de S. Teotónio em Viseu, a 12 de Novembro, na segunda hospitalização, o Hospital detecta “sinais evidentes de negligência grave” e alerta a Comissão de Protecção de Menores; a 9 de Dezembro, já em coma, a bebé é de novo levada ao hospital. Ao mesmo tempo, as técnicas da Comissão organizaram reuniões para “reconciliar a família” ( a avó com o pai, já com um registo criminal por abuso de menores que ninguém averiguou, e a mãe, com um ligeiro atraso mental ), tendo inclusivamente feito uma visita, sem encontrar nada digno de registo, nem sequer marcas de abusos continuados no corpo da criança ( incluindo penetração sexual com objectos ) desde os primeiros dias de vida.
Estes “azares” e estes “sistemas”, a repetição destes “inquéritos” e destes “jogos de palavras” conduzem-nos a conceitos como “negligência” e “indiferença” pelos direitos dos outros seres humanos. Mais do que isso, são formas de cumplicidade nos atentados a esses mesmos direitos. E quem “julga” essas “cumplicidades”? Ao Levi, à Vanessa, ao Daniel, à Joana, à Catarina e à Fátima Letícia não deram oportunidade de passar o Natal junto da família. E a Bíblia lembra-nos que ter um filho é, antes de tudo, assumir uma responsabilidade e um compromisso de amor absoluto. Não se trata de um acto mecânico, consequência do trabalho conjunto de espermatozóides e óvulos. Nem se trata de um puzzle em que todas as peças supostamente encaixam umas nas outras. Todavia, analisando o comportamento de várias instituições do Estado, as crianças aparecem como seres destituídos de quaisquer direitos autónomos. Se aquilo que define a nossa civilização são os valores, onde estarão eles neste caso? Não deverá o Estado assegurar a segurança dos cidadãos? Haverá alguma justificação que sirva verdadeiramente para ilibar o Estado das suas responsabilidades?
O nosso presente está cheio de informação. Na “aldeia global”, os acontecimentos pululam. Ora, considerando acontecimento como uma ocorrência desprovida de responsabilização, lamenta-se que ninguém se tenha responsabilizado pela protecção destas crianças. A Fátima Letícia nem sequer valeu o significado do nome duplo que mistura a Fé portuguesa com a realeza espanhola…

Nova Aliança, 6 / Janeiro / 2006

3.1.06

As presidenciais, a literatura e as frases feitas

1. Medeiros Ferreira teve esse dom analítico e premonitório de ter percebido os sinais da candidatura de Mário Soares à Presidência da República muito antes do comum dos mortais. Isso aconteceu ao reler Os Poemas da Minha Vida seleccionados pelo fundador do PS para o jornal Público. Na sua opinião, todas as peças se encaixam: os traços fundamentais da personalidade, o seu posicionamento perante a vida, as suas amizades e as coisas da política, o seu universo de gostos pessoais.
Atento, Ferreira interpretou o “Basta!” de política, proferido solenemente por Soares no aniversário dos 80 anos, como um gesto de delicadeza circunstancial e gestão de expectativas para com as centenas de participantes no lauto jantar. Nem o próprio Manuel Alegre, companheiro de tantas jornadas há mais de 40 anos e poeta incluído na referida selecção de poemas, conseguiu interpretar em tempo útil tais palavras.
E teria sido tão, tão fácil. Bastaria recordar os nossos poetas Luís de Camões
( “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” ), Bulhão Pato ( “Ó crenças infantis, talvez agora, volteis a mim, ardentes como outrora: Diz-se que um velho volta a ser criança!...” ), Fernando Pessoa ( “O poeta é um fingidor” ), Álvaro de Campos ( “Serei velho quando o for. Mais nada” ), Armindo Rodrigues ( “Ser livre é querer ir, e ter um rumo, e ir sem medo, mesmo que sejam vãos os passos” ). Ironicamente, até se poderia ler o próprio Manuel Alegra ( “Conspiradores do impossível: onde estais? Dai-me de novo a rosa iniciática. O sonho que passou não volta mais.” ).
Foi precisamente à porta de Fernando Pessoa que Mário Soares foi bater para desligar o candidato Cavaco Silva da sua aura de “homem-providência das finanças”. Para tal, invocou o poema “Liberdade”. Esqueceu apenas um detalhe que deveria ser lembrado por Cavaco: é que o dito poema começa com “Ai que prazer / não cumprir um dever / ter um livro para ler / e não o fazer / Ler é maçada / Estudar é nada”. E a segunda estrofe vem já a caminho: “Livros são papéis pintados com tinta / Estudar é uma coisa que está indistinta / a distinção entre o nada e o coisa nenhuma / Quanto melhor é quando há mais bruma / Esperar por D. Sebastião / Quer venha ou não!”.

2. Continuando a vaguear no reino das palavras, deixemos a linguagem poética e passemos para um discurso mais utilitário, mais próximo da realidade. Antigamente, as fábulas inundavam os livros da instrução primária. O texto “As Vozes dos Animais” dizia assim: “Palram pega e papagaio / e cacareja a galinha / os ternos pombos arrulham / geme a rola inocentinha”. Obviamente, nenhum Medeiros Ferreira pode adivinhar que existe aqui alguma insinuação aos sinais evidentes que nos são dados pelos nossos candidatos.
Nesses tempos, falavam os animais e calavam-se as pessoas. Hoje em dia, a palavra anda à solta e difícil é encontrar alguém que se mantenha calado. Provavelmente, foi por se reconhecer que as palavras relaxam que os seres humanos inventaram as palavras cruzadas. Trata-se de uma actividade completamente inútil – raramente se consegue puxar tanto pela cabeça em função de algo tão desnecessário – mas óptima para os tempos livres. Existem por aí certas frases, perfeitamente vulgares e pronunciadas sem premeditação que ficaram cravadas na memória de todos sem que mesmo o seu desprevenido autor saiba porquê. Não são grandes frases, mas tiveram alguma sorte e passaram à posteridade. Eis alguns exemplos: “é só fumaça” ( Pinheiro de Azevedo ); “olhe que não, olhe que não!” ( Álvaro Cunhal ); “Deixem-me trabalhar!” ( Cavaco Silva ); “É só fazer as contas...” ( António Guterres ); “Prognósticos só no fim do jogo” ( João Pinto ); “Vamos fazer coisas bonitas”
( Artur Jorge ).
Como a vida é injusta! Tantos intelectuais que procuram afanosamente o reconhecimento e de repente surge um político qualquer a proferir inadvertidamente uma frase que acaba por ficar para a história. Existe algo de espantoso na frase “O meu reino por um cavalo”? E na resposta “Ninguém!”, célebre no Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett? E em “Também tu,
Brutus?”? Que tem de tão especial “Penso, logo existo”?
Enfim. Tratou-se de um simples exercício que serve para nos pôr a pensar em coisas que não dão que pensar, o que não significa que deixemos de pensar nelas. Boas Festas e um Santo Natal!!

Nova Aliança, 23 / 12 / 2005