26.4.06

Onde se fala de bancos, escravatura e ilhas citadinas

1. Num daqueles exercícios recorrentes na imprensa portuguesa, surge mais um inquérito sobre a vida pessoal dos nossos governantes. Desta vez, uma revista económica ( a “Dia D” do Público ) questiona os nossos ministros sobre as aplicações que fazem do seu dinheiro pessoal. Depósitos a prazo e certificados de aforro são a prova exemplar da poupança e de aversão ao risco. Todos eles dão mostras de serem muito certinhos, sem ideias megalómanas de investimentos “malucos”, leia-se “agressivos”. Tais evidências mostram que, no meio da onda reformista e do choque tecnológico, está um português rural e medroso, capaz de enfiar o seu dinheiro no colchão.

Repare-se que estamos a falar do dinheiro pessoal porque se passamos para os dinheiros públicos, aqueles que nos pertencem, a coisa muda de figura. Aí existe uma coragem que nos deixa a todos surpreendidos. Aí já pode existir “risco”, “choque”, “inovação” e “ambição”. Como estão à porta mais dois elefantes brancos – a Ota e o TGV – espera-se que a maioria na Assembleia da República faça mais uma adenda constitucional de modo a que se possa ir aos colchões ministeriais buscar os dinheiros das derrapagens que aí chegarão. Vamos nessa?

2. A leitura de jornais em Portugal é inversamente proporcional ao tempo gasto frente à televisão. O jornal dá-nos as boas e as más notícias, a televisão oferece-nos os “circos das celebridades” e os programas de anedotas. Neste campo sabemos tudo e somos tudo menos ignorantes.

Os jornais ainda conseguem surpreender e ensinar-nos alguma coisa. Como esta, que li há dias em letras pequeninas: “O Governo brasileiro libertou os mais de quatro mil homens que foram encontrados, em 2005, a trabalhar como escravos em fazendas da Amazónia. No entanto, organizações humanitárias receiam que haja 250 mil brasileiros nessa situação.”

Estão a ver? Breves linhas esquecidas numa página interior informam-nos que num país que fala a nossa língua existem quatro mil homens a trabalhar como escravos. Mas o número pode aumentar e aumentar para um quarto de milhão, seja lá o que isso for...

Na televisão, mais uma anedota e mais uma acrobacia. Mas a notícia fica cá dentro, faz-nos abrir a boca de espanto, talvez indignarmo-nos mas não poderemos dizer que não sabemos.

Misérias, desgraças, tristezas. Os jornais vivem também dos “jackpots” e dos totolotos, das vitórias no futebol e dos colunáveis mas vejamos novamente o que surge noutro canto escondido do jornal: “Precisa de um canalizador ou simplesmente de um arranjo de bricolage? Os moradores do município de Sintra que necessitem destes serviços e não os possam realizar têm ao seu dispor a Oficina do Idoso, um projecto que visa prestar apoio domiciliário para a realização de pequenas reparações. O melhor de tudo: é um serviço gratuito, realizado por funcionários da câmara.”

Esta notícia ensinou-nos um pouco mais sobre o mundo, o “nosso” mundo. E mostra que no século XXI não há apenas escravos. Ainda bem.

3. A Estrada Nacional 128 entre Miranda e Bragança está velha, gasta e ultrapassada. Por isso, foi escolhido e iniciado um novo traçado que oferece mais segurança e qualidade de vida aos utilizadores. Contudo, as obras pararam porque foi descoberta no percurso uma espécie rara de morcegos. Novos acidentes na velha estrada e as obras recomeçaram. Por pouco tempo porque as associações ambientalistas verificaram que um rato ficaria com o habitat destruído. Nova interrupção e os responsáveis afirmam que um eventual novo traçado que passe ao lado dos territórios dos morcegos e dos ratos fará atrasar a obra para “nunca menos de 2011”.

Significa isto que estamos em presença de uma forma de fundamentalismo que urge combater. Com toda a atenção dada às espécies em vias de extinção corremos o risco de qualquer dia ninguém se preocupar com as necessidades básicas dessa verdadeira “espécie em vias de extinção” que é o Homem, se é que ele “merece” ser preservado...

4.4.06

Fumadores e Banqueiros

1. O combate contra o tabagismo está na ordem do dia e devemos meditar bem no exemplo que nos chega da Califórnia. Assim, a pequena localidade de Calabasas pode orgulhar-se, desde a passada semana, de ter uma das leis mais «avançadas» do planeta contra tal problema.
Aprovada por unanimidade no Conselho Municipal da pequena localidade de 25 mil habitantes, a lei proíbe o fumo em todos os espaços públicos, interiores e exteriores, incluindo esplanadas, campos de futebol, paragens de autocarro, parques, jardins e piscinas em condomínios privados. Por enquanto, os cidadãos de Calabasas ainda podem fumar dentro dos respectivos automóveis, mas só se os vidros estiverem fechados, de forma a não incomodarem eventuais passantes.
Tais medidas não são propriamente uma surpresa e não causará particular espanto a ninguém quando a interdição atingir residências privadas. Já há casos de apartamentos que não são alugados a fumadores e também já aconteceu um processo judicial colocado por um norte-americano que se sentia prejudicado pelo vizinho que fumava no jardim. Alegava o queixoso que o vento transportava o «veneno» até à sua residência... Nos tempos que correm, nos Estados Unidos, os fumadores juntam-se em pequenos grupos de pessoas nas esquinas enquanto são olhados com desconfiança pelos transeuntes.
Sem entrar em situações de pura paranóia, era bom que em Portugal se defendessem os direitos dos não fumadores. Basta que prevaleça o bom senso e se encontrem soluções equilibradas.
Registe-se, a finalizar, que os habitantes de Calabasas que infringirem a lei poderão incorrer em multas até 500 dólares – mas só se forem reincidentes. À primeira, levam apenas uma «repreensão amigável» e uma caixa de pastilhas de mentol...

2. Atenta à actualidade, a maioria dos portugueses não sabe o que é uma OPA. Ouve falar destas manobras bolsistas e financeiras com a mesma estranheza com que ouve falar da descoberta de novas estrelas a muitos anos-luz de distância. É através dos jornalistas e analistas, e em particular dos jornalistas e analistas económicos, detentores dos códigos de acesso e do vocabulário técnico, que os portugueses vão sabendo destas movimentações e operações bancárias de grande envergadura, e vão sabendo que de um dia para o outro podem ter um seguro ou ser clientes de um banco que passou ser refém de outro banco, ou que se transformou noutro banco, sem chegarem a perceber as diferenças implícitas, vantagens ou desvantagens da mudança até para si próprios. Passou-se isto com a venda dos seguros do Banco Comercial Português à Caixa Geral de Depósitos. Na maioria dos casos, os detentores desses seguros apenas viram mudar a tutela institucional das companhias, sem chegarem a perceber o que mudou no clausulado dos contratos e aplicação desse clausulado pelas seguradoras.
O consumidor português, incluindo o consumidor de produtos financeiros, é passivo e obediente embora, lá bem no seu íntimo, tenha os economistas em boa conta Agora que a economia e as movimentações micro e macroeconómicas começam a destronar a política (há muito destronaram a cultura, por exemplo) e que todas estas OPAS seguidas, as da Sonae e outras à PT, a do BCP ao BPI invadem o espaço noticioso diário, chegou a altura de os portugueses começarem a exigir mais informação e não contarem apenas com os jornalistas e comentadores. Não é suficiente ouvir os velhos “chavões”, que a economia portuguesa está a dar «sinais» de agitação, e que essa agitação parece ou pode ser benéfica para a banca, a Bolsa, a crise ou o consumo. Mas, entre a Bolsa de valores, com B grande, onde estas transacções são feitas, e a emagrecida bolsa dos consumidores, existe pelo menos uma diferença de escala.
Colocam-se então várias perguntas: todas estas OPAS reflectir-se-ão num acréscimo de qualidade de serviços para o consumidor? Numa poupança de meios? Num mercado mais competitivo e com maior concorrência e menos monopólio lesivo dos interesses dos particulares? Ou estamos apenas e sempre a falar de mais benefícios para os accionistas e mais lucros para a Banca que engorda a olhos vistos, mesmo em tempos conturbados de crise?

Nova Aliança, 31 / 03 / 2006