24.7.06

Exames, D.Afonso Henriques e a Nova Arquitectura

1.Não sei se os leitores saberão como funciona o processo dos exames nacionais. Ao longo do ano, uma equipa de sábios das várias disciplinas elabora as respectivas provas de exame. Há a esperança de elas respeitarem os conteúdos leccionados ao longo do ano e, por isso, era hábito os alunos conhecerem uma prova modelo, até para se familiarizarem com a estrutura da prova. Este ano, isso não aconteceu. Quando surgiram as primeiras reacções de protesto às provas de Física e Química, a responsável pelo gabinete de avaliação dos exames declarou não existir motivo para queixas, que tudo tinha decorrido dentro da normalidade, que as queixas eram próprias dos que não estavam preparados, etc. Quando um professor não consegue resolver uma prova de exame num terço do tempo de que os alunos dispunham, algo de grave se passa; que dizer então dos que continuam a afirmar não serem capazes de resolver um problema, tal a sua formulação e a impossibilidade de resolução?
Respondendo aos apelos vindos de todos os lados e tendo em conta as médias vergonhosas, lá veio a situação milagrosa: repetir os exames de Física e Química na segunda fase, apurar a melhor nota e concorrer com ela ao ensino superior. Acontece que em praticamente todas as provas houve problemas, o que deixa antever uma profunda injustiça para os alunos envolvidos. E quem deixou as duas disciplinas para a segunda fase tem só uma possibilidade, ao contrário dos que a vão agora repetir.
A um outro nível, por valer apenas trinta por cento da nota final e por se tratar do nono ano, é preciso dizer que a prova de exame de Língua Portuguesa está mal feita porque contraria tudo aquilo que em anos e anos de formação se ensina aos professores. Sobre este ponto, serei mais específico se for necessário. Quando confrontados com esta reacção dos professores correctores de todo o país, a reacção foi: “as regras são estas, os critérios de correcção são estes, os relatórios das anomalias serão discutidos em Setembro”.

2. Foi, no mínimo, hilariante a história do túmulo de D. Afonso Henriques. Na era do simplex, eis que vencei o … complex. Quando se aposta em incentivar a investigação e em atrair investigadores para trabalhar no país, este episódio foi particularmente elucidativo. Um ano inteiro de pedidos de autorização que iam sendo atendidos e merecendo a respectiva anuência esbarrou no último minuto ( tudo estava a postos e a campa aberta ) no capricho burocrático da senhora ministra. Considerando que Afonso Henriques foi um homem essencialmente prático e capaz de criar um país, o que sentiria ele ao observar que, mais de oitocentos anos depois do nascimento de Portugal, o país pouco ter mudado?
Convém lembrar que existe um vasto aparelho público de institutos, direcções-gerais, gabinetes de estudo e secretarias de Estado que custam anualmente uma soma muito avultada ao povo português. Eles têm poderes delegados para tomarem decisões e cumprirem as responsabilidades que lhes foram confiadas nos termos da lei. Sabendo isso, a “pouco avisada” investigadora subiu todos os degraus, conseguiu todas as autorizações mas terá cometido o assinalável erro de não pedir uma audiência à senhora ministra.
Mesmo que esta tenha decidido solicitar mais informação sobre a investigação, isso seria passar um atestado de incompetência e de falta de confiança nas estruturas que estão na sua dependência. Em Portugal, parece que os ministros têm de meter o bedelho em tudo. Lembram-se do simplex?...
3. Com as famosas e demoradas obras do Aquapolis ( que terão o teste final nas próximas cheias ) pensava que um dos objectivos fosse o aprofundar dos laços que nos ligam ao Tejo. Erro meu. Se o leitor entrar pela margem norte e aproveitar para beber um simples café numa das instalações existentes, verificará que, sentado à mesa, fica com uma excelente perspectiva do Rossio mas o rio está tapado. Está tapado porque em vez de vidros altos que dariam uma visão magnífica do conjunto envolvente, a parede foi dividida ao meio ficando a barra divisória ao nível dos nossos olhos. Depois da construção da Pousada da Juventude sem uma janela ou uma varanda de frente para o rio, eis que surge outra opção insólita. Como em algumas rotundas que por aí pululam, o grave não é que estas coisas existam, o grave é que os seus autores tenham recebido dinheiro por elas.

Nova Aliança, 21 / Julho / 2006

13.7.06

Palavras, Os futuros patrões portugueses e o preço da vida humana

1. Poderão as palavras significar aquilo que não são? Poderão elas transmitir o ininteligível? Quando recentemente o ministro da Saúde refutou algumas críticas em plena Assembleia da República e que lhe eram dirigidas por deputados da oposição, salientou que “o facto de poder haver mais doentes em lista de espera pode ser bom” por indiciar que a “disponibilidade dos serviços aumenta”. Parece assim existir vantagens numa lista de espera que cresce a olhos vistos, basta ouvir o ministro que, pasme-se, diz estas coisas sem se rir. Mais à frente, questionado sobre a criança portuguesa que morreu em Badajoz depois de ter para ali sido transportada desde Elvas, o mesmo ministro afirmou que não se tratava de uma criança, “mas de um feto inviável”. Um “feto inviável”? E ninguém reage?? E na Finlândia, as palavras também se usarão assim?

2. Uma análise cuidadosa da recente proposta de alteração do Estatuto da Carreira Docente revela que a palavra “ensinar” não aparece uma única vez no documento que tem 55 páginas. Mesmo a palavra “ensino” aparece apenas como qualificativo oficial ( “estabelecimento de ensino”, “ensino básico” ). Já a palavra “aprendizagens” aparece 13 vezes, no singular e no plural. O ponto 2 do Art. 36º, referindo-se às funções dos professores, não fala em ensinar, mas sim em “identificar saberes e competências-chave dos programas”, “desenvolver situações didácticas” e criar”situações de aprendizagem”. Entre outros, são deveres dos docentes: “Trabalhar em equipa”, “Colaborar com as famílias” e “Conceber respostas inovadoras às novas necessidades da sociedade do conhecimento”. O leitor tem todo o direito de não acreditar, por isso lhe peço que procure em www.min-edu.pt. E na Finlândia, também será assim?


3. O anúncio passa todas as noites em nossa casa. Serve para promover o TMN Mail, um serviço que permite consultar o correio electrónico a partir do telemóvel. A coisa passa-se assim: um jovem executivo chega ao seu trabalho e, depois de cumprimentar a chefe, volta a sair à socapa pala porta por onde entrou. Encontramo-lo então numa espécie de esplanada solarenta, rodeado de belas mulheres bronzeadas e em bikini. É aqui que entra o TMN Mail: o telemóvel é suficiente para estar ligado à sua empresa e, quando a chefe o convoca para uma reunião daí a 20 minutos, o nosso executivo acompanhado por outros sai disparado da esplanada e ainda chega a tempo da reunião. No nosso sofá compreendemos bem a motivação que a TMN apresenta aos seus clientes para a assinatura do novo serviço. E ela é o jeito que dá para enganar o patrão. No fundo não nos devemos surpreender, o trabalho afasta-nos das esplanadas, leia-se, dos prazeres desta vida. Considerando que este jovem executivo de hoje será o patrão de meia-idade de amanhã, deveremos ainda ter esperança. E na Finlândia também foi assim? Continuamos prazenteiramente na cauda da Europa mas atenção, temos mail no telemóvel…

4. Pedrito de Portugal foi multado em 100.000 euros por ter morto um touro na arena. Quando nos recordamos que por cada vítima do acidente de Entre-os Rios o Estado pagou 50.000 euros, que deveremos concluir?...Isso mesmo, caro leitor. Lembro o caso ao ler que um grupo de activistas portugueses se propõe ir a Pamplona protestar contra as tradicionais largadas de touros que, por esta altura, ocorrem naquela cidade de Navarra. Como já protestam há algum tempo e ninguém lhes liga, decidiram agora ser mais criativos e prometem correr nus pelas ruas ao lado dos bois, só com chifres de plástico na cabeça. Tenho uma sugestão a fazer: como em Abrantes a água que sai das torneiras na parte alta da cidade é castanha embora custe o mesmo da cristalina ( já agora, só deixaremos de ter água castanha quando o próximo presidente da câmara habitar na zona? ) seria interessante ter uma largada humana de activistas em pelota pelas ruelas abrantinas. Afinal de contas são ambientalistas. Que tal? Na Finlândia, de certeza que as coisas não se passam assim… Um último pormenor: podiam substituir os cornos por duas garrafas de água. Cristalina, claro…
Nova Aliança, 08 / 07 / 2006

A Ética de José Luandino Vieira

O nome do escritor angolano Luandino Vieira, galardoado com o Prémio Camões, deve ter deixado muita gente perplexa. O autor de “Luanda”, afinal de contas, não publica nada de novo desde o início dos anos 70. Como entender então a justeza do prémio?

Luandino Vieira ( aliás, José Vieira Mateus da Graça ) nasceu em Vila Nova de Ourém ( Portugal ) em 4 de Maio de 1935, contando, pois, 71 anos. Com três anos foi com os pais para Angola, onde, por envolvimento em movimentos nacionalistas, seria preso pela Pide, em 1959. Já nessa altura, em homenagem a Luanda, adoptara o pseudónimo de Luandino. Libertado, voltaria dois anos depois à prisão, sendo em 1964 transferido para o terrível campo de concentração do Tarrafal, por onde, desde os anos 30, tinham passado inúmeros antifascistas portugueses. Aí descobre Guimarães Rosa, o escritor que mais o influenciou, e aí escreve a maioria da sua obra. Com destaque para Luuanda ( 1963 ), que, distinguido em 1965 com o Prémio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores, levaria ao encerramento daquela instituição, acusada de «traição à Pátria», após o saque e a destruição pela Pide da sua sede. É a história de um Domingos Xavier que morre lentamente, depois de passar pela mão dos cipaios: “Nunca fizera mal a ninguém. Só queria o bem do seu povo e da sua terra. E por lhes querer bem não falou os assuntos do seu povo nem se vendeu. E por querer lhes bem o mataram”. Há aquele gosto de uma escrita em português com a marca indelével do angolano, tal qual se fala, mais os seus termos específicos para uma realidade diferente que, afinal, teve, tem e terá de conquistar a sua expressão. É um gosto. E há um glossário, ideia de louvar sempre que nos textos surgem termos que escapam aos regionais ou que são de difícil esclarecimento, mesmo nos dicionários. Cumpridos mais de dez dos 14 anos a que fora condenado, durante os quais escreveu oito dos dez livros até agora publicados, Luandino Vieira é libertado e transferido, com residência fixa e vigiada, para Lisboa. Regressa a Angola após o 25 de Abril de 1974, mantendo uma militância activa no MPLA até pelo menos 1979. Em 1992 volta a Portugal, passando a viver primeiro no Convento de São Payo (Vila Nova de Cerveira), propriedade do seu amigo, o escultor José Rodrigues, e mais recentemente nas suas imediações. Entretanto, planta árvores, trabalha na agricultura, chega a levar as ovelhas a pastar pelos montes.

O escritor é o segundo angolano a ser distinguido com o Prémio Camões que distinguiu ainda oito portugueses, sete brasileiros, e um moçambicano. O júri foi constituído pelos brasileiros Ivan Junqueira e Evanildo Bechara , as portuguesas Agustina Bessa-Luís e Paula Morão , o moçambicano Francisco Noa e o angolano José Eduardo Agualusa . E foi este último que apresentou a proposta da atribuição do prémio a Luandino. Tal proposta circulava há muito nos bastidores mas este manifestara a intenção de, enquanto não tivesse um novo livro, não o aceitar, caso lhe fosse atribuído.

A verdade é que, de uma forma natural, Luandino recusou mesmo o prémio pecuniário de cinquenta mil euros. Houve quem tivesse falado do seu horror à celebridade, elogiando ao mesmo tempo o seu desapego material. Julgo que a decisão do escritor ultrapassa esta questão. No fundo, penso que tal atitude é “só” a ilustração da alta noção que Luandino tem da sua responsabilidade perante a escrita. Se há dez anos o escritor disse e escreveu que recusaria o Prémio se este lhe fosse atribuído, “dado não publicar nenhum novo livro há muito tempo”, estava-se mesmo a ver que, com toda a sua coerência, também agora ele recusaria o Prémio.

Fica claro que Luandino recusa o Prémio não por falsa modéstia mas por lhe parecer despropositado que, enquanto surgem novos escritores e literaturas africanas, lhe seja atribuído o mais alto galardão que distingue escritores actuais de língua portuguesa, nas suas diversas variantes, estando ele silencioso há décadas.

Luandino invoca “razões pessoais e íntimas” para a posição que tomou e fechou-se na sua “concha”. Calmamente aguardará que seja o tempo – e os seus leitores - a fazer-lhe a justiça de um reconhecimento maior.

Embora ainda não publicado, esse seu novo livro já existe, de facto. Está no prelo, chama-se O Livro dos Rios, primeiro tomo de uma trilogia intitulada De Rios Velhos e Guerrilheiros, e os seus editores projectam lançá-lo, em Luanda, no próximo dia 11 de Novembro, data da independência de Angola.



Nova Aliança, 24 / 06 / 2006

Futebol e Parlamento, Portugueses do Hino e Fecho de Maternidades

1. Se os deputados da Nação serviram de exemplo, então o país deve ter parado anteontem, dia 21 de Junho. Esquecidos já do “mau exemplo” que ofereceram ao país no dia em que faltou quórum lá no sítio para votar umas leis, atiraram para longe as promessas de “repensar” a imagem que os portugueses têm dos seus políticos. Aquelas cabeças não fizeram por menos: no dia do jogo entre Portugal e o México, os senhores deputados não apareceram à hora marcada para o trabalho habitual. Sem hesitações, decidiram antecipar os trabalhos e adiar as comissões parlamentares para horas mais apropriadas. Depois das benesses a vários títulos ( o caso das multas perdoadas é significativo ), este é mais um exemplo de seriedade e rigor que o país regista e que deve ter seguido por qualquer profissional. Embora escreva alguns dias antes, espero que os juízes tenham estado fora dos tribunais, os médicos fora dos hospitais, os professores fora das escolas, os operários fora das fábricas e os trabalhadores dos serviços fora dos respectivos locais de trabalho. Espero ainda que os loucos tenham saído dos hospitais e os criminosos das prisões.
Tal situação não foi bem pensada. Havia uma solução mista que certamente agradaria a muitos e que ia ao encontro dos que têm uma grande capacidade de trabalho e conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Bastaria que se montasse um ecrã gigante em plena Assembleia da República. O próprio espaço físico adaptar-se-ia à famosa “onda” mexicana. O senhor presidente da Assembleia trataria de servir as imperiais e se o primeiro-ministro estivesse presente, encarregar-se-ia dos tremoços e dos amendoins. Digam lá que não era bem pensado…

2. Quando ainda está fresca na memória de todos a história das bandeiras nacionais com publicidade à mistura, seja a bancos ou a estabelecimentos de electrodomésticos, soube-se que foi negada a nacionalidade portuguesa a uma mulher indiana, casada com um português e com filhos nascidos e educados em Portugal.
O facto de falar fluentemente a nossa língua e de viver há mais de dez anos em Portugal foram insuficientes para que o Tribunal da Relação de Lisboa considerasse a existência de uma ligação efectiva à nossa comunidade. Falhas? A cidadã não demonstrou conhecimentos de História de Portugal, não foi capaz de nomear figuras públicas da cultura portuguesa e mostrou ignorar o hino nacional.
Assim de repente fico a pensar se estes parâmetros levariam uma grande percentagem de portugueses a conseguir a nacionalidade lusa. Parece-me que não. E não posso deixar de lembrar a prontidão com que se atribui a nacionalidade em alguns casos ( como o do futebolista Deco ) que ignorarão os vultos da cultura, as batalhas mais célebres e que do hino apenas se lembram das “armas”. Não falando já da sua ligação matrimonial nem nos descendentes portugueses, dez anos é realmente muito tempo. Tempo suficiente para conseguir a nacionalidade portuguesa. Se a senhora gostasse de futebol e colocasse uma bandeira na janela, isso convenceria o Tribunal?

3. Em Elvas, no primeiro dia do encerramento dos respectivos serviços de obstetrícia, uma mulher enviada para Portalegre perdeu o filho. A utente em causa foi transportada durante cinquenta quilómetros numa ambulância sem quaisquer condições e não foi acompanhada por um profissional devidamente habilitado para lidar com a situação. Num país decente e sério o primeiro-ministro e o ministro da pasta já se teriam demitido e aguardariam calmamente o processo judicial. Assim…


Nova Aliança, 10 / 06 / 2006