17.11.10

Carta a um Professor e o desportivismo nos anos 50

3 de Novembro - "Caro professor, ele terá de aprender que nem todos os homens são justos, nem todos são verdadeiros, mas por favor diga-lhe que, por cada vilão há um herói, que por cada egoísta há também um líder dedicado, ensine-lhe por favor que por cada inimigo haverá também um amigo, ensine-lhe que mais vale uma moeda ganha que uma moeda encontrada, ensine-o a perder mas também a saber gozar da vitória, afaste-o da inveja e dê-lhe a conhecer a alegria profunda do sorriso silencioso, faça-o maravilhar-se com os livros, mas deixe-o, também, perder-se com os pássaros do céu, as flores do campo, os montes e os vales.
Nas brincadeiras com os amigos, explique-lhe que a derrota honrosa vale mais que a vitória vergonhosa, ensine-o a acreditar em si, mesmo se sozinho contra todos. Ensine-o a ser gentil com os gentis e duro com os duros, ensine-o a nunca entrar no comboio simplesmente porque os outros também entraram.
Ensine-o a ouvir a todos, mas, na hora da verdade, a decidir sozinho, ensine-o a rir quando está triste e explique-lhe que por vezes os homens também choram. Ensine-o a ignorar as multidões que reclamam sangue e a lutar só contra todos, se ele achar que tem razão.
Trate-o bem, mas não o mime, pois só o teste do fogo faz o verdadeiro aço, deixe-o ter a coragem de ser impaciente e a paciência de ser corajoso.
Transmita-lhe uma fé sublime no Criador e fé também em si, pois só assim poderá ter fé nos homens.
Eu sei que estou a pedir muito, mas veja que pode fazer, caro professor".
É uma carta de 1830, de Abraham Lincon ao professor do filho que começava a aprendizagem. Um texto certo, lindíssimo, um exemplo de vida. De muitas vidas, sem data e com destinatário: nós, todos.

7 de Novembro – Procurar nos arquivos traz muitas curiosidades. Na véspera de um Porto-Benfica, em Dezembro de 1953, O Porto, jornal do F.C.Porto, escrevia o seguinte“Portistas, vem aí o Benfica. É claro que os vamos receber como ele merece: à moda do Porto. Os encarnados do sul vêm de longada até à Cidade Invicta encher de alegria os olhos dos desportistas tripeiros. Que vença, Deus o permita, o nosso glorioso clube. É legítimo. Que os bravos benfiquistas nos perdoem a tripeira fraqueza. ..Nada de hipocrisias, porque os dois baluartes do futebol nacional já habituaram de tal maneira os seus adeptos à exibição plena das mais nobres virtudes da ética desportiva…”
O Porto ganhou e o jornal O Benfica de 14 de Janeiro de 1954 escrevia:“Ganhou o Porto. Foi naquela tarde o melhor. Mas também soube pôr na vitória o timbre da firmeza e educação que só os atletas de elite possuem. Perdeu o Benfica. Mas nem por isso saiu diminuído da contenda. Deixou no belo estádio o perfume da sua categoria de grande equipa, grande na maneira de jogar, enorme na forma como soube aceitar a derrota”.
Reconhecem este desportivismo nos tempos presentes?

Nova Aliança, 11 de Novembro de 2010

A lição do Chile

14 de Outubro – A lição que recebemos
Podemos dizer que se trata de uma frase feita. Podemos dizer que nem sempre se verifica mas a ‘tal’ frase impossível - o Natal é quando o homem quiser - calhou ontem, 13 de Outubro. O cântico foi da velha chilena Violeta Parra: ‘Gracias a la vida’. Os presentes vinham num embrulho em forma de cápsula que ia e vinha e trazia sempre as mesmas letras e sempre certas: Fénix.
Quem tira os minerais do fundo da terra? Quem passa lá uma vida inteira? Quem destrói o corpo em busca do salário mensal? E esses presentes eram tão raros que muitos os deu como desaparecidos. Quem levantou os grandes monumentos? Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta a Muralha da China? A grande Roma está cheia de arcos de triunfo - quem os levantou?
Perguntas antigas, que ontem tiveram resposta, tiveram nomes. Florencio Ávalos, Carlos Mamani, Jimmy Sánchez, Victor Zamora, Esteban Rojas e mais vinte e oito iguais. Ontem, chorávamos todos, o filho do Florencio, a loira da Sky News, o solitário no café da aldeia.
Ontem, um dos danados da terra e desapossados de nome, mal ganhou nome, Mário Sepúlveda, o segundo da dinastia dos 33, falou por ele e por todos - cumprindo as palavras de Violeta Parra: ‘El canto de todos que es mi proprio canto’. Pousou o bornal e tirou dele pedaços de rocha que arrancou à mina, que distribuiu. E depois disse isso em palavras: "Não me tratem como artista, sou Mário, o trabalhador mineiro." Só…
15 de Outubro – Ainda o Chile
Todos seguimos a transmissão televisiva com maior audiência da história: 33 mineiros soterrados a 700 metros de profundidade regressaram, 69 dias depois, à luz e à vida. Como escreve Hernán Letelier, a história do deserto de Atacama está coroada de tragédias como um largo muro coroado de vidros quebrados: greves, marchas da fome, acidentes fatais, mineiros mortos em inconcebíveis massacres. Mas no passado dia 13 o que se viu foi o triunfo da vida, da resistência humana, a recusa da rendição a um desfecho que parecia inevitável, o engenho científico e tecnológico ao serviço de 33 mineiros pobres e desconhecidos e o mundo inteiro suspenso por esse arrojo em que se lançaram o presidente chileno, os poderosos detentores da tecnologia de ponta e os 33 homens soterrados vivos e que, rapidamente, contagiou o mundo inteiro.
Esta operação, sumamente complexa e teoricamente nunca pensada, foi posta em prática com a precisão de um cronómetro, sem precipitações, sem erros, sem falhas. Tornou-se um ponto de honra comum à humanidade, sobrepondo-se à secura dos corações, ao conformismo e à indiferença fruto dos atributos da cultura utilitarista dos nossos dias, assente no individualismo, na ganância, no desprezo pelos mais pobres e mais fracos e no desvalor da vida humana. A história da mina de San José é, também por isso, uma revolução cultural.
Não foi apenas um resgate - o que por si já seria muito - mas um cuidar activo e eficaz conseguido com muita tecnologia, engenho e arte, criando em escassos 800 metros simulações da luz do dia para controlar os biorritmos, a temperatura e o grau de humidade, introduzindo sondas para enviar provisões, rádios e material de primeiros socorros e até pastilhas elástica com nicotina para aliviar os fumadores, para além de livros e um projector para verem filmes e futebol. O resto, um enorme resto, chama--se resistência humana, liderança activa e disciplina espiritual. Mario Sepúlveda, o mineiro que fez a vezes de jornalista nas gravações de vídeo filmadas a 700 metros de profundidade, disse quando chegou ao mundo dos vivos "Estive com Deus e estive com o Diabo, e ganhou Deus. Agarrei-me à melhor mão." Os 33 homens apareceram com uma T-shirt onde se lia "gracias, Señor".
Este final feliz, arrancado à sua própria improbabilidade, culmina um tempo sobre o qual os mineiros estabeleceram um pacto de silêncio entre si: nenhum falará sobre os outros. Ainda que seja provável que um dia se escreva um best-seller ou se realize um filme sobre esta história, boa de mais para ser verdadeira, eles não querem ser os protagonistas. Tudo ficou 700 metros abaixo do solo, e percebemos porquê. Nenhuma história pode ser tão íntima na trama com que foi tecida como a de esta extraordinária convivência. Nada pode operar transformações tão profundas no interior de cada homem como o fio do tempo - 69 dias - no qual se penduraram as fraquezas e as forças, a fé e o desespero, o medo e a coragem, o pior e o melhor de cada um daqueles seres humanas que a tragédia desnudou até ao tutano da alma.
Alberto Urzúa Iribarren, "Don Lucho" como lhe chamaram dentro e fora da mina, foi o último a sair como compete a quem assumiu ser o chefe natural daquele grupo logo após a primeira avalanche. Organizou grupos e rações: "Duas colherinhas de atum por dia, para cada um", disse. Enquanto, cá fora, Piñera fazia esta afirmação lapidar: "Procurámo-los como filhos. Encontrámo-los com a ajuda de Deus. Resgatámo-los como chilenos."



Nova Aliança, 28 de Outubro de 2010

Acreditar na Constituição, o Caso Casa Pia e a leitura dos indicadores económicos

14 de Setembro – Devemos acreditar na Constituição?
O Público dá hoje destaque na 1ª Página a uma reportagem cujo tema é “Quanto custa educar um filho?”. Não se percebe de que estão a falar. A Constituição diz que cabe ao Estado estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino e a criação de uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. Educar um filho é, 35 anos após a gloriosa revolução de Abril, totalmente gratuito.
Andam a propagar a mentira de que o futebolista José Torres terá tido dificuldades financeiras no fim da vida, agravados pelo facto de sofrer de Alzheimer. Não pode ser verdade porque a Constituição portuguesa garante que o direito à protecção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito.
Será impressão minha ou a Constituição anda-nos a enganar?
16 de Setembro – O que sabemos do processo Casa Pia.
Terá terminado o processo Casa Pia? Se descontarmos os recursos que aí vêm, parece que sim. Será que se fez justiça? Tirando melhor opinião, parece que sim, e exactamente do modo que a opinião pública desejava. Não é verdade que, antes da leitura da sentença, todos os inquiridos, anónimos ou não, afirmavam querer que a dita justiça se fizesse? E acrescentavam, por palavras meias ou inteiras, esperar que os arguidos fossem condenados, o que sugere que a justiça não tinha muita escolha e não se teria feito em caso de absolvição.
Não sei, não posso realmente saber, o que sucedeu nas referidas casas de Elvas e de Lisboa, e não sei se o sucedido envolveu os sujeitos apontados pelas testemunhas e agora confirmados pelo tribunal. Mas sei algumas coisas: sei que se mandou em paz a senhora que, na opinião dos juízes, era a anfitriã dos presumidos regabofes e logo conheceria cada um dos respectivos participantes; sei que o julgamento foi adiado para o dia seguinte a duas sucessivas, e relevantes, alterações ao Código Penal; sei que os condenados não ficaram detidos e que um deles andou, com ou sem advogado furioso a tiracolo, a insultar o tribunal que assim decidira frente às câmaras de tudo quanto é estação; sei que o julgamento demorou seis inacreditáveis anos; sei que a confiança que os poderes judiciais inspiram no momento em que o processo Casa Pia termina não é idêntica à que inspiravam no momento em que começou; sei que o processo Casa Pia é menos causa do que consequência deste desgraçado, e talvez irremediável, estado das coisas; sei que, por isto e por aquilo, já não se consegue fazer justiça em Portugal sem espalhar a proverbial sombra de uma dúvida. E sei que a alegria de muitos face à condenação de meia dúzia de suspeitos contrasta com a indignação de uns tantos enquanto, até certa altura, houve um sétimo e peculiar suspeito no rol. Quem? Vocês sabem de quem eu estou a falar…
29 de Setembro – Ainda teremos memória?
É bom não esquecer que: 25 de Novembro de 2009 Sócrates garantiu que não aumentaria impostos; a 8 de Março de 2010 Sócrates vangloriou-se: “O mais fácil seria aumentar impostos”; a 12 de Maio de 2010 Sócrates estava satisfeito com o crescimento no primeiro trimestre; a 6 de Junho de 2010 Sócrates garantiu que o mais recente aumento de impostos era suficiente; a 2 de Julho de 2010 Sócrates dizia que o crescimento do desemprego vai continuar a abrandar ; a 13 de Agosto de 2010 Sócrates garantia que o crescimento do PIB no segundo trimestre consiste num “sinal de grande encorajamento e confiança para a recuperação da economia portuguesa”; a 24 de Agosto de 2010 Sócrates afirmava que o crescimento da economia portuguesa, entre Janeiro e Junho, foi o dobro do previsto pelo Governo; a 29 de Setembro de 2010 Sócrates anuncia o segundo aumento de impostos do ano e decreta mais um roubo na função pública. Perante tal “responsabilidade”, “coerência” e “competência”, é fácil seguir o seu raciocínio:
1. De entre os indicadores disponíveis, escolher os mais favoráveis.
2. Entre a variação homóloga e a trimestral escolher a mais favorável.
3. Se todos os indicadores pioram, escolher os que pioram menos que os dos restantes países europeus.
4. Se um dado indicador é pior que os dos restantes países europeus, comparar com as previsões do governo/FMI/Bando de Portugal.
5. De entre várias previsões (União europeia/FMI/Bando de Portugal), escolher a mais favorável ao governo.
6. Se o desemprego aumenta, atribuir o aumento à sazonalidade.
7. Se o desemprego diminui, destacar as políticas do governo.
8. Se os dados estatísticos são desfavoráveis, alegar que estão desactualizados e que os dados mais recentes vão provar que o governo está no bom caminho.
9. Se um indicador for desfavorável atacar a credibilidade da fonte.
10. Justificar os maus indicadores com factores que não dependem do governo (crise internacional, preço do petróleo, desvalorização do euro, valorização do euro).
11. Se um indicador piora ligeiramente, alegar que estabilizou. Se melhora ligeiramente falar em retoma sustentada.
12. Evitar gráficos que dêem uma visão global dos indicadores, excepto quando os gráficos são favoráveis.
13. Se os resultados de curto e médio prazo são desfavoráveis, citar a tendência de longo prazo.

Nova Aliança, 14 de Outubro de 2010