16.11.11

Os funcionários públicos e os funcionários privados

1 de Novembro – Como responderia o leitor à questão: ‘Dava 24% do seu salário em troca da segurança de emprego vitalício?’
Muitos funcionários públicos deram, mesmo que ninguém lhes tenha perguntado nada. A decisão poupa milhões mas, em minha opinião, não tem pés nem cabeça. Há uma colectividade numerosa que defende estes cortes com base em dois argumentos: o de que os funcionários públicos têm segurança no trabalho; e que ganham mais do que o sector privado. Esta raiva contra a Função Pública é já um sintoma de cisão social. Mas está assente em várias falácias.

Os trabalhadores com contrato de função pública têm segurança do trabalho (apetece dizer: por enquanto). Mas estes cortes afectam muitos outros que a não têm: os funcionários das empresas públicas, de empresas municipais e de institutos que venham a ser extintos, se tiverem contrato individual de trabalho. Mas a principal falácia é outra: a de que os funcionários públicos ganham mais. Isso é verdade... em média.

Segundo estudos do Banco de Portugal, os funcionários públicos auferem entre 10% e 20% de remuneração superior à iniciativa privada. No entanto, são os que estão nas funções de baixas qualificações que ganham mais, o que se inverte ao longo da hierarquia. Ou seja, quanto "pior" se é, mais se ganha face às empresas; quanto "melhor" se é, pior se ganha comparando com a iniciativa privada.

Esta disfunção salarial é conhecida e não é resolvida, antes agravada, por este corte de salários cego. Quem mais ganha terá um corte superior a quem menos ganha, o que sendo socialmente justo, alarga o fosso face à iniciativa privada. O incentivo para sair da Função Pública (ou para baixar os braços) é agora grande e aqueles que o poderão fazer são os melhores. Há quem ache que são todos malandros e portanto é correr com eles. Essa sanha é míope: a desvalorização da Função Pública tem sido um pecado contra o Estado quase tão grande quanto foi a engorda do número dos seus quadros.

O problema da Função Pública é ser grande demais para o que faz (ou produzir de menos para a dimensão que tem), estar muitíssimo mal chefiada, mal distribuída e enfeudada. Seria estrategicamente melhor para o Estado ter feito um despedimento do que este corte cego. Os custos sociais, no entanto, seriam impraticáveis, tendo em conta o desemprego.

Ver tanta gente a exultar com esta navalhada é inquietante. Como o é ver que ninguém parece querer falar dos pensionistas, a quem também se retiram 14% das pensões dos próximos dois anos. Talvez seja porque os pensionistas não tenham sindicato... Mas não duvide: o Estado está a falhar num contrato que assinou. E se o Governo diz que 80% dos pensionistas não serão afectados, isso só significa que 80% das pensões são baixas.

O Governo ainda não explicou as contas para um corte tão profundo. O desvio do défice do primeiro semestre explica muito mas não tudo. Parece claro que o corte prometido da despesa intermédia está a falhar, e que a reforma do Estado avança como um caracol. Vítor Gaspar faz bem em assegurar o cumprimento das metas mas isso não pode significar a desistência do que Pedro Passos Coelho prometeu e ainda não fez. E, já agora, se o primeiro-ministro está tão cismado em encontrar os responsáveis políticos do desmando actual, devia actuar junto do mesmo sistema que o fez e fará medrar: o político. O financiamento partidário. O número de deputados. A reforma administrativa, que tem de ir mais longe.

Não havia alternativa a medidas com este alcance. Mas havia outras medidas possíveis. Teria sido melhor um imposto extraordinário sobre todos os rendimentos e sobre todo o património. É polémico, claro, mas não menos do que cortar salários à Função Pública. O Governo, que está refém da sua própria pressão de cortar despesa, optou por um caminho que corre o risco da demagogia.

O Estado não está a reestruturar a Função Pública, está a aniquilá-la. O país, no estado que está, precisa da "boa" administração do Estado e é esta que está a enxotar. Arrisca-se a ficar apenas com a "má", que é a comparativamente cara e improdutiva. A todos pede agora compaixão: que apesar de tirar quatro salários dos próximos 48, seja missionário. A salvação do Estado deixou, pois, de ser uma questão de governação. Passou a ser uma questão de fé. Que ela nos proteja.

Nova Aliança, 10 / Novembro / 2011

O aeroportdo de Frankfurt em Beja e Edite Estrela

15 de outubro – Querem perceber como chegámos aqui? Com exemplos destes: no primeiro semestre de 2011, o aeroporto de Frankfurt cresceu 8,3% em número de passageiros, para um total de 26,5 milhões. Numa escala diferente, o Aeroporto Francisco Sá Carneiro cresceu 17% em 2010, para um total de cinco milhões de passageiros. Numa terceira escala, o Aeroporto de Beja cresceu de forma incomensurável, e não precisou de dois semestres. Nem sequer de um. Para dizer a verdade também não precisou de muitos passageiros: em escassos quatro meses, subiu dos zero aos 798 felizes viajantes, os quais se distribuíram por 44 voos a uma média de 18,1 ocupantes por voo. A continuar assim, Beja terminará o primeiro ano de actividade com uns fulgurantes 2394 passageiros, só um nadinha aquém do milhão previsto para 2015 pelo saudoso Governo de Sócrates.”
Rui Oliveira, relações públicas da ANA, explica o sucesso: o Alentejo "é um destino de baixa notoriedade turística internacional"; a região "tem uma oferta hoteleira de reduzida dimensão e diversidade"; não há praias e é grande a distância até à Costa Vicentina, o que significa que "os transferes são onerosos"; "não existe uma cidade costeira alentejana onde o programa turístico se possa concentrar"; a região do Alentejo é "bastante quente" no Verão; os operadores turísticos e as companhias aéreas "evidenciam uma reconhecida aversão ao risco"; "não foi tarefa fácil" convencer o único operador turístico (inglês) a funcionar em Beja; foi "bastante complicado" convencer outros a comprar lugares nos charters em questão.
Critérios semelhantes ou aparentados justificariam a criação de aeroportos internacionais em Almeida, Nisa e Torre de Moncorvo. O que igualmente se justifica é uma pergunta: se, segundo a própria ANA, tudo conspira para tornar o Aeroporto de Beja um hilariante fiasco, que desmioladas, corruptas ou perversas cabeças se lembraram de o construir? Outra pergunta: porque é que as cabeças em causa não estão em tribunal, a responder pelos 33 milhões de euros gastos naquela simpática fraude? Os leitores conhecem as respostas e a sua justificação: isto não é um país a sério, é só um local mal frequentado.
Claro que ambas, respostas e justificação, esclarecem a presente situação de um país acabado, um país cujos descontentes protestam no centro de Lisboa em vez de se manifestarem por exemplo na pista de Beja (o volume de tráfego não ofereceria perigo), um país que parcialmente reclama a perpetuação dos exactos delírios que estrafegaram as suas contas. Por falar em contas, um cínico apuraria que o "investimento" no referido aeroporto chegava para financiar os táxis a partir da Portela aos dois mil e tal turistas anuais durante quatro ou cinco décadas - ou durante século e meio, se os turistas preferissem o rent-a-car. Já um optimista ouviria apenas o senhor da ANA garantir que, de acordo com um inquérito realizado às dúzias de pioneiros britânicos que aterraram no terminal do Baixo Alentejo, a "qualidade percepcionada foi alta". Valha-nos isso, estamos muito mais descansados agora.
17 de outubro – Confesso que gosto da senhora. Diz umas graças e alegra-nos nestes dias mórbidos. Além disso, acho profunadamente injusto admirar as proezas dos escassos compatriotas célebres no estrangeiro e ignorar Edite Estrela. O que fez ela desta vez? Apresentou no Parlamento Europeu uma declaração a exigir junto da ONU que o dia 22 de Setembro seja consagrado como o Dia Internacional da Rapariga. O objectivo, cito, é "assegurar que as raparigas usufruam do investimento e reconhecimento que merecem como cidadãs e importantes agentes da mudança". A proposta não surge agora por acidente: surge em plena Semana Europeia da Acção pelas Raparigas, invenção que coube, é escusado acrescentar, igualmente à dra. Edite.
Claro que, dado o significado da palavra no Brasil, é duvidoso que a dra. Edite conte com o entusiasmo da "presidenta" Dilma. Mas nada de dramas: não faltarão apoios às pobres raparigas que, volto a citar, "têm maior probabilidade de sofrer de má nutrição, estão mais expostas à violência ou intimidação, bem como a serem traficadas, vendidas ou exploradas sexualmente". Uma investigação recente sugere também que as raparigas são mais sujeitas a preencher o expediente laboral com disparates. Mas esta conclusão é resultado de uma amostra restrita que apenas incluía a dra. Edite. E a quem, por cortesia, os investigadores não perguntaram a idade.

Nova Aliança, 27 / Outubro / 2011

O cidadão anónimo do Cacém, o prémio escolar e os médicos mortos que passam receitas

3 de Outubro – Tão iguais e tão diferentes. Conhecem Isaltino Morais? Claro que sim. Ele esteve um dia preso por erro de uma juíza. É, ainda assim, um homem com sorte. Mário Brites, conhecem? Não acredito. Ele é um anónimo cidadão do Cacém que passou injustamente cinco longos meses atrás das grades. A história mete dois polícias que não merecem a farda, uma procuradora do Ministério Público que vai em conversas e, por fim, um juiz de instrução com escassa argúcia. Um agente da PSP vive em guerra com um vizinho. Uma vulgar questão de condomínio. Arranja maneira de tramar o outro. Apresenta queixa por tentativa de homicídio: jura que o vizinho tentou dar-lhe dois tiros e apresenta um colega como testemunha do crime. A procuradora percebeu, na sua fina inteligência, que Mário Brites, o inocente, mentia e que os dois polícias, mentirosos, falavam verdade - e promoveu a prisão preventiva do denunciado, prontamente aceite por um zeloso juiz. Resultado: Mário Brites passou cinco meses preso - até que a Polícia Judiciária, tarde e a más horas chamada ao caso, deu pela mentira. Parece que vai acabar tudo em bem: os polícias continuam polícias, a procuradora não deixa de ser procuradora e o juiz fica juiz. Ttudo normal…

6 de Outubro – De vez em quando, querem atirar-nos poeira para os olhos quando falam de "responsabilidade social" nas grandes empresas. Os relatórios que dão conta do contributo dos grupos económicos em prol da sociedade nunca deixaram de me parecer uma forma tosca de esconder a má consciência de administradores e directores. Com a decisão do Governo de anular os prémios de 500 € aos melhores alunos do secundário, fiquei convencido de que tinha chegado a oportunidade para os grandes empresários se juntarem aos que dizem que o mérito não pode passar sem reconhecimento. Esperei que uma EDP se adiantasse e chamasse a si a atribuição do prémio… uma Portugal Telecom que viesse dizer não, os melhores alunos têm direito a prémio e sou eu quem o vai pagar; uma Galp que se insurgisse contra a decisão de não premiar o mérito e tomasse como sua essa responsabilidade… mas nada. Foi por isso com enorme alegria que dei conta de que uma pequena empresa de Viana do Castelo, que felizmente desconhece a importância dos relatórios de "responsabilidade social", não quis defraudar as expectativas do melhor aluno da cidade (média de 19,4 valores e entrou em Medicina no Porto) e fez questão de pagar o prémio imediatamente. Senhores António Mexia, Zeinal Bava e Ferreira de Oliveira… que desilusão!...

9 de Outubro - Abençoada troika: desde que chegou, os esqueletos começaram a sair dos armários. Esqueletos metafóricos, como nas contas da Madeira; ou literais, como nos 500 médicos mortos que continuam nas bases de dados do sistema. Mortos ou, pelo menos, com grandes probabilidades de já não estarem vivos, disse o vice--presidente da Administração Central do Sistema de Saúde., não sei se por piada. A verdade é que não sei se deverei ficar descansado com a imprecisão da frase: se o nosso sistema de saúde já não sabe distinguir os vivos dos mortos, que Deus nos ajude a todos. Mas talvez a dúvida do vice-presidente se prenda com a quantidade de receitas que os médicos mortos continuam a passar aos vivos, tal como denunciado pela inspecção-geral. Meros casos de fraude? Admito que sim. Mas também admito que Portugal seja o único país do mundo onde os mortos, por motivos de solidariedade nacional, continuam a dar o seu contributo para sairmos da crise. Alguém devia dizer à sra. Merkel que a nossa falta de produtividade não é coisa do outro mundo.


Nova Aliança, 13 / Outubro / 2011

O último filme de Woody Allen

19 de Setembro - Woody Allen tem filmado na Europa. Mas a Europa parece ignorá-lo. Eu esperei que "Meia Noite em Paris" chegasse a Portugal.
Veio agora e fui vê-lo. Chegou num Renault dos anos 20 e levou-me para o melhor filme de Woody Allen desde "Crimes e Pecados" (1989). Surpreendidos? Curiosamente, é sempre a mesma coisa: não há filme de Woody Allen que não transporte o mesmo descontentamento. O descontentamento do presente.
Esse descontentamento tem vários nomes, em vários filmes. Em "Stardust Memories - Memórias" (1980), filme pouco citado e pouco amado, chama-lhe Woody "a melancolia de Ozymandias", uma referência ao poema de Shelley no qual um antigo viajante encontra uma estátua de Ozymandias, "rei dos reis", perdida nas areias do deserto.
A melancolia de Woody expressa a perplexidade de Shelley: como é possível alimentar qualquer vaidade sobre a existência terrena quando a morte e o esquecimento são certos? Trata-se de uma questão gélida porque Woody Allen exclui a hipótese literalmente sagrada: a hipótese de um Deus onipresente e onipotente, que confere à passagem terrena um propósito e um sentido.
Mas a questão que devemos colocar é: haverá propósito? Ou então: haverá sentido? Parafraseando as palavras do Prof. Levy em "Crimes e Pecados" (que, sintomaticamente, se suicida no final), são os seres humanos que conferem propósito e sentido às suas vidas; e fazem-no através de coisas tão mundanas como o amor, a amizade, a arte, o trabalho --e a esperança de que talvez as gerações futuras possam saber mais.
Repito: propósito e sentido. É exatamente o que falta a Gil em "Meia Noite em Paris" (soberbo Owen Wilson). Ele, roteirista em Hollywood com assinalável desprezo por Hollywood, visita Paris com a noiva e os futuros sogros. Para ele, Paris é uma festa. Melhor: Paris era uma festa, uma "festa móvel", tal como Hemingway a descreveu no famoso relato dos anos 20. O presente é apenas uma pálida imagem desse tempo ‘jurássico’.
Difícil discordar. Sobretudo para quem leu "Paris é uma Festa" com grata voracidade. E se o fizemos na adolescência, a coisa piora: será possível ser tão pobre e tão feliz, perguntava eu nessa idade, abismado pela vitalidade da prosa límpida de Hemingway?
É possível, dizia-me ele, quando amamos o que fazemos: existe no trabalho bem feito uma gratificação existencial que suplanta qualquer luxo. Era --e é-- uma grande verdade, que só o tempo acabaria por confirmar.
Hemingway foi o meu Virgílio. Imaginava-o a almoçar no Deux Magots e na Brasserie Lipp. (O Michaud era mais caro --mas, espreitando pela vitrine, era possível ver James Joyce a almoçar com a família).
Bebia muito: xerez seco e, nos dias especiais, uma garrafa de Pouilly-Fuissé. Comia ainda melhor e com pouco dinheiro: "pommes à l'huile", ostras "marennes" (melhores que as "portugaises", dizia Hemingway, para me provocar), trutas "au bleu".
Quando o bolso apertava, ficava em casa, a trabalhar, onde havia tangerinas e castanhas assadas. Ou, nas visitas ao salão de Gertrude Stein, ameixas escuras e amoras silvestres.
Foi Miss Stein, aliás, quem me deu o mais importante conselho literário: só ler livros verdadeiramente bons ou verdadeiramente maus. São os únicos que ensinam alguma coisa.
Woody Allen também leu "Paris é uma Festa". E também o viveu. E o que impressiona em "Meia Noite em Paris" é a apropriação criativa da idealização de Hemingway --essa "idade de ouro" que ressuscita com as doze badaladas para resgatar Gil do descontentamento do seu presente, transportando-o para o passado.
Gil vai. Vai e conhece Zelda, Scott Fitzgerald, Cole Porter e Hemingway "himself", que fala como o verdadeiro escrevia: em golfadas de romantismo e fanfarronice. Mas também conhece Adriana (Marion Cottillard, "ma chérie"), que partilha com Gil a mesma nostalgia pelo passado. Só que, para ele, o passado é Paris nos anos 20. Para ela, que vive nos anos 20, a verdadeira nostalgia é Paris na Belle Époque.
E quando ambos recuam ainda mais e vão visitar a Belle Époque ao Moulin Rouge de Toulouse-Lautrec, encontram Gauguin e Degas, descontentes com a Belle Époque --e suspirando pelo Renascimento de Ticiano e Michelangelo.
Vamos recuando, sempre e sempre, para evitar o descontentamento do presente. Mas essa forma de escape não é apenas ilusória porque todas as "idades de ouro" são sempre um tempo presente e, por isso, descontente para quem as habitou. Esse escape permanente impede Gil de viver no seu presente. E de fazer as escolhas que dão sentido e propósito à sua vida.
Não que essas escolhas sejam garantia de nada. Afinal, o descontentamento da nossa condição é erradicável --e constitui o cimento filosófico do cinema de Woody Allen.

Nova Aliança, 30 / Setembro / 2011

O massacre de Oslo

4 de Setembro – Quando as imagens do massacre de Oslo nos entraram em casa, julgámos estar na presença de um louco. Uma leitura na diagonal das 1500 páginas que Anders Breivik publicou antes de sair da sua quinta norueguesa para provocar explosões no centro de Oslo, dirigir-se ao acampamento de Utøya e matar a sangue-frio dezenas de jovens, reforçou a minha ideia de que estamos mais perante um fanático. O que ele escreve é arrepiante, muitas vezes mentiroso, mas ele sabe o que escreve e por que escreve, quando lhe é útil mentir ou não mentir.
Sabe também que vocabulário usar. Nunca diz que o seu opus é um “manifesto” (palavra que erradamente tem sido usada) mas um “compêndio”, ou seja, um conjunto de textos que pretendem abranger um tema. O compêndio dele tem pelo menos uma meia-dúzia de partes. Numa das primeiras, tenta explicar como o “marxismo cultural” tomou conta do Ocidente a partir dos anos 60. Noutra, tenta provar que demograficamente os muçulmanos dominarão a Europa. Até aqui, nada que não tenhamos lido no conservadorismo mais rebarbativo, com o mesmo manipular de dados e excitar de fobias. Noutra parte ainda, analisa em detalhe a lei canónica para demonstrar que é lícito aos cristãos usar da violência, matarem infiéis e martirizarem-se. Depois passa à explicação de como fabricar bombas ou que alvos atingir (universidades ou eventos literários onde se encontrem muitos “multiculturalistas”, por exemplo). Descansem, caros leitores, não entrarei em pormenores…
Aquilo não é uma coisa incongruente, tendo em conta as intenções do autor. Aquilo é um vírus. Depois de preso ou morto, Breivik desejava contaminar o cérebro de outros como ele. Seria uma excelente surpresa que não o conseguisse…
Como devemos responder? Escrevo aqui enquanto “traidor de categoria B” (na qual Breivik inclui “políticos multiculturalistas, parlamentares europeus, escritores, conferencistas” e outros a punir com execução e expropriação) e posso apenas dizer: não com prisões secretas, não com tortura, não com “rendições extraordinárias”, não com mais paranóia, não com discurso securitário, não com violação de privacidade a cidadãos não-suspeitos, não com interferências à liberdade de expressão, não com leis feitas à medida, não com estados de exceção, não com invasões de países, não com mentiras para as justificar, não com guerras de civilizações ou do que quer que seja. Não queremos nada disso, e não precisamos de nada disso.
A nossa sociedade necessita de um mandamento para o século: não odeies. Pensem nele. É simples. É para todos. É difícil. Não odeies.
Não me atreveria a propor amar o próximo, amar o teu irmão de outra religião — seria provavelmente considerado multicultural demais, relativista demais, efeminado demais, politicamente correcto demais — e essas são,ao que parece, as grandes vergonhas da nossa época.
Então fica assim — como mínimo denominador comum, ao menos, poderemos acertar nisso? — não odeies. Não odeies o outro. Não odeies o seu erro se queres amar a tua verdade. Não odeies a sua verdade se queres amar o teu erro. Não odeies sequer o ódio. O ódio quer ser odiado. O ódio deseja fervorosamente mais ódio. Se dissermos aos outros para não odiarem, pode ser que este século corra bem. É simples. Não odeies nada. Eu disse que era difícil…




Nova Aliança, 9 / Setembro / 2011

A Felicidade

19 de Agosto - Quando, certa vez, perguntaram ao escritor Gonzalo Torrente Ballester o que pensava de determinado assunto, ele encarou o seu entrevistador e atirou: “E o que tem o senhor a ver com isso?”
Podemos falar sobre a Felicidade? Uns dirão: Felicidade, haverá tema mais infeliz? Dou-vos um único conselho: não vale a pena seguir conselhos. Os livros de auto-ajuda que estão por aí na moda são livros de anti-ajuda. O que eles fazem é transformar a felicidade em direito e, coisa pior, em dever. Conheço casos: gente que começou infeliz lendo um desses manuais e, no final da maratona, estava mais infeliz ainda.
Se isso acontece para os indivíduos, o cenário muda de figura para as nações. Infelizmente, para pior… Falar de um "país feliz" é tão absurdo como falar de um "gambozino". Os países não são pessoas. Mas os políticos tentam.
Leio regularmente que, por esse mundo fora, filósofos, psicólogos e economistas estudam medidas públicas destinadas a elevar a felicidade da população. Alguns especialistas, para medir a riqueza de um país, falam mesmo em "Felicidade Interna Bruta" como mais importante que "Produto Interno Bruto".
O "The New York Times" conta até que, nos Estados Unidos, o Censo de Boston começou a perguntar aos habitantes quão felizes eles se sentiam. Estão a ver: a ideia do poder político é reunir respostas, fazer gráficos rigorosos sobre os humores da população - e depois aplicar medidas para tornar o pessoal mais alegre. Sem ser através de químicos no ar ou na água.
É bom deixar já o aviso: nada disso funciona. E não funciona porque a felicidade não existe - no coletivo. Existem felicidades particulares, individuais, muitas vezes intransmissíveis, que não podem ser reduzidas a um denominador comum. Eu sou feliz quando toco harmónica. O meu vizinho é infeliz quando me ouve a tocar harmónica. Definitivamente, caso encerrado.
Afinal de contas, as pessoas não são números. São pessoas: distintas, irrepetíveis. Muitas vezes insondáveis e insolúveis. E aquilo que as torna felizes, ou infelizes, varia de caso para caso e, mais ainda, de momento para momento. De nada vale eu responder ao Censo que me sinto feliz hoje quando, ainda ontem, eu estava infeliz da vida.
Mas a felicidade não é apenas um conceito deslocado para pensarmos politicamente; ele pode ser sobretudo perigoso. A ideia 'utilitarista' de que o governo deve perseguir sempre 'a maior felicidade para o maior número', apesar do seu agradável apelo democrático, pode legitimar situações intrinsecamente desumanas ou imorais.
Se, por hipótese remota, uma comunidade se sente feliz perseguindo judeus, ou negros, ou mulheres, ou homossexuais, ou anões, que podem os "utilitaristas" responder a esse conjunto de preferências coletivas? Acreditar que a vida moral é uma mera questão quantitativa abrirá sempre portas para horrores mil.
O Estado quer "promover" a felicidade? Muito simples: basta que se retire das vidas individuais sem exercer sobre elas qualquer poder paternal, autoritário, totalitário.
Quando um Estado pergunta "quão feliz você se sente?", só é possível responder a isso com uma nova pergunta: "E o que você tem a ver com o assunto?"


Nova Aliança, 3 / Setembro / 2011

A 'morte' no serviço público de televisão e o 'eterno' detetive Columbo

1 de Julho – Num dia em que a situação grega está na ordem do dia e o programa do governo é apresentado na Assembleia da República, um dos telejornais abre com imagens do local onde os admiradores de Angélico Vieira estão concentrados.
Tal facto diz muito da ideia que alguns têm da famosa expressão ‘serviço público’. Para o endeusamento que se faz da personagem, não interessa nada que o carro circulasse na via pública sem seguro, ou que a maioria dos ocupantes não tivesse colocado o cinto de segurança.
Também parece não interessar a ninguém saber a que velocidade ia a viatura ou se o condutor apresentava excesso de álcool ou drogas no sangue.
Ninguém falou disso. A comunicação social em peso preferiu a exploração do efeito emocional e ficou por aí.
Sensivelmente na mesma altura morreu o empresário Salvador Caetano. É verdade que o senhor tinha 85 anos ( uma eternidade ) e estava doente ( uma normalidade ), mas a histeria mediática à volta do desaparecimento do jovem artista Angélico Vieira, por contraste com a discrição da notícia da morte do empresário nos órgãos de informação dá-nos um excelente retrato da ordem de valores da sociedade actual.
Por aqui se vê que um jovem cantor e actor - que há meia dúzia de anos era um total desconhecido - é muito mais importante do que um homem que subiu na vida a pulso, construiu um império industrial com a importação de automóveis do Japão, contribuiu para a produção da riqueza nacional e deu emprego a milhares de pessoas. Numa altura, sublinhe-se, em que não havia Internet, fax, telemóveis e em que as chamadas internacionais era principescamente paga.
Por aqui se vê que, para muita gente, é mais importante uma novela de duvidosa qualidade, com adolescentes, do que construir fábricas, criar empregos no país e dar comida a inúmeras famílias.
Apesar de tudo entendo muito bem a reacção dos adolescentes neste caso. A culpa desta inversão de valores nem sequer é deles. É da geração anterior, dos pais, que os educaram assim. Para a diversão e não para o trabalho.

3 de Julho - Há mais de trinta anos, quando a televisão e a leitura preenchiam grande parte dos tempos livres, muitas personagens entravam dentro de casa e ‘exigiam’ um espaço. Peter Falk ( 1927-2011 ) foi um deles. O ‘eterno’ detective Columbo fazia parte da minha adolescência televisiva e ajudou a passar muitos serões na época ( foram 70 episódios ).
O seu modelo de investigação era desarmante, a voz nasalada era um convite ao riso, os modos eram os de um desastrado e desmazelado – havia quem usasse gabardines ‘à Columbo’.
Também era verdade que, enquanto assistíamos aos episódios, na TV, desconhecíamos a ‘teoria da ciência’ do seu método de investigação, e que o aproximaria de um Sherlock Holmes californiano. Peter Falk nunca conseguiu deixar de ser Peter Falk e de se confundir com o talento triste e solitário de Columbo. ‘Só mais uma coisa’, costumava ele dizer no fim para finalmente enredar o culpado. E fazia-o. Columbo ou Peter Falk? Morreram os dois.

Nova Aliança, 7 / Julho / 2011

5.7.11

O copianço dos futuros juízes e os 'erros' das sondagens

17 de Junho – Se dúvidas houvesse sobre o modo como se faz justiça em Portugal, o recente caso do copianço generalizado num teste de uma cadeira do Centro de Estudos Judiciários.retiraria qualquer dúvida.
Acrescente-se que, perante o facto, o CEJ, por decisão administrativa, atribuiu um 10 a todos os alunos. E o próprio director adjunto do CEJ justificou a decisão afirmando que entre os 140 auditores de Justiça houve quem não tivesse copiado, pelo que uma sanção mais pesada seria injusta para estes últimos, que também ficaram com nota 10.
Quer isto dizer que é legítimo punir os inocentes, desde que a pena não seja muito pesada. No caso concreto, a instituição optou por nivelar por baixo, punindo cegamente e sem fundamento todos por igual. Por não ter criado em devido tempo mecanismo que impedem o copianço e mecanismos que detectem sem margens para dúvida quem copia, o CEJ vê-se obrigado a punir levemente todos, incluindo os que não copiam.
Mas como vão ser juízes, é melhor ficarmos caladinhos perante uma rasteirice que não se aceita nem nos momentos mais tristes da vida de uma escola pública comum.Para que serve eu tentar incutir brio nos meus alunos, se é com isto que eles se deparam em candidatos a exercer um dos poderes basilares da República. Copiar num exame é infantil e desonesto; e para todos os efeitos é um crime – que, em princípio, a lei não pune. Que seja cometido por futuros juízes e magistrados é ainda mais grave.
Protejam-se, cidadãos, eles estão a chegar...

19 de Junho – Como muitos outros, fiquei surpreendido com a diferença entre os resultados finais das últimas eleições e as sondagens divulgadas até à véspera das mesmas. Tenho para mim que as razões desta discrepância são diversas, mas a confusão lançada na opinião pública poderia ter sido evitada.

Julgo, em primeiro lugar, que as sondagens constituem uma estimativa da intenção de voto num dado momento, embora sejam interpretadas pelo público, e até pelos media, como uma previsão. De forma a dissipar esta confusão, impõe-se que os institutos passem a apresentar não só o resultado das sondagens, mas que expliquem também de que forma estes podem antecipar (ou não, pelos vistos) os resultados eleitorais.
Para além disso, o nível de indecisos e não respondentes incluídos nos estudos foi enorme ao longo da última campanha eleitoral, atingindo valores da ordem dos trinta e muitos por cento, o que inviabiliza a priori qualquer previsão. Compreende-se agora, a afirmação veiculada pelos que anunciavam que os indecisos da área socialista ficaram em casa para penalizar Sócrates, enquanto os da área social-democrata foram votar, num último impulso que os impelia à mudança.

Por último, as sondagens dos diversos institutos não consideraram a distribuição de mandatos pelos diversos círculos. Desde logo, ignoravam que, em cerca de quinze dos vinte círculos, a distribuição de mandatos é quase inamovível. De facto, a adopção do método de Hondt, nos círculos com quatro ou seis deputados, exclui os pequenos partidos e privilegia os dois maiores. Aliás, o sistema apenas se revela verdadeiramente proporcional nos maiores círculos, como Porto e Lisboa. Acresce ainda que nos cálculos apresentados não foram considerados os votantes das ilhas e dos círculos da emigração, onde o PSD é claramente dominante face ao Partido Socialista.

Com todos estes efeitos somados, não é pois de admirar que as intenções de voto no PSD tenham sido subavaliadas ( com que interesse escondido? ), enquanto relativamente ao Partido Socialista e ao CDS eram sucessivamente inflacionadas.
Mas a verdade está reposta com o acto eleitoral, que constituiu o dia do juízo final, não só para Sócrates, mas também para as sondagens.

Nova Aliança, 22 / Junho / 2011

A agressão das duas adolescentes e Martin Amis

31 de Maio – Não acredito que o leitor não tenha visto o filmezinho em que duas adolescentes espancam uma terceira junto a um centro comercial de Benfica. E quem mais se esforçou para que toda a gente o visse foram os outros adolescentes que testemunharam a cena, registaram-na no vídeo do telemóvel e publicaram-na imediatamente no Facebook. E os jornais televisivos que a transmitiu não sei quantas vezes no noticiário enquanto uma jornalista (em off) descrevia o horror que aquelas imagens devem suscitar.
Sobre o episódio, julgo não hver muito a acrescentar. As imagens falam por si. Histórias de proezas idênticas surgem com crescente frequência mas apetece-me comentar o comentário da jornalista em questão, que encerrou a "peça" confessando a estranheza que lhe suscita a selvajaria de uma geração que, cito de memória, tem tudo para não ser selvagem.
Eu até compreendo, em Portugal todos somos especialistas em Educação. Mas a senhora estava à espera de quê? Uma escola "inclusiva" e reduzida a depósito da criançada? Professores sem autoridade e vontade? Pais que não educam por incapacidade ou demissão? Consolas de jogos? Telemóveis? O Magalhães?
Até parece que o universo em peso parece conspirar de modo a facilitar, ou a incentivar, a fúria animal das meninas de Benfica. Ao contrário da senhora jornalista, o que me espanta é o facto de ainda haver adolescentes que não passam os seus dias a pontapear o semelhante. Ou talvez passem e não chegam ao Facebook. Ou chegam ao Facebook e os telejornais não notaram. Ou notaram e eu não reparei nos telejornais, que têm tudo para ser úteis e afinal… são isto.
3 de Junho - Gosto de Martin Amis. Dos ensaios e dos romances. Penso que, depois de Gore Vidal, não existe pena mais inteligente sobre livros e literatos.
Ora, é pena que, ao natural, Amis não tenha a mesma elegância. Agora, conta o "The Sunday Telegraph", o escritor inglês desceu o chicote sobre a Família Real em declarações à imprensa francesa. "Filistinos", diz Amis. E porquê?
Logicamente, porque ignoram a importância de Martin Amis no esquema geral do mundo. Pior: nem sequer conhecem a sua obra literária. "A rainha não escuta ninguém", diz Amis, que teve encontros formais com a rainha e percebeu, pelo olhar enfadado da senhora, quão insignificante ele era.
O mesmo com o marido, o duque de Edimburgo. "Sou escritor", disse-lhe Amis. O duque, espantado, replicou: "A sério?"
As palavras de Martin Amis têm interesse porque não é todos os dias que vemos um "snob" lambendo as feridas em público. E uso o termo "snob" no sentido em que ele era usado para hierarquizar os alunos na universidade de Cambridge no momento da matrícula: depois do nome, aparecia a condição social. Para quem não nascera em berço aristocrático, um "sine nobilitas" ("sem nobreza", i.e., "s.nob") arrumava com o sujeito.
Exatamente como Amis se sente arrumado, prova acabada de que o "filistino", na verdade, é ele. Se Amis não concedesse à Família Real importância alguma, jamais haveria semelhante exibição de vaidade e ressentimento. Para os neutros em matéria monárquica, a existência dos Windsor é, quando muito, um anacronismo pitoresco do qual não exigimos reconhecimento ou aplauso.
Mas Martin Amis quer reconhecimento e aplauso. E apesar de deplorar a histeria mundial com o casamento real do passado dia 29 de abril, ele não se distingue das multidões sentimentais que encheram Londres para saudar William e Kate.
A única diferença é que as multidões aplaudiram os noivos. Amis, se pudesse, atirar-lhes-ia tomates ou ovos podres. Duas formas de paixão são duas formas de paixão.O leitor, que intimamente também alimenta iguais sentimentos de amor e ódio pela instituição monárquica, sabe do que falo.
Para concluir, Amis confessa ainda, em tom dramático, que gostaria de não ser inglês. Pobre Martin. Só um perfeito inglês teria uma relação tão intensa e patológica com a primeira das famílias nativas.

Nova Aliança, 9 / Junho / 2011

Strauss-Kahn, a violação absolvida e Luís Fernando Veríssimo

Imaginemos que o caso Dominique Strauss-Kahn tinha acontecido ontem, em Portugal, no hotel Ritz. O indivíduo, sozinho numa suite, tentar abusar sexualmente de uma empregada o hotel. E fugir do local, à pressa, deixando para trás telemóvel e outras coisas pessoais.
Imaginemos que a empregada fazia queixa na esquadra de polícia mais próxima, indicando os factos, a nacionalidade do suspeito e o evidente perigo de fuga do indivíduo.

Que fazia a PSP, neste caso? Tomava "conta da ocorrência". Escrevia no computador o relato da vítima, pedia-lhe provas a apresentar e...ficava por aí.

A PSP nunca iria ao aeroporto, à noite, tentar interceptar o suspeito em fuga. Nunca teria o bestunto e a racionalidade em abordar com rapidez exigível o responsável do aeroporto e diligenciar legalmente pela detenção do suspeito para averiguação necessariamente sumária e antes de apresentação a um juiz.
Mas consideremos que havia no posto da PSP um agente que tivesse esse dom raro da capacidade investigatória adequada às circunstâncias. Imaginemos que iria em patrulha ao aeroporto, entraria no avião e deteria o suspeito. E imediatamente comunicava o facto ao MºPº como manda a lei processual penal.
O que aconteceria? Não é difícil de imaginar, tendo em conta o que sucedeu no processo Casa Pia, até porque os intervenientes são quase os mesmos.
O inefável Rui Pereira seria acordado às duas da manhã. O que faria? Será difícil de imaginar? Faria como Souto Moura fez nessa altura em que António Costa, um ex-ministro da Justiça do PS fez, pressionando-o para resolver o assunto a contento dos socialistas em perigo? Diria que nada poderia fazer porque o assunto estava já nas mãos de um juiz de instrução ou, no caso, do MºPº?

Alguma vez poderíamos supor que o suspeito ficaria detido para apresentação a um juiz, não hoje, mas amanhã, segunda-feira?

A resposta a estas perguntas deve ser colocada ao responsável pelo FMI que por cá esteve a dar palpites sobre o nosso sistema jurídico-penal...
Uma mulher grávida de 34 semanas foi violada no consultório do psiquiatra que consultou para a ajudar a ultrapassar a depressão de que sofria. O médico que a violou, com sexo oral e cópula, foi absolvido pelo Tribunal da Relação do Porto porque os actos praticados, considerados provados, não foram praticados com a violência a que a lei obriga, deliberaram dois dos três magistrados.

O acórdão foi revelado esta quinta-feira pelo Diário de Notícias. A relatora do acórdão, a juíza Eduarda Pinto e Lobo, considerou que não ficou provado se o médico, ao obrigar a paciente a realizar sexo oral, o fez a agarrar a vítima pela cabeça ou pelos cabelos.

«Não se vislumbra como é possível considerar o acto de agarrar a cabeça como traduzindo o uso de violência de modo a constranger alguém à prática de um acto contra a sua vontade. A não ser que se admitisse que o mero acto de agarrar a cabeça provoca inevitável e automaticamente a abertura da boca», lê-se no documento, citado pelo DN.

Os juízes que assinaram a absolvição do médico, que tinha sido condenado em primeira instância a cinco anos de pena suspensa e a pagar 30 mil euros à vítima, consideraram ainda que a grávida de sete meses não ofereceu resistência.

«Se a força física utilizada tem de ser, como atrás se disse, a destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada, o que pode afirmar-se é que no que respeita ao coito oral não se provou qualquer tipo de resistência por parte da vítima. Ou, pelo menos, uma resistência que o arguido tivesse tido necessidade de vencer através do uso da violência», escreveram.

A violação da paciente não foi apenas no sexo oral. O médico obrigou a vítima à cópula empurrando-a contra o sofá do consultório. Facto que também não convenceu os meritíssimos juízes.

«Os factos provados não permitem concluir que, ao empurrar a ofendida contra o sofá, o arguido visou coarctar-lhe a possibilidade de resistência aos seus intentos ou se, com esse acto, pretendeu apenas o arguido concretizar a cópula que, de outra forma, não conseguiria, dado o avançado estado de gravidez da vítima: 34 semanas. Para que o empurrão na ofendida integrasse o conceito de violência, visado como elemento objectivo do crime de violação, teria de traduzir um «plus» relativamente à força física normalmente utilizada na prática de um acto sexual», determinaram.

Um dos juízes do colectivo, José Baião Papão, votou contra esta decisão e na declaração de voto escreveu que a «aparente fruste resistência da assistente é inteiramente compatível com o estado de fragilização em que então se encontrava: depressão e gravidez».
30 de Abril – Durante vários dias não se falou de outra coisa. Muitos ansiaram pelo dia de hoje apenas para o ver. À frente dos televisores, verdadeiras multidões aguardaram religiosamente para o poder avistar.
Claro que não falo do acordo com o FMI. Isso não é verdadeiramente importante ao lado do que realmente interessa: o vestido de noiva de Kate Midleton

Em jornais e televisões, não havia especialista doméstico que não oferecesse palpites sobre o modelo escolhido. O caso pode despertar um riso malicioso. Não contem comigo. Eu também o vi.
Segundo os especialistas, o casamento terá custado entre 20 a 30 milhões de euros, em grande parte suportados pelos contribuintes, para garantir a segurança do evento e a limpeza das ruas. Mas é possível que o retorno do ‘turismo real’ (hotéis, restaurantes, televisões, etc.) ascenda aos 6 mil milhões.
Curioso: nós, latinos e vulgares, desprezamos estas coisas de reis e princesas e, em vez disso, construímos estádios de futebol que continuam por aí a apodrecer e a arruinar o bolso público. Os ingleses, monárquicos e elitistas, montam e desmontam uma festa global em poucos dias – e multiplicam o investimento rumo à estratosfera. Se fosse necessário um argumento de peso a favor da restauração monárquica, bastaria este: um vestido de noiva não precisa de grande manutenção.

4 de Maio – Deixem-me apresentar-vos um dos melhores cronistas da língua portuguesa: Luís Fernando Veríssimo. Um dos mais populares escritores brasileiros, mais conhecido pelas suas crónicas e textos de humor publicados diariamente em vários jornais brasileiros, Verissimo é também cartoonista e tradutor, além de guionista de televisão, autor de teatro e romancista. Já foi publicitário e é ainda músico, tendo tocado saxofone em alguns grupos. Com mais de 60 títulos publicados, é filho do também escritor Erico Verissimo. Eis um dos seus textos, transcrito do original com a devida vénia:
“Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar:
Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em São Paulo.
Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, "em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!" ela disse. Então, sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas...
Se eu soltar, ela vai às compras!
Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico.
Então, ela disse: "nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar".
Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.
Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a "senhora certa".
Só não sabia que o primeiro nome dela era "sempre".
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: "O que tem na TV?"
E eu disse: "Poeira".”

Nova Aliança, 12 / Maio / 2011

A aterragem de emergência e Terry Jones

16 de Abril – Podem não acreditar mas juro que é verdade. E juroporque li. Ontem, um jornalista foi esperar os passageiros do voo Rio-Lisboa que teve de fazer uma aterragem de emergência em Salvador. Lembram-se do caso? Houve uma explosão, sentiu-se cheiro a queimado, viu-se fumo na cabina, até que o avião aterrou na pista cercada por ambulâncias e carros de bombeiros. Que susto, não é? Podem crer mas a história não acaba aqui. No texto da agência publicado pelos jornais, cito o parágrafo a seguir ao susto: "O pior mesmo, segundo o testemunho [de uma] passageira, passou-se já em pleno aeroporto de Salvador..." E a testemunha, confirmada por outros passageiros, insistiu (e os jornais publicaram e eu li ): "Aí é que foi pior..." Ali, no aeroporto de Salvador. Ali, pois, aconteceu o indizível mesmo para as pessoas curtidas por uma quase desgraça recentíssima. Mas aconteceu, o quê? Uma bomba, como a da ETA em Barajas? Um homem-bomba, como recentemente no moscovita aeroporto de Domodedovo? Racketing da polícia como no aeroporto de Kinshasa?... Vou directo ao horror sofrido pelos passageiros: "Estiveram até depois das 06.00 até que foram transferidos para um hotel." Vocês dão-se conta da ironia da história? Horas até ser transferido para um hotel! Outro qualquer tinha ido para o bar comemorar não ter ido para o galheiro e escapava-me a oportunidade de pôr nos meus cartões de visita: "Fulano de Tal - Ex-sobrevivente de uma transferência demorada para um hotel em Salvador." Claro que nunca me faltaria conversa nos jantares sociais.


19 de Abril – O nome de Terry Jones diz-vos alguma coisa? Eu relembro: Jones, pastor na Flórida, ameaçou em tempos que queimaria o Corão por considerar o livro nefasto e diabólico. Felizmente, acabou por desistir da ideia e, dessa maneira, regressou ao justo esquecimento de onde nunca deveria ter saído.
Por pouco tempo, vê-se agora. Recentemente, Jones voltou ao local do crime e queimou mesmo o Corão. Os meios de comunicação norte-americanos, dessa vez, ofereceram reduzido palco ao pastor. Mas um discurso do presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, condenou o ato e voltou a trazer Terry Jones para o mundo dos vivos. Ou, melhor dizendo, dos mortos: na cidade afegã de Mazar-i-Sharif, um ataque a funcionários da ONU provocou 7 vítimas. Em Kandahar, mais 9, sem falar de incontáveis feridos, destruição de lojas, escolas e carros. E no Ocidente?
No Ocidente, é provável que o digníssimo leitor se sinta indignado pela atitude de Jones, questionando seriamente: por que motivo o pastor ofendeu a religião dos outros?
Não tenciono desculpar Terry Jones, que merece tratamento psiquiátrico e não defesa pública. Mas, em vez dessa, talvez devessemos fazer a perguntaa pergunta: será razoável matar e destruir porque alguém queimou o Corão do outro lado do mundo?
Responder a essa questão não é difícil. Basta que o leitor faça uma inversão de papéis e, mesmo sendo profundamente cristão, imaginar por momentos o que faria se um tresloucado afegão queimasse a Bíblia por considerar o texto herético.
Aposto que não sairia por aí decidido a matar e a destruir ( afinal de contas, tenho em grande conta o meu leitor… ). Existe uma diferença fundamental entre queimar livros e queimar gente. Ou não existe?
Terry Jones, no seu fundamentalismo bacoco e fanfarrão, é com certeza um personagem doente. Mas nessa história do Corão queimado é preciso não esquecer onde está a verdadeira doença.O leitor sabe do que eu estou a falar…


Nova Aliança, 28 / Abril / 2011

As viagens em 'económica', as viaturas dos gestores e o aquecimento global

4 de Abril – Há coisas engraçadas. Quando as viagens de avião dos eurodeputados eram pagas ao quilómetro, eles escolhiam ir em turística. Pudera, convinha nessa altura. Depois, passaram a ser reembolsados só mediante a entrega do bilhete e começaram a viajar em executiva. Obviamente interessava a mudança. Esta semana, o eurodeputado português Miguel Portas (do BE) fez uma proposta para que as viagens de avião com menos de quatro horas fossem só em turística. Em tempo de crise, a proposta fazia poupanças públicas (por exemplo, um Lisboa--Bruxelas ficava três vezes mais barato). E, além do mais, tinha sentido nos tempos que correm:... Ora, o Parlamento de Estrasburgo votou contra (402-216), confirmando o egoísmo dos que ‘podem’ explorar o próximo ("temos de apertar o cinto: apertem!"). Havia, porém, uns eurodeputados em condição especial, os portugueses, que votavam na mesma semana em que o seu país foi oficialmente para todos os efeitos dado por falido. Desses, esperava-se, pelo menos, oportunismo ou fingimento. Exigia-se deles um faz-de-conta sem mácula. Mas votaram assim: 9 a favor e 9 contra. Quem quiser vá às notícias ver a que correspondem em grupos políticos. O importante, mesmo, foi 9 agarrarem-se ao seu privilégio do aperitivo antes do descolar. No fundo, foram ‘coerentes’.Terem-se agarrado a isso em troca de se exporem demasiado releva uma sinceridade preocupante: mostraram desprezo pelos seus eleitores e não se importam.

10 de Abril - A notícia veio no Correio da Manhã do dia 1 de Abril e eu, que sou um ingénuo, julguei que se tratava de uma mentira própria do dia: a administração da Carris ter-se-ia autocontemplado, em 2010, com quatro viaturas topo de gama em ALD, apesar de a empresa apresentar um "buraco" financeiro de 776,6 milhões de euros.
Todos sabemos que a generalidade das empresas públicas cumpre a patriótica tarefa de dar emprego a "boys" e "girls" do PS e do PSD. Por isso mesmo, a última aliança parlamentar dos dois partidos-comadres antes da zanga foi para chumbarem na AR uma proposta no sentido de, em tempos de crise, haver também limites para os salários, prémios e mordomias várias dos chamados gestores públicos.
Sendo a paciência dos contribuintes e eleitores ilimitada, os salários e prémios dos "boys" continuam a não ter, na prática, outros limites senão os da decência dos próprios. Daí que, além dos novos Mercedes, Audi e BMW, os administradores da Carris também se tenham aumentado em 2010, premiando-se por terem conseguido o milagre económico de afundar nesse ano a empresa com mais 42,3 milhões em resultados negativos.
Compreendem agora a minha ingenuidade. É ou não esta uma boa peta do 1 de Abril? Só que hoje, em Portugal, 1 de Abril é sempre que um homem quiser. E, nos últimos anos, tem sido todos os dias.
12 de Abril – Não desesperem, ainda há boas notícias. Parece que um "número recorde" de 134 países aderiu à edição deste ano da Hora do Planeta e desligou as luzes entre as 20.30 e as 21.30 de sábado a fim de sensibilizar o mundo para, cito, "os perigos do aquecimento global".
Compreendo o problema. Também acho necessário sensibilizar o mundo, que é casmurro, para os perigos do aquecimento global, da gripe A, dos papões do FMI e de outras coisas imaginárias e assustadoras. Mas não, não apaguei a luz, não senhor.
Todavia, contribuí à minha maneira: dado que evitei perder dezenas de horas a publicar convocatórias alusivas ao "apagão" no Facebook, no Twitter, nos blogs, e acabei por poupar muito mais electricidade do que os militantes que participaram activamente na causa.
Dessa forma, participei passivamente no combate a outra calamidade, menos fictícia e popular: a crendice colectiva que, ao contrário do aquecimento global ou dos fantasmas, provoca-me um medo desgraçado. Uff!


Nova Aliança, 14 / Abril / 2011

8.4.11

Como chegámos a isto?

16 de Março: Em tempo de crise ouvimos perguntar: Como chegámos a ‘isto’? A resposta não é nada complicada. Basta olhar à volta, pegar no papel e apontar exemplos. Aí vão dois.
Lembram-se do que aconteceu no dia 17 de Abril de 1969? Durante uma cerimónia na Universidade de Coimbra, o líder da associação de estudantes violou o protocolo e pediu a palavra ao presidente Américo Tomás. Ao contrário dos outros, não foi convidado para jantar. A cerimónia terminou ali, o dirigente associativo, que se chamava Alberto Martins, acabou detido, e o resto é história.
Os anos passaram e a história que continua nos nossos dias, agora com Alberto Martins licenciado e no cargo de ministro da Justiça. É uma história feia, muito feia. Segundo o DN, é a seguinte: Maria da Conceição Correia Fernandes, cônjuge de Martins e procuradora adjunta, recebeu 72 mil euros do ministério que o marido curiosamente tutela. A verba, que respeita a uma situação de funções acumuladas, teve o aval de um ex-secretário de Estado de Martins e o parecer negativo da Procuradoria-Geral. E a senhora teve sorte, visto que um seu colega, em condições laborais iguaizinhas, também curiosamente, não viu um único cêntimo.
Perante isto, qual foi a reacção do ‘valente’ dr. Martins? A julgar pela ousadia revelada na juventude e pelos hábitos dos políticos em democracias normais, seria de esperar que o homem devolvesse o dinheiro e apresentasse imediatamente a demissão. Convém verificar à nossa volta se temos bancos e esperarmos sentados: Alberto Martins limitou-se a pedir uma investigação ao episódio, que não lhe pareceu digno de investigações quando os 72 mil euros entraram na conta da família e só se lembrou da ética no momento da divulgação pública.
Conhecem a história da mulher de César? Este caso já desceu à cave onde os pequeninos Césares perderam toda a vergonha.
Mais um salto no tempo, desta vez para 16 de Março de 2011. Durante a inauguração do ano judicial, Martins afirmou que o sector "enfrenta duras dificuldades". Disse ainda querer "restabelecer" a "confiança" dos cidadãos na Justiça. Ninguém o interrompeu, ninguém lhe pediu a palavra.
O segundo caso conta-se também rapidamente. A notícia de que Armando Vara passou à frente dos pacientes de um centro de saúde de modo a obter um atestado suscitou o inevitável, e repugnante, populismo das massas. Ora, na opinião de Vara, as ‘massas’ deviam até ter ficado satisfeitas. Ver uma pessoa tão importante e que tanto deu ao país recorrer aos mesmos clínicos do contingente geral, sabe Deus com que riscos para a saúde, deveria ser um motivo de orgulho.
Em segundo lugar, os privilegiados a sério não fazem recados, contam com empregados para lhos fazerem. Vara faz os recados pessoalmente, comprometendo a sua atarefada agenda nestas coisas pequenas.
Em terceiro lugar, quando não arranjam alternativa, os privilegiados a sério visitam hospitais particulares. O coitado do Vara resigna-se aos serviços públicos, expondo-se inclementemente aos vírus, bactérias e populares que os frequentam.
Em quarto lugar, os privilegiados a sério possuem jactos privados. Vara explicou a urgência no atendimento com a pressa de apanhar um mero avião comercial, o transporte dos simples.
Em quinto lugar, os privilegiados a sério não dão satisfações a ninguém. A ética de Vara obriga-o a justificar as ausências, do emprego ou das sessões do "Face Oculta", mediante documento adequado.
Em sexto lugar, os privilegiados a sério não expõem as maleitas ao comum dos mortais. A rapidez com que a médica do centro de saúde assinou o atestado prova que Vara não teme exibir a sua debilidade e, além disso, prova que o homem está realmente doente.
Tenhamos respeito por quem sofre e por quem anda atarefado. Se cada um de nós imitasse Vara e, em lugar de ocupar a preguiça nos centros de saúde a aguardar a sua vez, passasse à frente na fila dos centros de saúde, a produtividade nacional seria outra.
Aí têm como chegámos a ‘isto’.


Nova Aliança, 31 / Março / 2011

Isabel Alçada, o BPN e a ASAE

10 de Março – Há uns tempos, Isabel Alçada condenou que se manipulassem meninos e meninas para fins de propaganda e difusão de falsidades. Julguei que a senhora decidira trocar o cargo pela frontalidade e denunciar um estilo que, não sendo inédito, marcou os últimos tempos da Educação em Portugal. Durante uns instantes, dei por mim a admirar intensamente a coragem da senhora e cheguei mesmo a esboçar um poema em seu louvor. Depois li o resto da notícia e os versos foram para o lixo.
Afinal, a senhora apenas discorda do uso de alunos num protesto contra a redução das subvenções às escolas privadas ditas com contrato de associação. Não se opõe a que os mesmos alunos sejam, por exemplo, aparafusados diante do Magalhães e ensinados a jurar os méritos da geringonça na presença do primeiro-ministro e das câmaras televisivas. Quando o Governo se serve dos fedelhos, trata-se de divulgação de "boas práticas" ( reparem na expressão distinta ). Quando são os pais a ‘servirem-se’, trata-se de vil propaganda.
Sempre empenhado em crescer, porque as clientelas o exigem e porque é esse o seu desígnio, o Estado decide as escolas em que as criancinhas devem "estudar", as manifestações em que as criancinhas devem participar, os alimentos que as criancinhas devem comer, as horas a que as criancinhas devem dormir e os modelos gerais de comportamento de acordo com os quais as criancinhas devem ser criadas. As criancinhas, em suma, pertencem ao Estado e não às famílias que, admita-se, ao longo de décadas assistiram indiferentes ou entusiasmadas ao sequestro e, em qualquer dos casos, pagaram-no. Aí está a factura.

13 de Março – É bom reflectir para não esquecer. A burla cometida no BPN não tem precedentes na história de Portugal. O montante do desvio atribuído a Oliveira e Costa, Luís Caprichoso, Francisco Sanches e Vaz Mascarenhas é algo de tão elevado, que só a sua comparação com coisas palpáveis nos pode dar uma ideia da sua grandeza.
Com 9.710.539.940,09 € (NOVE MIL SETECENTOS E DEZ MILHÕES DE EUROS…..) poderíamos:
Comprar 48 aviões Airbus A380 (o maior avião comercial do mundo).
Comprar 16 plantéis de futebol iguais ao do Real Madrid.
Construir 7 TGV de Lisboa a Gaia.
Construir 5 pontes para travessia do Tejo.
Construir 3 aeroportos como o de Alcochete.
Para transportar os 9,7 MIL MILHÕES DE EUROS seriam necessárias 4.850 carrinhas de transporte de valores. Assim, talvez já se perceba melhor o que está em causa.
Distribuído pelos 10 milhões de portugueses, caberia a cada um cerca de 971 € …

14 de Março – Em Nisa, uma visita da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) à empresa Louro e Louro – a última queijaria a funcionar em Nisa – deixou o proprietário às portas de um enfarte. "Somos um casal de 72 e 73 anos, que trabalha desde os dez anos, sete dias por semana. Garantimos trabalho nesta região, para além de garantirmos o escoamento do leite de pequenos produtores. Mas há algum tempo que nos sentimos perseguidos", lamenta Joaquim Louro. De acordo com o produtor, a ASAE "implicou" há três meses com as ervas que existem nas imediações da empresa. "Sou contra os químicos, sempre fui, se for preciso agarro nas ervas e como-as para provar que não fazem qualquer mal. Mas a ASAE quer que ponha herbicida, o que realmente faz mal", contesta o homem. No início do mês, os inspectores voltaram à fabrica para verificar se a ordem já tinha sido cumprida. "É a falta de senso que manda neste País, onde fazem leis sem perceber do que estão a tratar, e depois outros aplicam-nas sem perceber nada do andam a fazer", diz. E tem toda a razão, acrescento eu. Querem saber porquê? Aí vão dois exemplos: há três anos, a ASAE enverrou uma câmara da fábrica por haver queijos com bolor. Lamentavelmente, os ‘inspectores’ desconheciam que era uma fase normal da produção. Mais recentemente, há três meses, a empresa recebeu duas coimas. Uma delas era motivada pela “existência de cadáveres na fábrica”. Tratava-se de uma mosca.

Nova Aliança, 19 / Março / 2011

Os idosos de novo e a lusofonia

22 de Fevereiro – Depois da notícia da senhora da Rinchoa que jazia há mais de oito anos e meio morta em casa e que só foi encontrada porque o Fisco executou a penhora da habitação, os casos de mortes solitárias de idosos ganharam visibilidade nas notícias.
Torna-se forçoso reconhecer que tais casos são apenas a ponta do icebergue do desespero em que muitos idosos vivem. Obviamente que todos somos responsáveis, por muito que não o queiramos admitir.
A situação mais exemplar de abandono dos mais velhos aconteceu ontem em Caselas, um bairro de Lisboa. Luís Carlos, de 83 anos, já não conseguia cuidar da mulher, Isabel, de 89 anos, que sofria de Alzheimer. Desesperado, matou-a e suicidou-se.
Ora, um Estado que deixa uma pessoa com essa doença ao cuidado de um idoso falha estrondosamente no cuidado aos mais desfavorecidos. São cada vez mais as situações de idosos incapacitados, muitos com demências, deixados ao deus--dará. E nem adianta culpar o abandono da família, porque frequentemente já nem existe rede familiar. O empobrecimento do País conjugado com o acentuado envelhecimento da população, o esforço financeiro sobre a Segurança Social e a pressão nas reformas vão provocar o aumento de situações semelhantes. Num Estado com recursos cada vez mais escassos, tem de haver prioridades – e os idosos não podem ser esquecidos.

24 de Fevereiro – Ao longo dos anos, os nossos responsáveis políticos tentam descobrir o melhor modo de promover a lusofonia. Sem grande sucesso até ao momento. Soubemos agora que a organização desvirtua aquele desejo. A solução, estranha à partida, é precisamente a desorganização. Se preferirem, a desarrumação.
É verdade: basta ser desarrumado. Isso e espalhar uns discursos numa sala cheia de altos dignitários estrangeiros. Uns minutos depois e certamente que um deles vai comecar a lê-los por engano
Os leitores que acompanham as reuniões do Conselho de Segurança da ONU assistiram, esta semana, a um momento de grande prestígio para o nosso país. É certo que só durou três minutos ( e desde quando é que o tempo de duração se relaciona com o prestígio, qualquer que ele seja? ) e deveu-se a um engano bastante caricato, mas prestígio é prestígio, ora essa.
O ministro dos Negócios Estrangeiros indiano dirigiu-se à câmara, exprimindo o seu mais profundo regozijo por haver atualmente dois membros da comunidade lusófona naquele órgão. A lusofonia foi celebrada por um dirigente indiano com um entusiasmo que os dirigentes lusófonos não costumam exibir. Para lá das ligações históricas com esse país, não esquecemos os lugares cimeiros da Índia nos rankings escolares. Por isso, a sala comoveu-se. Bom, talvez a parte da sala que fala português. Quero dizer, a parte da sala que não estava a dormir.
Tal apreço pelo português indicava três coisas: que ainda estamos vivos, a importância do nosso idioma e, não menos importante, que o ministro dos Negócios Estrangeiros português tinha deixado o seu discurso em cima da mesa e o ministro indiano - que, como é evidente, não tinha ouvido o discurso do ministro português nem tinha escrito o seu - começou a lê-lo. Infelizmente para todos um dos seus assessores, três minutos depois, deu pelo erro e fez com que ele passasse a ler o discurso certo. Que, surpreendentemente, não fazia qualquer referência à comunidade lusófona, antes começando com uma citação de Gandhi. E foi assim que, pela primeira vez na História, alguém, numa intervenção pública, citou primeiro Luís Amado e depois o Mahatma. E reparem que não existirão muitas pessoas no mundo que se poderão orgulhar do mesmo…
E eis como, com este episódio, podemos aprender e até explicar alguns aspectos da nossa crise. Se um dirigente indiano pode ler discursos portugueses por engano, é possível que um dirigente português ande a ler discursos indianos sem se aperceber.
Por exemplo, ainda na semana passada se soube que, em 2010, os bancos tinham pago menos 55% de impostos do que em 2009, ano em que, no primeiro semestre, já tinham pago menos 30% de impostos do que no mesmo período de 2008. Tais notícias sugerem que Sócrates pode ter implementado, inadvertidamente, medidas indianas no nosso país.
Parece-me que esta situação de privilégio demonstra claramente que alguém introduziu por engano o sistema de castas na política portuguesa. Por isso, creio que é urgente acabar com este intercâmbio de discursos entre Portugal e a Índia.
Que se ‘dane’ a lusofonia.

Nova Aliança, 5 / Março / 2011

Idosos esquecidos e a geração rasca

7 de Fevereiro - Morta em casa há nove anos
O corpo de Augusta Duarte Martinho, que completava 96 anos no passado dia 12, esteve nove anos no chão da cozinha do apartamento onde residia sozinha, na Rinchoa, Rio de Mouro, em Sintra.
Foi encontrado pela PSP depois de o andar ter sido vendido em leilão pelas Finanças. A nova proprietária, 58 anos, que comprou o apartamento por 30 mil euros há três meses, e entrava pela primeira vez na casa, ficou em estado de choque.
"Ainda estou horrorizada", disse. O desaparecimento já tinha sido participado à GNR, em Novembro de 2002, por uma vizinha. Aida Martins explica que deixou de ver Augusta Martinho em Agosto desse ano. Três meses depois avisou a GNR. "Eles vieram cá mas disseram que não podiam arrombar a porta", refere, assegurando "que nunca houve mau cheiro". A única companhia da idosa era um cão pequeno que foi encontrado morto na varanda da habitação.
Nos nossos tempos, esta história está longe de nos espantar. Na nossa sociedade, procuramos atirar as nossas responsabilidades para cima de outros. Os tribunais não fazem o que têm de fazer e s polícias também não. Ninguém quer chatices. A senhora desapareceu? Tem a certeza? Coisa de velhos, terão pensado. Nem a segurança social, nem os serviços de saúde fizeram alguma coisa.. Ninguém. Afinal de contas, era ‘apenas’ uma velha num prédio de uns subúrbios. Passou oito anos a bater a portas. A burocracia impediu que alguém fizesse alguma coisa. A porta não podia ser arrombada.
Curiosamente, a inviolabilidade do domicílio é sagrada. Mas, claro, se o domicílio for vendido em hasta pública, sem conhecimento do dono, o novo dono já pode entrar. Mas Augusta, cidadã portuguesa, era também contribuinte. E aí deram por falta dela. Tinha uma dívida. Sem um único contato, a frieza da máquina leiloou o seu apartamento. Quando os novos donos chegaram, a porta foi finalmente arrombada. E lá estava Augusta, morta no chão da cozinha.
O que impressiona, para além da solidão que permite que alguém morra sem que ninguém dê por nada, é que o mesmo Estado que dá pelo não pagamento de uma dívida ao fisco não dê, não queira dar, pelo desaparecimento de um ser humano. Que o contribuinte exista, mas o cidadão não.
Diz-se que só há duas coisas certas na vida: a morte e os impostos. Sabemos agora que para o Estado português só a segunda parte é verdadeira.



12 de Fevereiro – A canção dos Deolinda
Há por aí um ‘debate’ sobre uma canção dos Deolinda. A letra é repetida atá à exaustão. Mas afinal, o que cantará Ana Bacalhau? Coisas simples, mesmo muito simples: que a vida não está fácil e que ter um cursinho universitário (ainda por cima destes) não é um seguro para os anos que se aproximam.
O problema é que os portugueses se deixam enfeitiçar por refrões sobre como a vida é injusta. A canção ‘pede’ também que a geração mais velha se preocupe com as novas gerações, que não têm emprego garantido. Não têm? Lutem por ele. Estão desanimados? Festivais de rock esgotam sempre no Verão e ‘gadgets’ andam de mão em mão. A vida está difícil? Ninguém prometeu um mar de rosas, a não ser nas canções.
Perguntem aos avós e aos pais quantos iam buscar os netos e os filhos às escolas há vinte ou trinta anos atrás. Conversem um bocadinho sobre como a vida era ‘mesmo’ difícil há vinte, trinta anos. E se recuarem mais no tempo, então era mesmo muito ‘difícil’.
Vá lá, cresçam.

Nova Aliança, 17 / Fevereiro / 2011

A memória futura e o simplex

18 de Janeiro – Elementos para memória futura.

8 de Janeiro de 2010: Valter Lemos destaca elevado desemprego em toda a Europa
«Em Outubro éramos o sexto país com o desemprego mais elevado, passámos para oitavo [...]»
30 de Abril de 2010: Valter Lemos espera abrandamento do desemprego para o Verão
18 de Maio de 2010: Valter Lemos satisfeito com descida dos números de inscritos nos centros de emprego
26 de Maio de 2010: Governo garante que o desemprego vai cair ainda este ano
30 de Julho de 2010: O secretário de Estado do Emprego, Valter Lemos, considerou hoje, em declarações à agência Lusa, que a inversão da tendência da taxa de desemprego, estimada pelo Eurostat para junho, é uma “boa notícia” para Portugal.
17 de Setembro de 2010:Desemprego: «Números mostram tendência de estabilização»
1 de Outubro de 2010: O secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, Valter Lemos, disse hoje que os dados do Eurostat são previsões e afirmou estar a aguardar pela confirmação, ou não, pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
29 de Outubro de 2010: Valter Lemos: taxa do Eurostat mostra que o desemprego se manteve estável
17 de Janeiro de 2011: «O pior do desemprego já passou» – Valter Lemos
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Nota: A taxa de desemprego foi de 10,6% no primeiro trimestre, 10,6% no segundo trimestre e 10,9% no terceiro trimestre.
28 de Janeiro - Tenho mais medo de entrar numa repartição de Finanças ou da Segurança Social do que no consultório do dentista. Por isso, quando entrei na Segurança Social para pedir um documento até tremi.. Tirei a senha e, oh alegria!, era a senha 35 e já iam na 14, não devia demorar muito.
Nem valia a pena sentar-me, fiquei encostado à parede a olhar para os que iam chegando, e tirando senhas, e suspirando.
Quando, hora e meia depois, ainda se continuava na senha 14, comecei a não achar graça.
Reparo então - tenho pouca prática destas coisas - numas senhas com a designação de "prioritárias". Pergunto quais as prioridades que abrangem - mas ninguém me sabe responder.
De repente, num ecrã em que passa muita informação a correr, com toda a gente a sorrir muito, a dizerem-nos - a nós, que já ali estamos há horas - como tudo agora é fácil e rápido, descubro que basta uma pessoa ter mais de 65 anos para usufruir dessa benesse.
Tiro outra senha, desta vez a 20, quando já estavam a chamar a 10. Óptimo, agora é que era.
O pior é que se estava na hora do almoço - e ,durante mais de uma hora, nenhuma senha mexeu.
Palavra que temi um levantamento popular. Uma senhora começou a fazer um comício às massas, "devíamos era ir com panelas a São Bento!", mas como a maior parte não estava a perceber o que faziam ali as panelas, ela lá explicou que era uma coisa que tinha acontecido no Chile, mas na sua cabeça as coisas deviam andar um pouco baralhadas porque, dali a momentos, já era a Argentina e as mães da Praça de Maio, e nós que éramos todos uns bananas, que amochávamos tudo. Desiste de esperar e vai embora, ela e mais alguns, e por isso, ao fim de seis horas de ali estar, chamam-me para me informarem que o que eu quero não é com eles.
Deve ser a isto que o nosso primeiro chama o "simplex".

Nova Aliança, 3 / Fevereiro / 2011

26.1.11

A memória e a fama em Portugal

8 de Janeiro – Viagem no tempo ou o que começava por não custar um euro ao contribuinte

5 de Novembro de 2008: O ministro Teixeira dos Santos explicou aos deputados que o BPN comprometeu a sua situação financeira porque estava em iminência de rotura de pagamentos, o que colocaria em risco os depósitos de milhares de depositantes.
7 de Novembro de 2008: Teixeira dos Santos, depois de muito pressionado, acabou por dizer que os prejuízos acumulados no banco BPN atingem 700 milhões de euros.
5 de Fevereiro de 2009: Teixeira dos Santos defende que Estado “não gastou dinheiro dos contribuintes” no BPN e no BPP
5 de Fevereiro de 2009: Teixeira dos Santos adiantou que o Governo decidiu nacionalizar o BPN não pelo prejuízo apurado de 700 milhões de euros, mas sim para proteger os depositantes.
18 de Junho de 2009:O ministro das Finanças afirmou hoje que “até agora o Estado não suportou um euro sequer” relativamente ao BPN, explicando que a Caixa Geral de Depósitos realizou operações de liquidez no banco avaliadas em 2,5 mil milhões de euros.
27 de Novembro de 2009 : [Teixeira dos Santos] diz que a insolvência do BPN poderia ter um efeito sistémico sobre a banca nacional. Se atingisse 10% das contas dos depositantes portugueses, a factura poderia chegar aos 15 mil milhões de euros.
27 de Outubro de 2010:BPN: Nacionalização evitou “catástrofe” do sistema financeiro — Teixeira dos Santos
11 de Janeiro de 2011: Teixeira dos Santos diz que perdas detectadas já depois da nacionalização mostram que a decisão foi acertada
11 de Janeiro de 2011: Teixeira dos Santos: “Valor de referência para custo da nacionalização do BPN são dois mil milhões”

12 de Janeiro – A Fama em Portugal
Quem estiver minimamente atento verificará que, em Portugal, a culpa, se calhar, é dos dicionários: "fama" e "sucesso" vêm antes de "trabalho". E é essa a ordem de factores que é apregoada pelas televisões. "Em directo da casa mais famosa do país...", e mostra-se gente que não aprendeu nada, que não sabe nada, que não viveu nada e que de sentimentos só conhece a versão lambisgóia. "És o ídolo de Portugal!", grita um imberbe para outro imberbe, num desses concursos de caça-talentos em que o protagonista nem entende, apesar de anunciado, o papel que lhe destinam: ser caçado. Na noite da apoteose, Portugal chama com valor acrescentado e faz do miúdo um famoso. Assim, num repente. Com a plateia de pé, os colegas fracassados aos abraços apertados (alguém tem de fracassar para servir de pedestal), os pais a chorar de orgulho. Famoso. No dia seguinte, já há clube de fãs. O Facebook explode de amigos. Millôr Fernandes poetou sobre isso: "Na tela/ Em cada programa/ Notoriedades da hora/ Desconhecidos de ontem/ Famosíssimos de agora." Famoso. Ainda sem saber de quê, nem se interessando porquê, mas já conhecendo as regras: agarrar-se aos holofotes e, sobretudo, a quem detém as luzes dos holofotes. Famoso. Os mais sortudos saberão em breve como a condição é efémera. Os mais infelizes descobrem-se, um dia, mesmo famosos: aparecem nas primeiras páginas dos jornais, até de Nova Iorque.


Nova Aliança, 20 / Janeiro / 2011

7.1.11

Monteiro Lobato e os relatórios escolares

27 de Dezembro - A minha infância foi televisivamente pobre. E nem poderia ser de outra forma. Os dois únicos canais “obrigavam” a uma programação, no mínimo, incipiente.
Mas havia excepções. Uma delas era "O Sítio do Picapau Amarelo", uma produção da TV Globo baseada na obra de Monteiro Lobato (1882 - 1948). Lembro-me das aventuras de Pedrinho e Narizinho com a mesma gratidão com que me lembro das aventuras de Lucy ou Edward nas crónicas de Nárnia de C.S. Lewis, que li na mesma idade. Sem falar da boneca Emília, de Dona Benta e da Tia Nastácia. Puro encantamento.
Por causa de Monteiro Lobato, conheci melhor o folclore brasileiro; e, claro, a própria literatura brasileira. Depois da série, li Monteiro Lobato "lui même". E, por causa do autor, fui entrando no cânone.
Primeiro, "O Meu Pé de Laranja Lima", de José Mauro de Vasconcelos, desde logo porque havia um "portuga" na trama. O livro fez um sucesso em Portugal, digno de J.K. Rowling. E depois passei a “dietas” mais pesadas, com Lima Barreto, Nelson Rodrigues. E o notabilíssimo Rubem Fonseca.
O racismo de Monteiro Lobato incomodou-me? Nem pensei nisso. Não penso nisso agora. O que não significa que Monteiro Lobato não o fosse: as suas referências a "pretos" podem ser desconfortáveis para uma audiência moderna. Mas se as audiências modernas apenas lessem o que se ajusta ao cânone politicamente correcto do momento, que obras ficariam nas nossas bibliotecas? Precisamente. Poucas. Quase nenhumas. Todas as épocas têm as suas fogueiras.
Por isso pasmo com a decisão, vinda do Brasil, do Conselho Nacional de Educação de sinalizar com pânico radioactivo e instintos censórios a obra "Caçadas de Pedrinho", publicada por Monteiro Lobato em 1933. O caso já chegou à imprensa portuguesa, que tem dedicado alguma atenção ao assunto. Deveria dedicar mais porque estamos na presença de um exemplo clássico de ignorância cultural. E, ironicamente, de preconceito ideológico.
Segundo leio, o livro "Caçadas de Pedrinho" tem referências que não são agradáveis à população negra. Uma princesa, por exemplo, aconselha Emília a não beber café. Para não ficar "morena". E a Tia Nastácia, que cozinhava os melhores petiscos da minha infância, é referida como "pobre preta".
Isso, para o Conselho de Educação, é intolerável. A função do ensino, para o nobre órgão, é inculcar os valores certos na cabeça das crianças, afastando qualquer ofensa às minorias.
Sou capaz de entender a generosidade do Conselho de Educação. Mas se a função do ensino é afastar do currículo tudo aquilo que ofende a sensibilidade moderna, repito, não fica nada para mostrar.
Apagar o passado que nos interpela com seu rol de ofensas e preconceitos é apagar Platão ou Aristóteles, dois conhecidos esclavagistas com intoleráveis tendências misóginas. É apagar os versos de Dante na sua "Comédia" com passagens islamofóbicas. É apagar Voltaire pelas mesmas razões, a começar pela sua peça "Maomé". É apagar Mark Twain pelos mesmos motivos que nos levam a censurar Monteiro Lobato. É não permitir que Shakespeare nos contamine com seu esporádico anti-semitismo. E, por falar em anti-semitismo, é jogar no lixo a poesia de T.S. Eliot, o maior de todos os modernistas. E etc. etc. etc. A lista não tem fim.
Avaliar a cultura passada com as lentes ideológicas do nosso tempo não é apenas um grosseiro erro de anacronismo. É vandalizar esse passado pela destruição do mundo que ele expressa; é, no limite, uma privação cultural.
E esse crime não é apenas um crime que cometemos sobre o passado. É também uma porta que abrimos para crimes futuros: para que as gerações vindouras, dominadas por seus próprios valores ou preconceitos, possam usar a guilhotina sobre os nossos valores ou preconceitos; sobre a nossa voz singular e presente; sobre nossos vícios e virtudes; sobre nós. Uma inquisição permanente que não tem descanso.
O caso Monteiro Lobato é mais um exemplo de como o objectivo do pensamento politicamente correcto não é "corrigir" o pensamento politicamente incorrecto. É criar um mundo de silêncio, transformando o passado num imenso cemitério.
31 de Dezembro – Depois de uma euforia balofa e totalmente desonesta com os mais recentes resultados do PISA, o Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE) do Ministério da Educação veio agora confirmar que os nossos alunos estão menos burros mas continuam burros. Depois de uma análise exaustiva a 1700 escolas, parece que os alunos do 8º ao 12º ano não sabem raciocinar nem escrever. Segundo o GAVE, as nossas ‘crianças’ são incapazes de estruturar um texto; explicar um raciocínio com lógica; utilizar linguagem rigorosa; e, Deus meu, utilizar diferentes conceitos da mesma disciplina. Por outras palavras: as nossas ‘crianças’ são capazes de exercícios elementares, como acontece com alguns símios de laboratório; mas o passo final para o conhecimento humano está-lhes interdito.
Obviamente que isto, ao contrário do que sucedeu com o PISA, não mereceu do governo um comentário. O que se compreende: os nossos governantes, a começar pelo líder da banda, são também um produto do analfabetismo e da lassidão que reinam no sistema de ensino. Confrontados com o relatório do GAVE, o mais certo é não saberem lê-lo ou interpretá-lo.

Nova Aliança, 6 / 1 / 2011

O Nobel da Pz e o país de totós

10 de Dezembro - "Sabemos quem foi Confúcio, mas não sabemos nada do prémio", disse à BBC o porta-voz de Lien Chan, antigo vice-presidente de Taiwan, a quem a China atribuiu o Prémio Confúcio da Paz, um Nobel da Paz "made in China" já que, segundo o governo chinês, o original se desprestigiou junto da "esmagadora maioria das pessoas do mundo" ao ser atribuído a Liu Xiaobo, que o regime de Pequim meteu 11 anos na cadeia por defender a democracia e os direitos humanos (em tradução directa do mandarim, por "subversão").
"Não sabendo nada", o premiado não apareceu na cerimónia, tendo sido substituído por uma menina de 6 anos. (Uma criança fica sempre bem em acontecimentos do género, mas é recomendável que, no futuro, o prémio seja atribuído a pessoas mais bem informadas; talvez, quem sabe? Ahmadinejad ou Chavez).
Liu Xiaobo também não comparecerá hoje em Oslo para receber o original. Não porque não saiba "nada sobre o prémio", mas pela comezinha razão de que os seus carcereiros não o deixam ir (nem a ele, nem à mulher, nem a nenhum amigo).
Não comparecerão igualmente, além da China, mais 18 países: Afeganistão, Arábia Saudita, Cazaquistão, Colômbia, Cuba, Egipto, Filipinas, Irão, Iraque, Marrocos, Paquistão, Rússia, Sérvia, Sudão, Tunísia, Ucrânia, Vietname e Venezuela. Tudo boa gente, justamente reputada por ser grande consumidora de direitos humanos (de direitos humanos "made in China", naturalmente).
13 de Dezembro - No outro dia, um amigo estrangeiro de um amigo meu sugeriu um livro que falta no panorama editorial: "Portugal for dummies". Traduzo: "Portugal para totós". Um título mais naquela colecção de livros técnicos de capa amarela que explicam coisas complexas. Na verdade, o título é enganador. Portugal tem tantas idiossincrasias que nem mesmo os mais inteligentes e cultos politólogos o entendem. Experimentem explicar, por exemplo, a um americano, o sistema semipresidencial português. Quais as funções do presidente da República? Árbitro? Moderador? E que poder tem, de facto? Difícil, não? Daí, a ideia do livro, que faria jeito, aposto, mesmo a quem nos conhece bem. Por exemplo, nós próprios.
O momento presente seria ideal para a publicação de um livro destes. Ideal para exemplos vividos e recentes. Toda a gente de bom senso já percebeu que o actual momento político-económico é tão difícil que precisa de uma maioria governativa, e, no actual cenário, de uma coligação onde os interesses do país estejam à frente de todos os outros. Apesar dessa clarividência - expressa desta vez por Luís Amado, este fim-de-semana, em entrevista ao "Expresso" - nenhum dos partidos do arco governamental aceita dar esse passo. Ah, e tal, o PSD está à espera de ganhar as próximas eleições, e o PS não pode dar parte de fraco... e vai atirando as responsabilidades para o lado... Pois, tudo isso é muito bonito como joguinho político, se não estivesse a empenhar o nosso futuro como país.
Um livro como o "Portugal for Dummies" podia explicar, precisamente, por que é que as coligações são corriqueiras, por exemplo, na Alemanha e na Inglaterra, e em Portugal parecem impossíveis. A explicação passaria certamente por algo bem pouco nobre: os partidos têm como fundo de comércio os lugares, funções e dependências do Estado que obtêm quando chegam ao poder, para distribuir pelas suas bases. Sendo assim, o único objectivo de um partido português é... ganhar eleições. De preferência, sozinho.
Tudo isto funciona bem em duas circunstâncias: quando os tempos são de vacas gordas ou quando há maiorias. O pior problema é quando há minorias em tempos de vacas magras. Aí, os governos ficam maus. Ou de mãos atadas porque não conseguem fazer passar medidas, ou eleitoralistas - se bem que esta é uma tendência de todos os governos, mesmo os de maioria, porque quando as têm já sabem que as perdem com medidas difíceis, daí estarem sempre a pensar nas próximas eleições.
E, como o sistema português não obriga a maiorias, nem as forma automaticamente, o que acontece é que ... andamos sempre nisto. Com um olho no burro e outro no cigano, para explicar bem a situação a verdadeiros totós. Totós que somos nós todos: temos um sistema político que nos prejudica, a nós, que o inventámos e que através dele nos regulamos. E nada fazemos para o mudar.
Portugal precisa, portanto, de um "Portugal para totós". A falta desse livro deve explicar, em parte, o facto de as agências internacionais de rating continuarem a dar-nos na cabeça, mesmo depois de haver um acordo orçamental entre os dois maiores partidos portugueses, e de o Orçamento propor cortes e mais cortes e nenhum deles convencer quem nos avalia os nossos empréstimos. Outra hipótese é terem-no percebido bem de mais: que os dois partidos, PS e PSD, são, afinal, duas faces da mesma moeda. E que muito pouco vai mudar enquanto continuarmos neste jogo de roda bota fora.

Nova Aliança, 23 / 12 / 2010

A crise, as praxes e uma lição de vida

22 de Novembro – As notícias são hoje, infelizmente, quase diárias ("Cinco mil famílias em lista de espera para receber apoio alimentar de instituições"; "Classe média está a chegar à sopa dos pobres"...) e, nelas, alguns poucos parágrafos davam conta ontem do apelo do arcebispo de Braga aos párocos para que dêem um "sinal sacerdotal" e prescindam do salário de um mês para acudir "àqueles que, cada vez mais, não têm o mínimo para sobreviver". "Trata-se - diz o arcebispo - de colocar em questão este modelo económico e acreditar que a solidariedade tem capacidade para dar dignidade a todos".
A obra assistencial da Igreja, juntamente com a de instituições como o Banco Alimentar ou as Misericórdias, é hoje a última fronteira da esperança de muitas dezenas de milhares de famílias que a "crise" (é difícil escrever a palavra sem aspas quando a Banca, poupada aos "sacrifícios para todos", continua a lucrar milhões por dia) atirou para a fome e a miséria. E todos os dias se ouvem apelos da parte do clero à solidariedade. Mas é a primeira vez que um bispo vem louvavelmente lembrar que, "na partilha, os sacerdotes não podem pôr-se de lado".
Neste contexto, seria bom a própria Igreja não se pôr de lado e decidir-se a prescindir de uma pequeníssima parte dos rendimentos do Santuário de Fátima a favor "daqueles que, cada vez mais, não têm o mínimo para sobreviver".
26 de Novembro – No Outono, com o cair da folha e o início do ano lectivo, começam a ver-se por aí, onde existam universidades e aparentados, os habituais espectáculos de bandos de imberbes caloiros apascentados por não menos imberbes "doutores" ministrando-lhes todo o tipo de boçalidades e indignidades que a rasca imaginação lhes permite, com o devido enquadramento de bebedeiras, comas alcoólicos e música pimba que ilustram o nível moral e intelectual não só dos futuros caixas de supermercado da Nação mas igualmente das escolas que os formam.
Todos os anos a história se repete mas pelos vistos ninguém aprende. Pôr jovens estudantes de joelhos e obrigá-los a suportar com um sorriso nos lábios as prepotências dos mais velhos é, alega-se, uma forma de "integrar" os alunos recém-chegados na vida e no espírito universitários. E, Deus nos valha, se calhar é. Não restem dúvidas de que, de tal ponto de vista, as universidades cumprem até à excelência a missão que, de há uns tempos para cá, alegremente pretendem assumir, não de lugares de estudo e investigação, mas de fornecedores de mão-de-obra qualificada (na circunstância em despotismo e docilidade acrítica) ao mundo empresarial e do trabalho.
2 de Dezembro – Por falar na universidade, no ensino e no mercado de trabalho, esta é uma história que todos os pais deveriam ler à noite aos filhos para que eles possam aprender que, ao contrário do que professores antiquados ainda ensinam na escola, não é com estudo e trabalho, ou com mérito, que se vai longe na vida.
Pedro era um petiz de palmo e meio e frequentava o ensino secundário. Vivia com o pai, funcionário do PS, numa casa da Câmara de Lisboa pagando 48 euros de renda. Cedo percebeu que, se tirasse um curso superior, decerto acabaria como caixa de supermercado e, miúdo esperto, rapidamente deixou as aulas e se tornou, como o pai, funcionário partidário. Obviamente estava lançado na vida. Algum tempo depois, rescindiu o contrato e, assim desempregado "por motivo de reestruturação, viabilização ou recuperação da empresa [o PS], quer por a empresa se encontrar em situação económica difícil", obteve do IEFP 40 mil euros de subsídios para a criação da sua própria empresa - que nem precisou de ter actividade - e do seu próprio posto de trabalho. Meteu os subsídios ao bolso e arranjou "o seu próprio posto de trabalho" na Câmara de Lisboa a ganhar 3950 euros por mês como assessor político (o que quer que isso seja) de uma vereadora do PS.
O "Público", que traz a história do jovem Pedro, hoje com 26 anos e um grande futuro político pela frente, sugere que ela é ilegal e imoral. Deixará de ser quando quem faz as leis fizer também a moral. Não tardará muito.

Nova Aliança, 9 / 12 / 2010

O senhor do adeus, as tatuagens e Pilar

9 de Novembro - Chamava-se João Serra e tinha por hábito acenar aos carros e os carros que, divertidos e agradecidos, lhe acenavam de volta. Uma forma de amaciar a solidão, dizia ele, que assim amaciava a nossa: encontrá-lo era uma secreta alegria; uma suspensão da realidade; um toque de irrisão na rotina das rotinas. É por isso que, hoje, qualquer assunto dominante sobre as misérias da política perde todo o sentido. Pausa. O momento pede um último adeus ao fantasma do Saldanha.

11 de Novembro – A tatuagem está na moda. Cantores, novos e velhos, projectos de actor, novos e velhos, entram-nos diariamente em casa com uns riscos no corpo. Como explicar essa epidemia de tatuagens que transforma o nosso mundo num retorno à pré-história, com muitos ‘modelos’ feitos pinturas rupestres?
Um nome possível é Norbert Elias (1897 - 1990), o grande historiador da França pré-revolucionária, que nas obras sobre a "sociedade da corte" disserta com talento inultrapassável sobre a forma como a nobreza sempre se procurou distinguir da populaça circundante.
Conta Elias, sobretudo em "O Processo Civilizacional", que as elites procuravam essa distinção pela busca de novos e refinados símbolos (nos adereços, no vestuário, nos comportamentos). Só depois a plebe corria atrás, procurando imitar e, pela imitação, "nobilitando-se". A ascensão social fazia-se por imitação social, ou seja, por imitação "superior".
As tatuagens representam uma pequena revolução civilizacional. Pela primeira vez em toda a história social do Ocidente, a classe média procura distinguir-se por imitação "inferior": se os nossos antepassados olhavam para cima, os nossos contemporâneos olham para baixo. Para as marcas tangíveis, carnais, inapagáveis de roqueiros ou marginais, como se essa descida fosse uma forma paradoxal de ascensão.
O problema desses movimentos miméticos é que eles acabam sempre por atingir estágios de estagnação, onde é necessário encontrar novas marcas distintivas - não é por acaso, escreve Elias, que Paris se foi refinando continuamente: uma vez imitada pela plebe, a nobreza partia em busca de novos códigos exclusivos que por sua vez acabariam por ser imitados, e abandonados, e trocados por outros. "Ad infinitum".
Hoje, a imitação "inferior" bateu contra o mesmo tipo de parede - e a tatuagem, que era a exceção na paisagem, passou a ser regra. Difícil não é ter ou ver uma tatuagem. Difícil é não ter ou não ver.
O que significa que, mais cedo ou mais tarde, não será de excluir que, à nossa volta, comecem a aparecer indivíduos com ossos no nariz, em imitação de uma qualquer tribo primitiva e, de preferência, assaz remota e assaz exclusiva.
Uma civilização que já olhou para cima e para baixo para se "nobilitar" socialmente, talvez encontre novos caminhos de distinção olhando para longe.
16 de Novembro – Com a morte de Saramago, Pilar, a viúva, ganha uma visibilidade diferente. Ela sempre lá esteve mas agora ‘vê-se’ mais. E continua-o. A sua voz espanhola lendo um livro de Saramago, sobreposta na voz portuguesa de José - é um artifício da montagem do filme "José e Pilar", mas é também a vida real, duas vozes coladas uma na outra, duas línguas entrelaçadas como as mãos que se agarram várias vezes durante a vida e durante um documentário que merece todos os elogios. O tempo urge e a doença reduz a voz do escritor, ameaçando-o com a morte, com a impossibilidade de escrever mais, de amar ainda mais. Saramago tem muita graça, mesmo muita, como quando, cansado da correria mediática, propõe a história do escritor que mata jornalistas em série. Como um casal, Pilar e José discordam um do outro no banco traseiro do carro ou discutem por causa de Hillary e Obama. Como um par de namorados, ela apoia-se na porta do quarto de hospital de José, triste e irritada com os jornais que querem escrever um obituário precoce. Quando ele diz: "Se eu tivesse morrido antes de conhecer Pilar teria morrido muito mais velho." Pensamos que talvez só o amor impeça a morte. Talvez por isso José diga que quer que Pilar o continue. O escritor que vivia desassossegado e escrevia para desassossegar também diz, sozinho e apaixonado, para a câmara: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio." E nós acreditamos, nós só podemos acreditar.

Nova Aliança, 25 / 11 / 2010