5.7.11

O copianço dos futuros juízes e os 'erros' das sondagens

17 de Junho – Se dúvidas houvesse sobre o modo como se faz justiça em Portugal, o recente caso do copianço generalizado num teste de uma cadeira do Centro de Estudos Judiciários.retiraria qualquer dúvida.
Acrescente-se que, perante o facto, o CEJ, por decisão administrativa, atribuiu um 10 a todos os alunos. E o próprio director adjunto do CEJ justificou a decisão afirmando que entre os 140 auditores de Justiça houve quem não tivesse copiado, pelo que uma sanção mais pesada seria injusta para estes últimos, que também ficaram com nota 10.
Quer isto dizer que é legítimo punir os inocentes, desde que a pena não seja muito pesada. No caso concreto, a instituição optou por nivelar por baixo, punindo cegamente e sem fundamento todos por igual. Por não ter criado em devido tempo mecanismo que impedem o copianço e mecanismos que detectem sem margens para dúvida quem copia, o CEJ vê-se obrigado a punir levemente todos, incluindo os que não copiam.
Mas como vão ser juízes, é melhor ficarmos caladinhos perante uma rasteirice que não se aceita nem nos momentos mais tristes da vida de uma escola pública comum.Para que serve eu tentar incutir brio nos meus alunos, se é com isto que eles se deparam em candidatos a exercer um dos poderes basilares da República. Copiar num exame é infantil e desonesto; e para todos os efeitos é um crime – que, em princípio, a lei não pune. Que seja cometido por futuros juízes e magistrados é ainda mais grave.
Protejam-se, cidadãos, eles estão a chegar...

19 de Junho – Como muitos outros, fiquei surpreendido com a diferença entre os resultados finais das últimas eleições e as sondagens divulgadas até à véspera das mesmas. Tenho para mim que as razões desta discrepância são diversas, mas a confusão lançada na opinião pública poderia ter sido evitada.

Julgo, em primeiro lugar, que as sondagens constituem uma estimativa da intenção de voto num dado momento, embora sejam interpretadas pelo público, e até pelos media, como uma previsão. De forma a dissipar esta confusão, impõe-se que os institutos passem a apresentar não só o resultado das sondagens, mas que expliquem também de que forma estes podem antecipar (ou não, pelos vistos) os resultados eleitorais.
Para além disso, o nível de indecisos e não respondentes incluídos nos estudos foi enorme ao longo da última campanha eleitoral, atingindo valores da ordem dos trinta e muitos por cento, o que inviabiliza a priori qualquer previsão. Compreende-se agora, a afirmação veiculada pelos que anunciavam que os indecisos da área socialista ficaram em casa para penalizar Sócrates, enquanto os da área social-democrata foram votar, num último impulso que os impelia à mudança.

Por último, as sondagens dos diversos institutos não consideraram a distribuição de mandatos pelos diversos círculos. Desde logo, ignoravam que, em cerca de quinze dos vinte círculos, a distribuição de mandatos é quase inamovível. De facto, a adopção do método de Hondt, nos círculos com quatro ou seis deputados, exclui os pequenos partidos e privilegia os dois maiores. Aliás, o sistema apenas se revela verdadeiramente proporcional nos maiores círculos, como Porto e Lisboa. Acresce ainda que nos cálculos apresentados não foram considerados os votantes das ilhas e dos círculos da emigração, onde o PSD é claramente dominante face ao Partido Socialista.

Com todos estes efeitos somados, não é pois de admirar que as intenções de voto no PSD tenham sido subavaliadas ( com que interesse escondido? ), enquanto relativamente ao Partido Socialista e ao CDS eram sucessivamente inflacionadas.
Mas a verdade está reposta com o acto eleitoral, que constituiu o dia do juízo final, não só para Sócrates, mas também para as sondagens.

Nova Aliança, 22 / Junho / 2011

A agressão das duas adolescentes e Martin Amis

31 de Maio – Não acredito que o leitor não tenha visto o filmezinho em que duas adolescentes espancam uma terceira junto a um centro comercial de Benfica. E quem mais se esforçou para que toda a gente o visse foram os outros adolescentes que testemunharam a cena, registaram-na no vídeo do telemóvel e publicaram-na imediatamente no Facebook. E os jornais televisivos que a transmitiu não sei quantas vezes no noticiário enquanto uma jornalista (em off) descrevia o horror que aquelas imagens devem suscitar.
Sobre o episódio, julgo não hver muito a acrescentar. As imagens falam por si. Histórias de proezas idênticas surgem com crescente frequência mas apetece-me comentar o comentário da jornalista em questão, que encerrou a "peça" confessando a estranheza que lhe suscita a selvajaria de uma geração que, cito de memória, tem tudo para não ser selvagem.
Eu até compreendo, em Portugal todos somos especialistas em Educação. Mas a senhora estava à espera de quê? Uma escola "inclusiva" e reduzida a depósito da criançada? Professores sem autoridade e vontade? Pais que não educam por incapacidade ou demissão? Consolas de jogos? Telemóveis? O Magalhães?
Até parece que o universo em peso parece conspirar de modo a facilitar, ou a incentivar, a fúria animal das meninas de Benfica. Ao contrário da senhora jornalista, o que me espanta é o facto de ainda haver adolescentes que não passam os seus dias a pontapear o semelhante. Ou talvez passem e não chegam ao Facebook. Ou chegam ao Facebook e os telejornais não notaram. Ou notaram e eu não reparei nos telejornais, que têm tudo para ser úteis e afinal… são isto.
3 de Junho - Gosto de Martin Amis. Dos ensaios e dos romances. Penso que, depois de Gore Vidal, não existe pena mais inteligente sobre livros e literatos.
Ora, é pena que, ao natural, Amis não tenha a mesma elegância. Agora, conta o "The Sunday Telegraph", o escritor inglês desceu o chicote sobre a Família Real em declarações à imprensa francesa. "Filistinos", diz Amis. E porquê?
Logicamente, porque ignoram a importância de Martin Amis no esquema geral do mundo. Pior: nem sequer conhecem a sua obra literária. "A rainha não escuta ninguém", diz Amis, que teve encontros formais com a rainha e percebeu, pelo olhar enfadado da senhora, quão insignificante ele era.
O mesmo com o marido, o duque de Edimburgo. "Sou escritor", disse-lhe Amis. O duque, espantado, replicou: "A sério?"
As palavras de Martin Amis têm interesse porque não é todos os dias que vemos um "snob" lambendo as feridas em público. E uso o termo "snob" no sentido em que ele era usado para hierarquizar os alunos na universidade de Cambridge no momento da matrícula: depois do nome, aparecia a condição social. Para quem não nascera em berço aristocrático, um "sine nobilitas" ("sem nobreza", i.e., "s.nob") arrumava com o sujeito.
Exatamente como Amis se sente arrumado, prova acabada de que o "filistino", na verdade, é ele. Se Amis não concedesse à Família Real importância alguma, jamais haveria semelhante exibição de vaidade e ressentimento. Para os neutros em matéria monárquica, a existência dos Windsor é, quando muito, um anacronismo pitoresco do qual não exigimos reconhecimento ou aplauso.
Mas Martin Amis quer reconhecimento e aplauso. E apesar de deplorar a histeria mundial com o casamento real do passado dia 29 de abril, ele não se distingue das multidões sentimentais que encheram Londres para saudar William e Kate.
A única diferença é que as multidões aplaudiram os noivos. Amis, se pudesse, atirar-lhes-ia tomates ou ovos podres. Duas formas de paixão são duas formas de paixão.O leitor, que intimamente também alimenta iguais sentimentos de amor e ódio pela instituição monárquica, sabe do que falo.
Para concluir, Amis confessa ainda, em tom dramático, que gostaria de não ser inglês. Pobre Martin. Só um perfeito inglês teria uma relação tão intensa e patológica com a primeira das famílias nativas.

Nova Aliança, 9 / Junho / 2011

Strauss-Kahn, a violação absolvida e Luís Fernando Veríssimo

Imaginemos que o caso Dominique Strauss-Kahn tinha acontecido ontem, em Portugal, no hotel Ritz. O indivíduo, sozinho numa suite, tentar abusar sexualmente de uma empregada o hotel. E fugir do local, à pressa, deixando para trás telemóvel e outras coisas pessoais.
Imaginemos que a empregada fazia queixa na esquadra de polícia mais próxima, indicando os factos, a nacionalidade do suspeito e o evidente perigo de fuga do indivíduo.

Que fazia a PSP, neste caso? Tomava "conta da ocorrência". Escrevia no computador o relato da vítima, pedia-lhe provas a apresentar e...ficava por aí.

A PSP nunca iria ao aeroporto, à noite, tentar interceptar o suspeito em fuga. Nunca teria o bestunto e a racionalidade em abordar com rapidez exigível o responsável do aeroporto e diligenciar legalmente pela detenção do suspeito para averiguação necessariamente sumária e antes de apresentação a um juiz.
Mas consideremos que havia no posto da PSP um agente que tivesse esse dom raro da capacidade investigatória adequada às circunstâncias. Imaginemos que iria em patrulha ao aeroporto, entraria no avião e deteria o suspeito. E imediatamente comunicava o facto ao MºPº como manda a lei processual penal.
O que aconteceria? Não é difícil de imaginar, tendo em conta o que sucedeu no processo Casa Pia, até porque os intervenientes são quase os mesmos.
O inefável Rui Pereira seria acordado às duas da manhã. O que faria? Será difícil de imaginar? Faria como Souto Moura fez nessa altura em que António Costa, um ex-ministro da Justiça do PS fez, pressionando-o para resolver o assunto a contento dos socialistas em perigo? Diria que nada poderia fazer porque o assunto estava já nas mãos de um juiz de instrução ou, no caso, do MºPº?

Alguma vez poderíamos supor que o suspeito ficaria detido para apresentação a um juiz, não hoje, mas amanhã, segunda-feira?

A resposta a estas perguntas deve ser colocada ao responsável pelo FMI que por cá esteve a dar palpites sobre o nosso sistema jurídico-penal...
Uma mulher grávida de 34 semanas foi violada no consultório do psiquiatra que consultou para a ajudar a ultrapassar a depressão de que sofria. O médico que a violou, com sexo oral e cópula, foi absolvido pelo Tribunal da Relação do Porto porque os actos praticados, considerados provados, não foram praticados com a violência a que a lei obriga, deliberaram dois dos três magistrados.

O acórdão foi revelado esta quinta-feira pelo Diário de Notícias. A relatora do acórdão, a juíza Eduarda Pinto e Lobo, considerou que não ficou provado se o médico, ao obrigar a paciente a realizar sexo oral, o fez a agarrar a vítima pela cabeça ou pelos cabelos.

«Não se vislumbra como é possível considerar o acto de agarrar a cabeça como traduzindo o uso de violência de modo a constranger alguém à prática de um acto contra a sua vontade. A não ser que se admitisse que o mero acto de agarrar a cabeça provoca inevitável e automaticamente a abertura da boca», lê-se no documento, citado pelo DN.

Os juízes que assinaram a absolvição do médico, que tinha sido condenado em primeira instância a cinco anos de pena suspensa e a pagar 30 mil euros à vítima, consideraram ainda que a grávida de sete meses não ofereceu resistência.

«Se a força física utilizada tem de ser, como atrás se disse, a destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada, o que pode afirmar-se é que no que respeita ao coito oral não se provou qualquer tipo de resistência por parte da vítima. Ou, pelo menos, uma resistência que o arguido tivesse tido necessidade de vencer através do uso da violência», escreveram.

A violação da paciente não foi apenas no sexo oral. O médico obrigou a vítima à cópula empurrando-a contra o sofá do consultório. Facto que também não convenceu os meritíssimos juízes.

«Os factos provados não permitem concluir que, ao empurrar a ofendida contra o sofá, o arguido visou coarctar-lhe a possibilidade de resistência aos seus intentos ou se, com esse acto, pretendeu apenas o arguido concretizar a cópula que, de outra forma, não conseguiria, dado o avançado estado de gravidez da vítima: 34 semanas. Para que o empurrão na ofendida integrasse o conceito de violência, visado como elemento objectivo do crime de violação, teria de traduzir um «plus» relativamente à força física normalmente utilizada na prática de um acto sexual», determinaram.

Um dos juízes do colectivo, José Baião Papão, votou contra esta decisão e na declaração de voto escreveu que a «aparente fruste resistência da assistente é inteiramente compatível com o estado de fragilização em que então se encontrava: depressão e gravidez».
30 de Abril – Durante vários dias não se falou de outra coisa. Muitos ansiaram pelo dia de hoje apenas para o ver. À frente dos televisores, verdadeiras multidões aguardaram religiosamente para o poder avistar.
Claro que não falo do acordo com o FMI. Isso não é verdadeiramente importante ao lado do que realmente interessa: o vestido de noiva de Kate Midleton

Em jornais e televisões, não havia especialista doméstico que não oferecesse palpites sobre o modelo escolhido. O caso pode despertar um riso malicioso. Não contem comigo. Eu também o vi.
Segundo os especialistas, o casamento terá custado entre 20 a 30 milhões de euros, em grande parte suportados pelos contribuintes, para garantir a segurança do evento e a limpeza das ruas. Mas é possível que o retorno do ‘turismo real’ (hotéis, restaurantes, televisões, etc.) ascenda aos 6 mil milhões.
Curioso: nós, latinos e vulgares, desprezamos estas coisas de reis e princesas e, em vez disso, construímos estádios de futebol que continuam por aí a apodrecer e a arruinar o bolso público. Os ingleses, monárquicos e elitistas, montam e desmontam uma festa global em poucos dias – e multiplicam o investimento rumo à estratosfera. Se fosse necessário um argumento de peso a favor da restauração monárquica, bastaria este: um vestido de noiva não precisa de grande manutenção.

4 de Maio – Deixem-me apresentar-vos um dos melhores cronistas da língua portuguesa: Luís Fernando Veríssimo. Um dos mais populares escritores brasileiros, mais conhecido pelas suas crónicas e textos de humor publicados diariamente em vários jornais brasileiros, Verissimo é também cartoonista e tradutor, além de guionista de televisão, autor de teatro e romancista. Já foi publicitário e é ainda músico, tendo tocado saxofone em alguns grupos. Com mais de 60 títulos publicados, é filho do também escritor Erico Verissimo. Eis um dos seus textos, transcrito do original com a devida vénia:
“Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar:
Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em São Paulo.
Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, "em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!" ela disse. Então, sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas...
Se eu soltar, ela vai às compras!
Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico.
Então, ela disse: "nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar".
Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.
Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a "senhora certa".
Só não sabia que o primeiro nome dela era "sempre".
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: "O que tem na TV?"
E eu disse: "Poeira".”

Nova Aliança, 12 / Maio / 2011

A aterragem de emergência e Terry Jones

16 de Abril – Podem não acreditar mas juro que é verdade. E juroporque li. Ontem, um jornalista foi esperar os passageiros do voo Rio-Lisboa que teve de fazer uma aterragem de emergência em Salvador. Lembram-se do caso? Houve uma explosão, sentiu-se cheiro a queimado, viu-se fumo na cabina, até que o avião aterrou na pista cercada por ambulâncias e carros de bombeiros. Que susto, não é? Podem crer mas a história não acaba aqui. No texto da agência publicado pelos jornais, cito o parágrafo a seguir ao susto: "O pior mesmo, segundo o testemunho [de uma] passageira, passou-se já em pleno aeroporto de Salvador..." E a testemunha, confirmada por outros passageiros, insistiu (e os jornais publicaram e eu li ): "Aí é que foi pior..." Ali, no aeroporto de Salvador. Ali, pois, aconteceu o indizível mesmo para as pessoas curtidas por uma quase desgraça recentíssima. Mas aconteceu, o quê? Uma bomba, como a da ETA em Barajas? Um homem-bomba, como recentemente no moscovita aeroporto de Domodedovo? Racketing da polícia como no aeroporto de Kinshasa?... Vou directo ao horror sofrido pelos passageiros: "Estiveram até depois das 06.00 até que foram transferidos para um hotel." Vocês dão-se conta da ironia da história? Horas até ser transferido para um hotel! Outro qualquer tinha ido para o bar comemorar não ter ido para o galheiro e escapava-me a oportunidade de pôr nos meus cartões de visita: "Fulano de Tal - Ex-sobrevivente de uma transferência demorada para um hotel em Salvador." Claro que nunca me faltaria conversa nos jantares sociais.


19 de Abril – O nome de Terry Jones diz-vos alguma coisa? Eu relembro: Jones, pastor na Flórida, ameaçou em tempos que queimaria o Corão por considerar o livro nefasto e diabólico. Felizmente, acabou por desistir da ideia e, dessa maneira, regressou ao justo esquecimento de onde nunca deveria ter saído.
Por pouco tempo, vê-se agora. Recentemente, Jones voltou ao local do crime e queimou mesmo o Corão. Os meios de comunicação norte-americanos, dessa vez, ofereceram reduzido palco ao pastor. Mas um discurso do presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, condenou o ato e voltou a trazer Terry Jones para o mundo dos vivos. Ou, melhor dizendo, dos mortos: na cidade afegã de Mazar-i-Sharif, um ataque a funcionários da ONU provocou 7 vítimas. Em Kandahar, mais 9, sem falar de incontáveis feridos, destruição de lojas, escolas e carros. E no Ocidente?
No Ocidente, é provável que o digníssimo leitor se sinta indignado pela atitude de Jones, questionando seriamente: por que motivo o pastor ofendeu a religião dos outros?
Não tenciono desculpar Terry Jones, que merece tratamento psiquiátrico e não defesa pública. Mas, em vez dessa, talvez devessemos fazer a perguntaa pergunta: será razoável matar e destruir porque alguém queimou o Corão do outro lado do mundo?
Responder a essa questão não é difícil. Basta que o leitor faça uma inversão de papéis e, mesmo sendo profundamente cristão, imaginar por momentos o que faria se um tresloucado afegão queimasse a Bíblia por considerar o texto herético.
Aposto que não sairia por aí decidido a matar e a destruir ( afinal de contas, tenho em grande conta o meu leitor… ). Existe uma diferença fundamental entre queimar livros e queimar gente. Ou não existe?
Terry Jones, no seu fundamentalismo bacoco e fanfarrão, é com certeza um personagem doente. Mas nessa história do Corão queimado é preciso não esquecer onde está a verdadeira doença.O leitor sabe do que eu estou a falar…


Nova Aliança, 28 / Abril / 2011

As viagens em 'económica', as viaturas dos gestores e o aquecimento global

4 de Abril – Há coisas engraçadas. Quando as viagens de avião dos eurodeputados eram pagas ao quilómetro, eles escolhiam ir em turística. Pudera, convinha nessa altura. Depois, passaram a ser reembolsados só mediante a entrega do bilhete e começaram a viajar em executiva. Obviamente interessava a mudança. Esta semana, o eurodeputado português Miguel Portas (do BE) fez uma proposta para que as viagens de avião com menos de quatro horas fossem só em turística. Em tempo de crise, a proposta fazia poupanças públicas (por exemplo, um Lisboa--Bruxelas ficava três vezes mais barato). E, além do mais, tinha sentido nos tempos que correm:... Ora, o Parlamento de Estrasburgo votou contra (402-216), confirmando o egoísmo dos que ‘podem’ explorar o próximo ("temos de apertar o cinto: apertem!"). Havia, porém, uns eurodeputados em condição especial, os portugueses, que votavam na mesma semana em que o seu país foi oficialmente para todos os efeitos dado por falido. Desses, esperava-se, pelo menos, oportunismo ou fingimento. Exigia-se deles um faz-de-conta sem mácula. Mas votaram assim: 9 a favor e 9 contra. Quem quiser vá às notícias ver a que correspondem em grupos políticos. O importante, mesmo, foi 9 agarrarem-se ao seu privilégio do aperitivo antes do descolar. No fundo, foram ‘coerentes’.Terem-se agarrado a isso em troca de se exporem demasiado releva uma sinceridade preocupante: mostraram desprezo pelos seus eleitores e não se importam.

10 de Abril - A notícia veio no Correio da Manhã do dia 1 de Abril e eu, que sou um ingénuo, julguei que se tratava de uma mentira própria do dia: a administração da Carris ter-se-ia autocontemplado, em 2010, com quatro viaturas topo de gama em ALD, apesar de a empresa apresentar um "buraco" financeiro de 776,6 milhões de euros.
Todos sabemos que a generalidade das empresas públicas cumpre a patriótica tarefa de dar emprego a "boys" e "girls" do PS e do PSD. Por isso mesmo, a última aliança parlamentar dos dois partidos-comadres antes da zanga foi para chumbarem na AR uma proposta no sentido de, em tempos de crise, haver também limites para os salários, prémios e mordomias várias dos chamados gestores públicos.
Sendo a paciência dos contribuintes e eleitores ilimitada, os salários e prémios dos "boys" continuam a não ter, na prática, outros limites senão os da decência dos próprios. Daí que, além dos novos Mercedes, Audi e BMW, os administradores da Carris também se tenham aumentado em 2010, premiando-se por terem conseguido o milagre económico de afundar nesse ano a empresa com mais 42,3 milhões em resultados negativos.
Compreendem agora a minha ingenuidade. É ou não esta uma boa peta do 1 de Abril? Só que hoje, em Portugal, 1 de Abril é sempre que um homem quiser. E, nos últimos anos, tem sido todos os dias.
12 de Abril – Não desesperem, ainda há boas notícias. Parece que um "número recorde" de 134 países aderiu à edição deste ano da Hora do Planeta e desligou as luzes entre as 20.30 e as 21.30 de sábado a fim de sensibilizar o mundo para, cito, "os perigos do aquecimento global".
Compreendo o problema. Também acho necessário sensibilizar o mundo, que é casmurro, para os perigos do aquecimento global, da gripe A, dos papões do FMI e de outras coisas imaginárias e assustadoras. Mas não, não apaguei a luz, não senhor.
Todavia, contribuí à minha maneira: dado que evitei perder dezenas de horas a publicar convocatórias alusivas ao "apagão" no Facebook, no Twitter, nos blogs, e acabei por poupar muito mais electricidade do que os militantes que participaram activamente na causa.
Dessa forma, participei passivamente no combate a outra calamidade, menos fictícia e popular: a crendice colectiva que, ao contrário do aquecimento global ou dos fantasmas, provoca-me um medo desgraçado. Uff!


Nova Aliança, 14 / Abril / 2011