14.5.08

Um bom exemplo, a escola de labregos e Musil

14 de Abril – Generosidade
Uma turma de uma secundária de Reguengos de Monsaraz, deixou de lado a possibilidade de recolher fundos destinados à viagem de finalistas, para ajudar a pagar o custo elevado da reparação do carro de um professor, acidentado durante uma actividade organizada pela escola.
Na falta de veículos que transportassem os alunos, um dos docentes emprestou a sua viatura que acabou acidentada, sendo vultosos os prejuízos.
Os alunos organizaram um jantar de recolha de fundos para reparação da viatura. E admitem abdicar da sua viagem de finalistas, canalizando o que juntarem para aquela necessidade.
Importa sublinhar estes exemplos. Dos professores generosos que empenham na educação tempo e meios para além do que é a sua obrigação. E de alunos que cultivam a solidariedade como valor. E a sobrepõem a apelos a que é natural não resistir naquela idade, como é o caso da almejada viagem de finalistas.
Aí está uma escola - Escola Secundária Conde de Monsaraz – que parece ser, acima de tudo, um centro de formação de bons cidadãos.

20 de Abril – Repetência ou Passagem?
A Ministra da Educação diz que "chumbar os alunos é a maneira mais fácil de resolver o problema...". E eu pergunto: para quê, então, complicar?
Mas a Ministra continua a falar: "...O que significa é que a repetência devia constituir um espaço de trabalho efectivo para que eles recuperassem. O problema é que esses alunos nunca recuperam".
E eu pergunto, mais uma vez: então, para evitar a repetência, dá-se aos alunos a passagem, como forma de recuperação?

21 de Abril – Labrego, sê-lo ou não.
Os conflitos entre alunos e professores na escola estão longe de terminar. Muito longe mesmo. Uma menina teria apelidado a professora de ‘labrega’ e a visada ameaçou ir para tribunal. A mãe julga exagerada essa reacção e esclarece: “Para mim, ‘labrega’ é uma pessoa do Norte”.
Quem sou eu para negar o monopólio dessa condição a ‘Norte’ (conceito vago que, a crer no futebol, consistirá numa espécie de mapa entre a Póvoa de Varzim e Aveiro) mas uma rápida consulta do dicionário desmentiria tal definição. Ora, embora a senhora nunca o venha a perceber, foi ela a autora da ofensa mais rude – quero dizer com isto que a afronta da mãe explica a da sua filha e explica muitas coisas na sociedade portuguesa.

23 de Abril – Um muito bom livro.


Esta é, desde já, uma das edições mais importantes entre todas as que ocorrerão em Portugal no decurso deste ano. Chama-se O Homem sem qualidades e é da autoria de Robert Musil. Os dois volumes que a Dom Quixote acaba de fazer chegar às livrarias constituem, no nosso país, a primeira versão completa, traduzida directamente do alemão, do incompleto romance musiliano. João Barrento, o responsável pela presente versão de Der Mann ohne Eigenschaften, referiu ter andado três anos à volta do texto, o que até nem é muito, sobretudo se tivermos em conta que, para o autor, o romance ocupou bem mais de dez; começou a ser publicado em 1930 e representou um projecto em trabalho permanente até à morte de Musil, em 1942.
A importância de O Homem sem Qualidades para uma modernidade literária marcada pelo questionamento e mesmo pela sabotagem da organização que poderíamos chamar clássica da linguagem não parece tão visível como no caso de outros romances (como Ulysses, por exemplo), mas a verdade é que o início se constitui desde logo como o oposto do que tradicionalmente seria o começo de uma narrativa, precisamente por anunciar que nada acontece. Ao mesmo tempo, a descrição parcelar das condições atmosféricas, no aparente intuito de localizar a acção no tempo, indicia a impossibilidade de apreender a totalidade, o que é uma das características mais assinaláveis da modernidade.
Não surpreende, portanto, que o romance questione o modelo oitocentista da narrativa, não só porque se baseia, em grande medida, em diálogos reflexivos e em digressões que servem fundamentalmente para prolongar o que é ensaiado nas falas das personagens, mas também porque a ironia se constitui como o próprio modelo estrutural do livro. Esta questão pode ser mais facilmente compreendida se recorrermos a uma cena em que Ulrich, o protagonista, é obrigado a interromper uma série de importantes reflexões por ter chegado ao seu local de destino. O que Musil sugere aí é que o lugar do pensamento no nosso tempo não é mais do que o percurso entre dois espaços, ou seja, o que sobra da acção. Assim, a ironia vira se contra a obra que a funda e impede que esta se tome demasiado a sério, abrindo espaço para a contingência, para a possibilidade, em suma, para o acaso.


Nova Aliança, 2 / Maio / 2008

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