23.3.06

Exercício de Memória

Para todos aqueles que têm memória curta, proponho uma pequena viagem no tempo. Pequena porque a viagem é curta. Lembram-se do caso Marcelo? Eu lembro. Era o tempo em que o professor entrava pelo serão nos lares portugueses com as suas conversas dominicais. Criticava toda a gente e foi chamado ao gabinete da administração. Não terá gostado e preferiu sair. Levantaram-se logo todas as vozes: perseguição, falta de liberdade de expressão, fascismo nunca mais, a liberdade de imprensa é sagrada, etc, etc. O Presidente da República, com uma lágrima no canto do olho, concedeu-lhe logo uma audiência, que aquilo não podia ser, que era uma injustiça, onde é que já se viu querer calar uma voz livre.

Lembram-se do GIC? Eu lembro. O GIC, que oficialmente nunca existiu, era nem mais nem menos do que o Gabinete de Informação e Comunicação que o governo de Santana Lopes se propões criar e que Jorge Sampaio vetou, a 21 de Novembro de 2004, não tanto pelos sete coordenadores que o gabinete teria mas sobretudo por considerar que “não há défice, antes excesso de presença estatal e governamental nos meios de comunicação”. Sócrates, na oposição, congratulou-se com esta decisão porque “o Governo estava a passar das marcas na tentativa de pressão e controlo da comunicação social”. Opiniões patéticas quando se assiste hoje à cuidadosa gestão da mesma informação. O que antes era desinvestimento, pressão, fascismo, burocracia, agora é progresso, democracia, investimento, o futuro que “amanhã cantará”.

Lembram-se do caso 24 Horas? Eu lembro. A polícia judiciária, a mando do procurador-geral da República, invadiu as instalações do jornal naquele que constitui um verdadeiro atentado à liberdade de imprensa. Frustrado por nada conseguir descobrir, o procurador virou-se contra os próprios jornalistas mostrando que há quem possa fazer tudo o que lhe apetece, até mesmo violar o sigilo profissional dos jornalistas. O senhor juiz do Tribunal de Instrução criminal de Lisboa encarregue da investigação do caso autorizou o acesso aos computadores dos jornalistas, considerando que “a possibilidade de devassa do sigilo profissional é inferior ao crime que está em discussão”. Ora, como é que se pode dizer uma coisa destas? A partir de agora, poderá um jornalista continuar o seu legítimo trabalho de investigação? E o presidente da República? Ficou agora tão preocupado como há uns tempos atrás? Alguém o ouviu?

Lembram-se do que se propõe fazer-se? Eu lembro. Propõe-se mexer no Código Penal e punir todos os jornalistas que coloquem “em perigo” investigações criminais. Mas mais do que isso, a lei que estabelece a inefável Entidade Reguladora para a Comunicação Social equipara os funcionários deste organismo a “agentes da autoridade”, que terão poderes praticamente ilimitados para, sem mandato de captura, enfiarem o nariz nas redacções dos jornais. Noutra altura, qualquer espirro será encarado como uma ameaça democrática a que o regime respondia com vigor. Hoje…

Lembram-se dos terrenos do IPO? Eu lembro. Desta vez, vá lá saber-se porquê, a venda dos terrenos do IPO e a transferência dum hospital com estas características para outro local ainda a determinar não motivou a mais pequena inquietação nas habitualmente enérgicas comissões de utentes e de trabalhadores. Neste caso, tudo parece resumir-se a uns trocados sobre o valor dos terrenos. Outros tempos…

Lembram-se da co-incineração? Eu lembro. O anúncio do início dos testes para a co-
-incineração dos resíduos industriais perigosos foi recebido abulicamente pelas associações e movimentos que, com outros governos, se mostraram especialmente contundentes. Um exemplo. Em Março de 2004, o aeroporto da Ota era para a Quercus “um elefante branco”, em Julho de 2005 era “a única solução viável”. Outro exemplo. A Liga para a Protecção da Natureza (LPN) apresentou em 2003 uma queixa em Bruxelas que levou à suspensão das obras da barragem de Odelouca. O projecto foi remodelado mas em Janeiro de 2005 o presidente da LPN declarava que dificilmente Odelouca poderia ser construída porque a barragem continha “graves distorções ambientais”. Em Junho de 2005, dirigentes da LPN assistiam ao lado do ministro do Ambiente ao anúncio do reinício das obras de Odelouca.

Então que tal a viagem? O sudoku arrastou consigo a moda dos exercícios de memória, convém fazê-los regularmente.

8.3.06

As reformas autárquicas

Queixamo-nos anos e anos que a justiça portuguesa é lenta e depois apanhamos com histórias destas que nos desmentem com todas as letras. Prestem pois atenção.
Era uma vez um funcionário exemplar de uma Câmara Municipal portuguesa. Em dez anos de carreira, nunca faltou ao trabalho. Eis que, num belo dia, sem ninguém esperar, ele dá uma falta injustificada. E logo a seguir outra, e mais uma… Cinco, cinco faltas injustificadas ao exemplar funcionário. Todos se admiraram, onde é que já se viu tal coisa, patati, patatá, houve mesmo um processo disciplinar e, como o funcionário não apresentou recurso, curiosamente, ao fim de duas semanas havia já um relatório final. O assunto foi discutido em reunião de câmara e o funcionário recebeu a adequada punição ( de acordo com o jornal, a segunda mais grave da função pública ): compulsivamente mandado para a reforma. Qual foi o castigo: uma reformazita de mais de três mil euros, nada má para dez anos de serviço…
Duas semanas depois de estar em casa a gozar os rendimentos, este funcionário, prematuramente aposentado mas ainda cheio de força para trabalhar, foi convidado para uma nova função: administrador de uma empresa municipal. O leitor estará confuso e perguntará: de qual câmara? Ora, da mesma, evidentemente. E lá ficou o nosso jovem aposentado a acumular a reforma antecipada de seiscentos e tal contos mensais com mais alguns centos do novo cargo na administração. Digam lá se não existem mesmo momentos felizes…
( Entrementes, continuam a tentar convencer-nos que o país está numa situação difícil, que os funcionários públicos são uns malandros e os únicos culpados da crise e até o governador do Banco de Portugal aproveitou a “crise” para renovar a luxuosa frota automóvel da instituição. Fim do entrementes. )
Esta história não terminou aqui e acabou por ir parar ao tribunal. Existiam alguns pontos obscuros que deviam ser esclarecidos. Então um funcionário tão cumpridor dá repentinamente cinco faltas injustificadas, sofre um processo disciplinar, não esboça qualquer contestação, há uma decisão rapidíssima de passagem à reforma, logo a seguir o convite do mesmo patrão que o “castigara” para um cargo de responsabilidade. Quantas coincidências por aqui vão…
Em tribunal, constatou-se a falta de vergonha. Tudo tinha sido bem pensado e mais ou menos combinado e o juiz condenou o homem por abuso de poder. A pena foi só uma multa de 4650 euros, uma verba que um dos seus dois vencimentos pode pagar. Na sala de tribunal, o juiz afirmou que aquele era um procedimento relativamente vulgar na autarquia e eram conhecidos diversos casos semelhantes de “passagens compulsivas à reforma” por faltas injustificadas… É um “esquema” típico da malandrice portuguesa e pomo-nos apensar com os nossos botões quantos funcionários naquela câmara municipal, ou noutras, estão hoje tranquilamente a gozar as suas reformas devido a um qualquer “castigo” por não terem cumprido alguns deveres profissionais. Alguém desdenha um castigo destes?
A parte boa desta história é que, por vezes, a administração pública deste país é rápida: em pouco mais de um mês instaurou-se um processo disciplinar, houve a respectiva instrução e deu-se o veredicto. Coisa rara e eficiente… Para além disto, a justiça funcionou neste caso às mil maravilhas e muito rapidamente: o funcionário foi rapidamente “punido” com a tal reforma e, descoberto o truque, voltou a ser “punido” com uma elevada multa de 4650 euros. Digam lá agora se o crime compensa… ah, um último pormenor, o caso passou-se na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim.

Nova Aliança, 3 / Março / 2006