16.11.11

Os funcionários públicos e os funcionários privados

1 de Novembro – Como responderia o leitor à questão: ‘Dava 24% do seu salário em troca da segurança de emprego vitalício?’
Muitos funcionários públicos deram, mesmo que ninguém lhes tenha perguntado nada. A decisão poupa milhões mas, em minha opinião, não tem pés nem cabeça. Há uma colectividade numerosa que defende estes cortes com base em dois argumentos: o de que os funcionários públicos têm segurança no trabalho; e que ganham mais do que o sector privado. Esta raiva contra a Função Pública é já um sintoma de cisão social. Mas está assente em várias falácias.

Os trabalhadores com contrato de função pública têm segurança do trabalho (apetece dizer: por enquanto). Mas estes cortes afectam muitos outros que a não têm: os funcionários das empresas públicas, de empresas municipais e de institutos que venham a ser extintos, se tiverem contrato individual de trabalho. Mas a principal falácia é outra: a de que os funcionários públicos ganham mais. Isso é verdade... em média.

Segundo estudos do Banco de Portugal, os funcionários públicos auferem entre 10% e 20% de remuneração superior à iniciativa privada. No entanto, são os que estão nas funções de baixas qualificações que ganham mais, o que se inverte ao longo da hierarquia. Ou seja, quanto "pior" se é, mais se ganha face às empresas; quanto "melhor" se é, pior se ganha comparando com a iniciativa privada.

Esta disfunção salarial é conhecida e não é resolvida, antes agravada, por este corte de salários cego. Quem mais ganha terá um corte superior a quem menos ganha, o que sendo socialmente justo, alarga o fosso face à iniciativa privada. O incentivo para sair da Função Pública (ou para baixar os braços) é agora grande e aqueles que o poderão fazer são os melhores. Há quem ache que são todos malandros e portanto é correr com eles. Essa sanha é míope: a desvalorização da Função Pública tem sido um pecado contra o Estado quase tão grande quanto foi a engorda do número dos seus quadros.

O problema da Função Pública é ser grande demais para o que faz (ou produzir de menos para a dimensão que tem), estar muitíssimo mal chefiada, mal distribuída e enfeudada. Seria estrategicamente melhor para o Estado ter feito um despedimento do que este corte cego. Os custos sociais, no entanto, seriam impraticáveis, tendo em conta o desemprego.

Ver tanta gente a exultar com esta navalhada é inquietante. Como o é ver que ninguém parece querer falar dos pensionistas, a quem também se retiram 14% das pensões dos próximos dois anos. Talvez seja porque os pensionistas não tenham sindicato... Mas não duvide: o Estado está a falhar num contrato que assinou. E se o Governo diz que 80% dos pensionistas não serão afectados, isso só significa que 80% das pensões são baixas.

O Governo ainda não explicou as contas para um corte tão profundo. O desvio do défice do primeiro semestre explica muito mas não tudo. Parece claro que o corte prometido da despesa intermédia está a falhar, e que a reforma do Estado avança como um caracol. Vítor Gaspar faz bem em assegurar o cumprimento das metas mas isso não pode significar a desistência do que Pedro Passos Coelho prometeu e ainda não fez. E, já agora, se o primeiro-ministro está tão cismado em encontrar os responsáveis políticos do desmando actual, devia actuar junto do mesmo sistema que o fez e fará medrar: o político. O financiamento partidário. O número de deputados. A reforma administrativa, que tem de ir mais longe.

Não havia alternativa a medidas com este alcance. Mas havia outras medidas possíveis. Teria sido melhor um imposto extraordinário sobre todos os rendimentos e sobre todo o património. É polémico, claro, mas não menos do que cortar salários à Função Pública. O Governo, que está refém da sua própria pressão de cortar despesa, optou por um caminho que corre o risco da demagogia.

O Estado não está a reestruturar a Função Pública, está a aniquilá-la. O país, no estado que está, precisa da "boa" administração do Estado e é esta que está a enxotar. Arrisca-se a ficar apenas com a "má", que é a comparativamente cara e improdutiva. A todos pede agora compaixão: que apesar de tirar quatro salários dos próximos 48, seja missionário. A salvação do Estado deixou, pois, de ser uma questão de governação. Passou a ser uma questão de fé. Que ela nos proteja.

Nova Aliança, 10 / Novembro / 2011

O aeroportdo de Frankfurt em Beja e Edite Estrela

15 de outubro – Querem perceber como chegámos aqui? Com exemplos destes: no primeiro semestre de 2011, o aeroporto de Frankfurt cresceu 8,3% em número de passageiros, para um total de 26,5 milhões. Numa escala diferente, o Aeroporto Francisco Sá Carneiro cresceu 17% em 2010, para um total de cinco milhões de passageiros. Numa terceira escala, o Aeroporto de Beja cresceu de forma incomensurável, e não precisou de dois semestres. Nem sequer de um. Para dizer a verdade também não precisou de muitos passageiros: em escassos quatro meses, subiu dos zero aos 798 felizes viajantes, os quais se distribuíram por 44 voos a uma média de 18,1 ocupantes por voo. A continuar assim, Beja terminará o primeiro ano de actividade com uns fulgurantes 2394 passageiros, só um nadinha aquém do milhão previsto para 2015 pelo saudoso Governo de Sócrates.”
Rui Oliveira, relações públicas da ANA, explica o sucesso: o Alentejo "é um destino de baixa notoriedade turística internacional"; a região "tem uma oferta hoteleira de reduzida dimensão e diversidade"; não há praias e é grande a distância até à Costa Vicentina, o que significa que "os transferes são onerosos"; "não existe uma cidade costeira alentejana onde o programa turístico se possa concentrar"; a região do Alentejo é "bastante quente" no Verão; os operadores turísticos e as companhias aéreas "evidenciam uma reconhecida aversão ao risco"; "não foi tarefa fácil" convencer o único operador turístico (inglês) a funcionar em Beja; foi "bastante complicado" convencer outros a comprar lugares nos charters em questão.
Critérios semelhantes ou aparentados justificariam a criação de aeroportos internacionais em Almeida, Nisa e Torre de Moncorvo. O que igualmente se justifica é uma pergunta: se, segundo a própria ANA, tudo conspira para tornar o Aeroporto de Beja um hilariante fiasco, que desmioladas, corruptas ou perversas cabeças se lembraram de o construir? Outra pergunta: porque é que as cabeças em causa não estão em tribunal, a responder pelos 33 milhões de euros gastos naquela simpática fraude? Os leitores conhecem as respostas e a sua justificação: isto não é um país a sério, é só um local mal frequentado.
Claro que ambas, respostas e justificação, esclarecem a presente situação de um país acabado, um país cujos descontentes protestam no centro de Lisboa em vez de se manifestarem por exemplo na pista de Beja (o volume de tráfego não ofereceria perigo), um país que parcialmente reclama a perpetuação dos exactos delírios que estrafegaram as suas contas. Por falar em contas, um cínico apuraria que o "investimento" no referido aeroporto chegava para financiar os táxis a partir da Portela aos dois mil e tal turistas anuais durante quatro ou cinco décadas - ou durante século e meio, se os turistas preferissem o rent-a-car. Já um optimista ouviria apenas o senhor da ANA garantir que, de acordo com um inquérito realizado às dúzias de pioneiros britânicos que aterraram no terminal do Baixo Alentejo, a "qualidade percepcionada foi alta". Valha-nos isso, estamos muito mais descansados agora.
17 de outubro – Confesso que gosto da senhora. Diz umas graças e alegra-nos nestes dias mórbidos. Além disso, acho profunadamente injusto admirar as proezas dos escassos compatriotas célebres no estrangeiro e ignorar Edite Estrela. O que fez ela desta vez? Apresentou no Parlamento Europeu uma declaração a exigir junto da ONU que o dia 22 de Setembro seja consagrado como o Dia Internacional da Rapariga. O objectivo, cito, é "assegurar que as raparigas usufruam do investimento e reconhecimento que merecem como cidadãs e importantes agentes da mudança". A proposta não surge agora por acidente: surge em plena Semana Europeia da Acção pelas Raparigas, invenção que coube, é escusado acrescentar, igualmente à dra. Edite.
Claro que, dado o significado da palavra no Brasil, é duvidoso que a dra. Edite conte com o entusiasmo da "presidenta" Dilma. Mas nada de dramas: não faltarão apoios às pobres raparigas que, volto a citar, "têm maior probabilidade de sofrer de má nutrição, estão mais expostas à violência ou intimidação, bem como a serem traficadas, vendidas ou exploradas sexualmente". Uma investigação recente sugere também que as raparigas são mais sujeitas a preencher o expediente laboral com disparates. Mas esta conclusão é resultado de uma amostra restrita que apenas incluía a dra. Edite. E a quem, por cortesia, os investigadores não perguntaram a idade.

Nova Aliança, 27 / Outubro / 2011

O cidadão anónimo do Cacém, o prémio escolar e os médicos mortos que passam receitas

3 de Outubro – Tão iguais e tão diferentes. Conhecem Isaltino Morais? Claro que sim. Ele esteve um dia preso por erro de uma juíza. É, ainda assim, um homem com sorte. Mário Brites, conhecem? Não acredito. Ele é um anónimo cidadão do Cacém que passou injustamente cinco longos meses atrás das grades. A história mete dois polícias que não merecem a farda, uma procuradora do Ministério Público que vai em conversas e, por fim, um juiz de instrução com escassa argúcia. Um agente da PSP vive em guerra com um vizinho. Uma vulgar questão de condomínio. Arranja maneira de tramar o outro. Apresenta queixa por tentativa de homicídio: jura que o vizinho tentou dar-lhe dois tiros e apresenta um colega como testemunha do crime. A procuradora percebeu, na sua fina inteligência, que Mário Brites, o inocente, mentia e que os dois polícias, mentirosos, falavam verdade - e promoveu a prisão preventiva do denunciado, prontamente aceite por um zeloso juiz. Resultado: Mário Brites passou cinco meses preso - até que a Polícia Judiciária, tarde e a más horas chamada ao caso, deu pela mentira. Parece que vai acabar tudo em bem: os polícias continuam polícias, a procuradora não deixa de ser procuradora e o juiz fica juiz. Ttudo normal…

6 de Outubro – De vez em quando, querem atirar-nos poeira para os olhos quando falam de "responsabilidade social" nas grandes empresas. Os relatórios que dão conta do contributo dos grupos económicos em prol da sociedade nunca deixaram de me parecer uma forma tosca de esconder a má consciência de administradores e directores. Com a decisão do Governo de anular os prémios de 500 € aos melhores alunos do secundário, fiquei convencido de que tinha chegado a oportunidade para os grandes empresários se juntarem aos que dizem que o mérito não pode passar sem reconhecimento. Esperei que uma EDP se adiantasse e chamasse a si a atribuição do prémio… uma Portugal Telecom que viesse dizer não, os melhores alunos têm direito a prémio e sou eu quem o vai pagar; uma Galp que se insurgisse contra a decisão de não premiar o mérito e tomasse como sua essa responsabilidade… mas nada. Foi por isso com enorme alegria que dei conta de que uma pequena empresa de Viana do Castelo, que felizmente desconhece a importância dos relatórios de "responsabilidade social", não quis defraudar as expectativas do melhor aluno da cidade (média de 19,4 valores e entrou em Medicina no Porto) e fez questão de pagar o prémio imediatamente. Senhores António Mexia, Zeinal Bava e Ferreira de Oliveira… que desilusão!...

9 de Outubro - Abençoada troika: desde que chegou, os esqueletos começaram a sair dos armários. Esqueletos metafóricos, como nas contas da Madeira; ou literais, como nos 500 médicos mortos que continuam nas bases de dados do sistema. Mortos ou, pelo menos, com grandes probabilidades de já não estarem vivos, disse o vice--presidente da Administração Central do Sistema de Saúde., não sei se por piada. A verdade é que não sei se deverei ficar descansado com a imprecisão da frase: se o nosso sistema de saúde já não sabe distinguir os vivos dos mortos, que Deus nos ajude a todos. Mas talvez a dúvida do vice-presidente se prenda com a quantidade de receitas que os médicos mortos continuam a passar aos vivos, tal como denunciado pela inspecção-geral. Meros casos de fraude? Admito que sim. Mas também admito que Portugal seja o único país do mundo onde os mortos, por motivos de solidariedade nacional, continuam a dar o seu contributo para sairmos da crise. Alguém devia dizer à sra. Merkel que a nossa falta de produtividade não é coisa do outro mundo.


Nova Aliança, 13 / Outubro / 2011

O último filme de Woody Allen

19 de Setembro - Woody Allen tem filmado na Europa. Mas a Europa parece ignorá-lo. Eu esperei que "Meia Noite em Paris" chegasse a Portugal.
Veio agora e fui vê-lo. Chegou num Renault dos anos 20 e levou-me para o melhor filme de Woody Allen desde "Crimes e Pecados" (1989). Surpreendidos? Curiosamente, é sempre a mesma coisa: não há filme de Woody Allen que não transporte o mesmo descontentamento. O descontentamento do presente.
Esse descontentamento tem vários nomes, em vários filmes. Em "Stardust Memories - Memórias" (1980), filme pouco citado e pouco amado, chama-lhe Woody "a melancolia de Ozymandias", uma referência ao poema de Shelley no qual um antigo viajante encontra uma estátua de Ozymandias, "rei dos reis", perdida nas areias do deserto.
A melancolia de Woody expressa a perplexidade de Shelley: como é possível alimentar qualquer vaidade sobre a existência terrena quando a morte e o esquecimento são certos? Trata-se de uma questão gélida porque Woody Allen exclui a hipótese literalmente sagrada: a hipótese de um Deus onipresente e onipotente, que confere à passagem terrena um propósito e um sentido.
Mas a questão que devemos colocar é: haverá propósito? Ou então: haverá sentido? Parafraseando as palavras do Prof. Levy em "Crimes e Pecados" (que, sintomaticamente, se suicida no final), são os seres humanos que conferem propósito e sentido às suas vidas; e fazem-no através de coisas tão mundanas como o amor, a amizade, a arte, o trabalho --e a esperança de que talvez as gerações futuras possam saber mais.
Repito: propósito e sentido. É exatamente o que falta a Gil em "Meia Noite em Paris" (soberbo Owen Wilson). Ele, roteirista em Hollywood com assinalável desprezo por Hollywood, visita Paris com a noiva e os futuros sogros. Para ele, Paris é uma festa. Melhor: Paris era uma festa, uma "festa móvel", tal como Hemingway a descreveu no famoso relato dos anos 20. O presente é apenas uma pálida imagem desse tempo ‘jurássico’.
Difícil discordar. Sobretudo para quem leu "Paris é uma Festa" com grata voracidade. E se o fizemos na adolescência, a coisa piora: será possível ser tão pobre e tão feliz, perguntava eu nessa idade, abismado pela vitalidade da prosa límpida de Hemingway?
É possível, dizia-me ele, quando amamos o que fazemos: existe no trabalho bem feito uma gratificação existencial que suplanta qualquer luxo. Era --e é-- uma grande verdade, que só o tempo acabaria por confirmar.
Hemingway foi o meu Virgílio. Imaginava-o a almoçar no Deux Magots e na Brasserie Lipp. (O Michaud era mais caro --mas, espreitando pela vitrine, era possível ver James Joyce a almoçar com a família).
Bebia muito: xerez seco e, nos dias especiais, uma garrafa de Pouilly-Fuissé. Comia ainda melhor e com pouco dinheiro: "pommes à l'huile", ostras "marennes" (melhores que as "portugaises", dizia Hemingway, para me provocar), trutas "au bleu".
Quando o bolso apertava, ficava em casa, a trabalhar, onde havia tangerinas e castanhas assadas. Ou, nas visitas ao salão de Gertrude Stein, ameixas escuras e amoras silvestres.
Foi Miss Stein, aliás, quem me deu o mais importante conselho literário: só ler livros verdadeiramente bons ou verdadeiramente maus. São os únicos que ensinam alguma coisa.
Woody Allen também leu "Paris é uma Festa". E também o viveu. E o que impressiona em "Meia Noite em Paris" é a apropriação criativa da idealização de Hemingway --essa "idade de ouro" que ressuscita com as doze badaladas para resgatar Gil do descontentamento do seu presente, transportando-o para o passado.
Gil vai. Vai e conhece Zelda, Scott Fitzgerald, Cole Porter e Hemingway "himself", que fala como o verdadeiro escrevia: em golfadas de romantismo e fanfarronice. Mas também conhece Adriana (Marion Cottillard, "ma chérie"), que partilha com Gil a mesma nostalgia pelo passado. Só que, para ele, o passado é Paris nos anos 20. Para ela, que vive nos anos 20, a verdadeira nostalgia é Paris na Belle Époque.
E quando ambos recuam ainda mais e vão visitar a Belle Époque ao Moulin Rouge de Toulouse-Lautrec, encontram Gauguin e Degas, descontentes com a Belle Époque --e suspirando pelo Renascimento de Ticiano e Michelangelo.
Vamos recuando, sempre e sempre, para evitar o descontentamento do presente. Mas essa forma de escape não é apenas ilusória porque todas as "idades de ouro" são sempre um tempo presente e, por isso, descontente para quem as habitou. Esse escape permanente impede Gil de viver no seu presente. E de fazer as escolhas que dão sentido e propósito à sua vida.
Não que essas escolhas sejam garantia de nada. Afinal, o descontentamento da nossa condição é erradicável --e constitui o cimento filosófico do cinema de Woody Allen.

Nova Aliança, 30 / Setembro / 2011

O massacre de Oslo

4 de Setembro – Quando as imagens do massacre de Oslo nos entraram em casa, julgámos estar na presença de um louco. Uma leitura na diagonal das 1500 páginas que Anders Breivik publicou antes de sair da sua quinta norueguesa para provocar explosões no centro de Oslo, dirigir-se ao acampamento de Utøya e matar a sangue-frio dezenas de jovens, reforçou a minha ideia de que estamos mais perante um fanático. O que ele escreve é arrepiante, muitas vezes mentiroso, mas ele sabe o que escreve e por que escreve, quando lhe é útil mentir ou não mentir.
Sabe também que vocabulário usar. Nunca diz que o seu opus é um “manifesto” (palavra que erradamente tem sido usada) mas um “compêndio”, ou seja, um conjunto de textos que pretendem abranger um tema. O compêndio dele tem pelo menos uma meia-dúzia de partes. Numa das primeiras, tenta explicar como o “marxismo cultural” tomou conta do Ocidente a partir dos anos 60. Noutra, tenta provar que demograficamente os muçulmanos dominarão a Europa. Até aqui, nada que não tenhamos lido no conservadorismo mais rebarbativo, com o mesmo manipular de dados e excitar de fobias. Noutra parte ainda, analisa em detalhe a lei canónica para demonstrar que é lícito aos cristãos usar da violência, matarem infiéis e martirizarem-se. Depois passa à explicação de como fabricar bombas ou que alvos atingir (universidades ou eventos literários onde se encontrem muitos “multiculturalistas”, por exemplo). Descansem, caros leitores, não entrarei em pormenores…
Aquilo não é uma coisa incongruente, tendo em conta as intenções do autor. Aquilo é um vírus. Depois de preso ou morto, Breivik desejava contaminar o cérebro de outros como ele. Seria uma excelente surpresa que não o conseguisse…
Como devemos responder? Escrevo aqui enquanto “traidor de categoria B” (na qual Breivik inclui “políticos multiculturalistas, parlamentares europeus, escritores, conferencistas” e outros a punir com execução e expropriação) e posso apenas dizer: não com prisões secretas, não com tortura, não com “rendições extraordinárias”, não com mais paranóia, não com discurso securitário, não com violação de privacidade a cidadãos não-suspeitos, não com interferências à liberdade de expressão, não com leis feitas à medida, não com estados de exceção, não com invasões de países, não com mentiras para as justificar, não com guerras de civilizações ou do que quer que seja. Não queremos nada disso, e não precisamos de nada disso.
A nossa sociedade necessita de um mandamento para o século: não odeies. Pensem nele. É simples. É para todos. É difícil. Não odeies.
Não me atreveria a propor amar o próximo, amar o teu irmão de outra religião — seria provavelmente considerado multicultural demais, relativista demais, efeminado demais, politicamente correcto demais — e essas são,ao que parece, as grandes vergonhas da nossa época.
Então fica assim — como mínimo denominador comum, ao menos, poderemos acertar nisso? — não odeies. Não odeies o outro. Não odeies o seu erro se queres amar a tua verdade. Não odeies a sua verdade se queres amar o teu erro. Não odeies sequer o ódio. O ódio quer ser odiado. O ódio deseja fervorosamente mais ódio. Se dissermos aos outros para não odiarem, pode ser que este século corra bem. É simples. Não odeies nada. Eu disse que era difícil…




Nova Aliança, 9 / Setembro / 2011

A Felicidade

19 de Agosto - Quando, certa vez, perguntaram ao escritor Gonzalo Torrente Ballester o que pensava de determinado assunto, ele encarou o seu entrevistador e atirou: “E o que tem o senhor a ver com isso?”
Podemos falar sobre a Felicidade? Uns dirão: Felicidade, haverá tema mais infeliz? Dou-vos um único conselho: não vale a pena seguir conselhos. Os livros de auto-ajuda que estão por aí na moda são livros de anti-ajuda. O que eles fazem é transformar a felicidade em direito e, coisa pior, em dever. Conheço casos: gente que começou infeliz lendo um desses manuais e, no final da maratona, estava mais infeliz ainda.
Se isso acontece para os indivíduos, o cenário muda de figura para as nações. Infelizmente, para pior… Falar de um "país feliz" é tão absurdo como falar de um "gambozino". Os países não são pessoas. Mas os políticos tentam.
Leio regularmente que, por esse mundo fora, filósofos, psicólogos e economistas estudam medidas públicas destinadas a elevar a felicidade da população. Alguns especialistas, para medir a riqueza de um país, falam mesmo em "Felicidade Interna Bruta" como mais importante que "Produto Interno Bruto".
O "The New York Times" conta até que, nos Estados Unidos, o Censo de Boston começou a perguntar aos habitantes quão felizes eles se sentiam. Estão a ver: a ideia do poder político é reunir respostas, fazer gráficos rigorosos sobre os humores da população - e depois aplicar medidas para tornar o pessoal mais alegre. Sem ser através de químicos no ar ou na água.
É bom deixar já o aviso: nada disso funciona. E não funciona porque a felicidade não existe - no coletivo. Existem felicidades particulares, individuais, muitas vezes intransmissíveis, que não podem ser reduzidas a um denominador comum. Eu sou feliz quando toco harmónica. O meu vizinho é infeliz quando me ouve a tocar harmónica. Definitivamente, caso encerrado.
Afinal de contas, as pessoas não são números. São pessoas: distintas, irrepetíveis. Muitas vezes insondáveis e insolúveis. E aquilo que as torna felizes, ou infelizes, varia de caso para caso e, mais ainda, de momento para momento. De nada vale eu responder ao Censo que me sinto feliz hoje quando, ainda ontem, eu estava infeliz da vida.
Mas a felicidade não é apenas um conceito deslocado para pensarmos politicamente; ele pode ser sobretudo perigoso. A ideia 'utilitarista' de que o governo deve perseguir sempre 'a maior felicidade para o maior número', apesar do seu agradável apelo democrático, pode legitimar situações intrinsecamente desumanas ou imorais.
Se, por hipótese remota, uma comunidade se sente feliz perseguindo judeus, ou negros, ou mulheres, ou homossexuais, ou anões, que podem os "utilitaristas" responder a esse conjunto de preferências coletivas? Acreditar que a vida moral é uma mera questão quantitativa abrirá sempre portas para horrores mil.
O Estado quer "promover" a felicidade? Muito simples: basta que se retire das vidas individuais sem exercer sobre elas qualquer poder paternal, autoritário, totalitário.
Quando um Estado pergunta "quão feliz você se sente?", só é possível responder a isso com uma nova pergunta: "E o que você tem a ver com o assunto?"


Nova Aliança, 3 / Setembro / 2011

A 'morte' no serviço público de televisão e o 'eterno' detetive Columbo

1 de Julho – Num dia em que a situação grega está na ordem do dia e o programa do governo é apresentado na Assembleia da República, um dos telejornais abre com imagens do local onde os admiradores de Angélico Vieira estão concentrados.
Tal facto diz muito da ideia que alguns têm da famosa expressão ‘serviço público’. Para o endeusamento que se faz da personagem, não interessa nada que o carro circulasse na via pública sem seguro, ou que a maioria dos ocupantes não tivesse colocado o cinto de segurança.
Também parece não interessar a ninguém saber a que velocidade ia a viatura ou se o condutor apresentava excesso de álcool ou drogas no sangue.
Ninguém falou disso. A comunicação social em peso preferiu a exploração do efeito emocional e ficou por aí.
Sensivelmente na mesma altura morreu o empresário Salvador Caetano. É verdade que o senhor tinha 85 anos ( uma eternidade ) e estava doente ( uma normalidade ), mas a histeria mediática à volta do desaparecimento do jovem artista Angélico Vieira, por contraste com a discrição da notícia da morte do empresário nos órgãos de informação dá-nos um excelente retrato da ordem de valores da sociedade actual.
Por aqui se vê que um jovem cantor e actor - que há meia dúzia de anos era um total desconhecido - é muito mais importante do que um homem que subiu na vida a pulso, construiu um império industrial com a importação de automóveis do Japão, contribuiu para a produção da riqueza nacional e deu emprego a milhares de pessoas. Numa altura, sublinhe-se, em que não havia Internet, fax, telemóveis e em que as chamadas internacionais era principescamente paga.
Por aqui se vê que, para muita gente, é mais importante uma novela de duvidosa qualidade, com adolescentes, do que construir fábricas, criar empregos no país e dar comida a inúmeras famílias.
Apesar de tudo entendo muito bem a reacção dos adolescentes neste caso. A culpa desta inversão de valores nem sequer é deles. É da geração anterior, dos pais, que os educaram assim. Para a diversão e não para o trabalho.

3 de Julho - Há mais de trinta anos, quando a televisão e a leitura preenchiam grande parte dos tempos livres, muitas personagens entravam dentro de casa e ‘exigiam’ um espaço. Peter Falk ( 1927-2011 ) foi um deles. O ‘eterno’ detective Columbo fazia parte da minha adolescência televisiva e ajudou a passar muitos serões na época ( foram 70 episódios ).
O seu modelo de investigação era desarmante, a voz nasalada era um convite ao riso, os modos eram os de um desastrado e desmazelado – havia quem usasse gabardines ‘à Columbo’.
Também era verdade que, enquanto assistíamos aos episódios, na TV, desconhecíamos a ‘teoria da ciência’ do seu método de investigação, e que o aproximaria de um Sherlock Holmes californiano. Peter Falk nunca conseguiu deixar de ser Peter Falk e de se confundir com o talento triste e solitário de Columbo. ‘Só mais uma coisa’, costumava ele dizer no fim para finalmente enredar o culpado. E fazia-o. Columbo ou Peter Falk? Morreram os dois.

Nova Aliança, 7 / Julho / 2011