20.2.15

Figo e Mrs. Geraldine McEwan

2 de fevereiro – Não há nada a fazer. Nós somos mesmo assim. Só o nosso parolismo nacional em matérias de futebol pode ter levado alguns governantes a declarar o apoio a Luís Figo na sua candidatura à presidência da FIFA. Luís Marques Guedes afirmou publicamente que seria “uma honra para o nosso país poder ter Luís Figo à frente da presidência da FIFA”, que a “posição do Governo sobre essa candidatura é óbvia” e que Figo seria “sempre apoiado, de acordo com os seus meios, pelo Governo de Portugal”. Com o tempo deveríamos ir aprendendo algumas coisas e eu espero muito sinceramente que não haja um cêntimo de dinheiro dos contribuintes envolvido na promoção desta candidatura – e, se houver, que isso seja denunciado. Ter Luís Figo a concorrer à presidência da FIFA não é honra nenhuma para Portugal, e a posição do Governo nesta matéria, ao contrário do que diz Marques Guedes, é tudo menos óbvia. Nós não podemos continuar a viver num país onde as pessoas são apanhadas em manobras de ética altamente duvidosa e fingimos que nada aconteceu, só porque há um senhor que em tempos fez fintas incríveis na ala direita da selecção nacional. Luís Figo foi um futebolista admirável, sem dúvida alguma, mas o talento que ele tinha para os pontapés na bola esteve longe de ser acompanhado por uma postura fora do campo acima de quaisquer suspeitas. Os problemas começaram logo no início da carreira, ao assinar contratos com o Benfica ( onde nunca jogou ) e, em simultâneo, com o Parma e com a Juventus, punidos com a proibição de se transferir para Itália durante dois anos ( foi assim que Figo acabou no Barcelona ), e continuaram já no fim da carreira, no seu muito mal explicado envolvimento no caso Taguspark. Por o Ministério Público ter concluído que ele desconhecia que a empresa com que em Agosto de 2009 celebrou contrato era detida por capitais públicos, Figo nunca chegou a ir a tribunal, mas as explicações que deu para a coincidência temporal entre a assinatura do acordo milionário com o Taguspark, a entrevista surreal ao Diário Económico onde louvava “a energia de José Sócrates” (e que terá sido enviada pelo assessor do jogador a Rui Pedro Soares, na véspera da sua publicação, a 7 de Agosto de 2009), e ainda o pequeno-almoço de apoio dois dias antes das eleições legislativas de Setembro de 2009 nunca foram particularmente convincentes. Luís Figo vendeu os seus direitos de imagem ao Taguspark por 750 mil euros, em troca de uns vídeos para a promoção internacional do parque tecnológico de Oeiras, e logo foi acometido por um súbito amor a Sócrates. Falando como testemunha no julgamento do caso, o antigo jogador afirmou não ter de se pronunciar acerca de “coincidências” e que apenas se limitou, enquanto “cidadão”, a aceder a uma proposta da campanha do antigo primeiro-ministro. Campanha essa que começou por o tentar convencer a aparecer a “correr ao lado” de Sócrates, tendo Figo optado por um mais “discreto” pequeno-almoço – que de “discreto”, como todos sabemos, não teve nada, a começar pelo preço: 150 euros. Perante este currículo, compreender-se-á com certeza não ser Luís Figo a pessoa mais indicada para andar a criticar, com um ar muito indignado, os casos duvidosos em que o senhor Blatter e o organismo a que ele preside estão envolvidos. No vídeo de apresentação de candidatura, o antigo jogador português afirma: “Olho para a reputação da FIFA e não gosto do que vejo. O futebol merece melhor.” Substitua-se FIFA por Figo e a frase continua verdadeira. O futebol merece mesmo muito melhor. 5 de fevereiro – O tempo não volta atrás e Mrs. Geraldine McEwan morreu aos 82 anos. Todavia, não foi com esse nome que a registaram às portas do Além, na sexta-feira passada – e sim como Jane Marple, mais conhecida por Miss Marple, uma velhinha solteirona de St. Mary Mead, simpática aldeia do Hampshire britânico. Embora tivesse representado Shakespeare ao lado de Lawrence Olivier (ou Kenneth Branagh), Geraldine foi, sobretudo, o rosto da personagem de Agatha Christie nas derradeiras séries de TV (2004 a 2009) – mais do que as anteriores Margaret Rutherford ou Joan Hickson. Porquê? Pelo toque de malícia que emprestou a Miss Marple, tornando-a mais credível e humana. Ela explicou-o numa entrevista, já viúva e retirada dos palcos: "Pareço uma senhora inglesa, mas gosto muito de lingerie, ligas e perucas...". Exatamente como Miss Marple merecia. Nova Aliança 19 / fevereiro / 2015

A Grécia e Borgen

27 de janeiro – O Charlie está esquecido. Passou à história. Uma reportagem de José Rodrigues dos Santos sobre as fraudes na Grécia tornou-se no pretexto para mais uma vez alguns manifestarem a sua visão da liberdade de informação: liberdade é mostrar o que nós achamos que deve ser mostrado. As referências ao programa de férias pagas criado pelo governo grego, os subsídios por invalidez – pesquisem no Google ilha dos cegos, Zakynthos – a não declaração dos rendimentos e bens, tornaram-se ofensivos porque não cabem na narrativa oficial. 29 de janeiro – Sigo sempre com interesse as séries nórdicas. Apaixonei-me por The Killing, uma das primeiras séries dinamarquesas da minha vida, e estou sempre atento ao que nos chega dessa proveniência, sobretudo se vier com o selo de garantia da produtora DR, que assina estes dois produtos de excelência. The Killing transportava-nos pelos trilhos obscuros do crime, sem concessões ao que por deformação da excessiva exposição às séries americanas do género estabelecemos como norma: gente gira, muita acção, diálogos curtos e assertivos, heróis para nos seduzir e fidelizar. Em vez de fogo de artifício oferecia-nos uma aproximação à realidade que nos colava à cadeira. Neste momento passa aquela que considero, depois de Yes, Minister mas agora num registo sério, a melhor série de televisão alguma vez feita sobre política: Borgen, de segunda a sexta-feira na RTP2. Borgen, que significa castelo em dinamarquês, corresponde à designação comum do palácio de Christiansborg, sede do parlamento e do governo dinamarquês e lugar de trabalho do Primeiro-Ministro. A série relata a ascensão ao cargo de Primeira-Ministra da Dinamarca de uma jovem mulher, Birgitte Nyborg, que consegue montar uma coligação num parlamento dividido, oferecendo o apoio do seu partido na condição de ser designada Primeira-Ministra. Neste âmbito, a série dá-nos um retrato extremamente realista dos meandros de um governo de coligação e das rivalidades entre os ministros, abordando mesmo os problemas pessoais e familiares que ocorrem a uma mulher que ascende a um cargo tão importante. E nem sequer falta a relação com a imprensa, mostrando como hoje a política passa muito mais pela influência sobre os media do que pelos debates parlamentares. Quase nunca vemos uma sessão parlamentar, mas passamos todo o tempo a ver o spin doctor Kasper Juul a manobrar os jornalistas como peças de xadrez. O que achei curioso na série é a semelhança com a política portuguesa, mesmo sendo os países tão diferentes. Mas a série demonstra igualmente a humanidade e a fragilidade dos políticos que não há ‘spin doctor’ que consiga esconder. Um dos episódios é sobre a nomeação do comissário dinamarquês, obrigando a Primeira-Ministra a conciliar a esse propósito simultaneamente conflitos no governo e no partido com as pressões do presidente da comissão, que condiciona a atribuição de uma pasta importante à nomeação de alguém com peso político efectivo. Mas quando a Primeira-Ministra consegue um nome que a todos satisfaz, o nomeado sofre um AVC quando lhe dizem que iria ser sujeito a um interrogatório de seis horas no parlamento europeu. Não há desígnio político que consiga superar a fragilidade humana dos protagonistas. Através de Borgen, as que melhor se observam passam ao lado da trama política. Um contraste que salta à vista é o estilo de vida da protagonista, mãe de dois filhos menores e que no início da série ainda vemos casada. Apesar de ser primeira-ministra e mulher de um professor universitário, a sua vida familiar decorre dentro de padrões que entre nós só são expectáveis numa vulgar família de classe média. O casal não tem empregada e divide entre si as tarefas domésticas. Não há mordomias, nem luxos, é tudo muito frugal. Nova Aliança 5 / fevereiro / 2015

30.1.15

"Os Gatos não têm vertigens"

16 de dezembro –Se puderem não deixem de ir ao cinema ver o último filme de António Pedro Vasconcelos “Os Gatos Não Têm Vertigens”. O que mais prende no filme é a expressão explícita e dolorosamente real da crueldade que a sociedade actual dirige à velhice O filme - reconheça-se - fala de assuntos e sentimentos intelectualmente pouco elaborados. Exibe a banal, mas revoltante, miséria de uma sociedade marginal e da juventude urbana que ela gerou: uma juventude sem passado, sem presente e, provavelmente, sem futuro. Mostra, por outro lado, a atitude confiante de uma mulher mais velha, ainda militante de ideias antigas, mas hoje acintosamente incómodas: uma mulher de uma geração capaz de actos de uma generosidade transformadora e não apenas conformada e conivente com a injustiça reinante. Não falo já da situação económica da velhice mais desprotegida, que nele apenas aparece retratada em personagens laterais. Falo da velhice enquanto circunstância de vida de muita gente de todas as condições sociais. O que o filme denuncia é a atomização e a desumanidade da vida das pessoas engendrada por uma sociedade frenética, desequilibrada, doente e doentia, e muitas vezes amoral, que dificulta a comunicação dos mais velhos com os mais novos, dos filhos com os pais, enfim, das pessoas, umas com a s outras. Transmite-nos, de choque, uma certa linguagem juvenil, que rebenta direta na nossa cara - e não só por causa do magnífico som do filme - mas que só espanta quem, porventura, não usa transportes públicos. Conta-nos, na verdade, uma história com princípio, meio e fim que, em vez de nos deixar desesperados e sem rumo, contém em si mesma o fermento da esperança na humanidade. A "coisificação" das pessoas, a tentativa de as tornar descartáveis - desprovidas de alma e sentimentos - não é, sabemos, um fenómeno inteiramente recente ou original. Em todo o caso, apesar de todas as vicissitudes, a humanidade tinha vindo, nos últimos séculos, a conseguir amaciar um pouco as esquinas mais afiadas da sua maneira de viver junta, da sua convivialidade. Ora, o que hoje nos querem fazer crer é, precisamente, que esse caminho de humanização das relações sociais deve ser interrompido - e pode mesmo ter de regredir - em nome de um almejado, mas sempre distante, progresso económico. Só que, por fim, ninguém tem a amabilidade de nos dizer quem beneficiará com ele: serão os velhos, os novos, a maioria, ou apenas uma cada vez mais pequena minoria? O que constatamos é que o tal progresso económico não tende já a tornar menos agreste a vida dos muitos - designadamente a dos mais velhos - e aí reside o paradoxo atroz desse discurso. E, todavia, têm sido esses velhos que, com as suas pequenas reformas, com o pouco que lhes resta da sua estabilidade material e emocional, têm conseguido acudir aos sobressaltos diários dos mais novos, garantindo uma réstia de humanidade à vida social. Só que esses velhos têm alma, têm vida, têm aspirações e esperanças próprias e não podem ser tratados apenas como caixa de previdência dos mais novos, e só enquanto como tal puderem funcionar. A humanização da vida pode, se todos quisermos, continuar a ser um sonho e também uma realidade que construímos diariamente. Não lhe criem falsos obstáculos. Os gatos podem não ter vertigens: os homens sim, mas com coragem, podem vencê-las. Este grande filme ajuda-nos a isso. Nova Aliança, 24 / dezembro / 2014

Os culpados

Passos Coelho é suspeito de ter metido umas facturas de almoços numa ONG há vinte anos. Sócrates é acusado ser corrupto enquanto primeiro-ministro. Para os mesmos comentadores o caso tecnoforma revela “falta de carácter de Passos Coelho”. O caso Sócrates revela “um problema de regime do país”. Os mesmos comentadores. Não há conversa sobre Sócrates que não acabe com alguém a utilizar a expressão “é bem-feito”. Na taberna ou na consultora por igual. É bem-feito por tudo o que fez ao país. É bem-feito porque os políticos deviam ser todos presos. É bem-feito porque o gajo merece. O bem-feito é vingança. Não é justiça. Querem prender os verdadeiros responsáveis pelo estado miserável a que o país chegou? Prendam os dois milhões de portugueses que votaram em Sócrates. Prendam os outros oito milhões que abdicaram do seu juízo crítico e preferiram viver o conto de fadas. Prendam todos os dez milhões de portugueses que continuam a queixar-se que “isto está tudo mal” mas depois não se levantam do sofá para fazer alguma coisa. E mais os outros que se queixam que é preciso “fazer alguma coisa” mas depois não deixam que se faça nada. Votar é uma responsabilidade. Só depois é um direito. Sócrates até pode ser culpado de tudo. Mas a responsabilidade não é dele. É nossa. É que neste país extraordinário continuamos a preferir ser mandados que a fazer qualquer coisa que nos possa responsabilizar. Adoramos ser mandados. Do senhor que fala alto dizemos que é um líder carismático. Do senhor que faz sem pensar dizemos que é um lutador. Do senhor que não tem medo de tomar decisões (mesmo as más) dizemos que é um predestinado. Preferimos ser enganados a que alguém nos chateie com a verdade. Preferimos delegar a responsabilidade das nossas vidinhas ao estado e aos outros. Somos assim. Uns palermas. Centenários palermas. E quando a coisa corre mal explicamos no café que é bem-feito. É culpado. Culpado. Na melhor lógica do "rouba mas faz" Sócrates é culpado não do roubo mas de ter roubado sem fazer. É bem-feito? Bem-feito para quem? Saber que um homem está preso sem ter sido julgado ajuda em quê? Há uns anos prenderam preventivamente um primo meu que matou o pai enquanto ouvia uma canção dos The Doors. Isto alegadamente, já que ninguém conseguiu encontrar o álbum. Bem, prenderam o meu primo porque havia risco de fuga, aliás confirmado por uma das moças que trabalhava para ele no bar selecto que tinha para os lados de Quintanilha; risco de fuga associado a uma ideia fixa que ele tinha desde pequenino, que eu lembro-me bem de ele o dizer já quando incendiávamos cães vadios motivados pelo excesso de tempo livre quando a escola era só de manhã e o professor não nos escolhia para explicações individualizadas ao colo durante a tarde, que consistia em dormir com a mãe sem o pai estar ali a incomodar, visto que era um senhor muito peludo. Foi preso preventivamente e, inadvertidamente, acabou por ser acusado de matar um guarda prisional, que apesar da mania de dizer “graças a Deus” por tudo e por nada, até era boa pessoa mas desastrada, já que tropeçou no pé do meu primo e caiu na bigorna guarnecida com picos em chamas esquecida das filmagens de um filme snuff que o meu primo tinha rodado no pequeno-almoço comunal anterior. O meu primo nem nunca foi pessoa particularmente violenta, mesmo nos combates organizados entre claques de futebol, uma actividade recreativa como qualquer outra das patrocinadas pela junta de freguesia e que acabou por lhe valer a alcunha de Triturador; como dizia, não é violento, é só feitio, já que é um tipo assim para o aguerrido, combativo, mas um doce de pessoa com um sentido de humor muito corrosivo, como aquela suástica tatuada na testa demonstra a quem conhece o que lhe vai no coração. Nós bem tentamos, apelamos, escrevemos muitos artigos e até conseguimos demonstrar aos vizinhos que havia uma agenda escondida na justiça e que esta consistia em usar o caso mediático do meu primo para ocultar a bandalheira que havia no quiosque da Dona Fernanda correspondendo ao tráfico de cromos contrafeitos do Euro2004. Essa vergonha e aquele caso do Arménio que continuava presidente do rancho folclórico quando toda a gente sabia que o Arménio tinha comprado cromos no quiosque para a caderneta da filha. Isso não queriam eles que se andasse a divulgar, por isso incriminaram o meu primo, só porque ele bebeu o sangue do pai, uma prática comum em vampirismo, que, como se sabe, não é crime. E a necrofilia também não é crime, o guarda já estava morto e estava, que diferença fazia esperar mais um bocadinho para embalsamar o corpo? O meu primo foi até considerado o Nelson Mandela de Moimenta, na luta pela liberdade e justiça num país dominado pelos lóbis dos poderosos como o Arménio, que por ter três vacas já se acha mais importante do que as pessoas que têm que ganhar a vida a alugar gajas num bar. É por isso que eu não acredito na justiça e acho que o regime está podre. Nova Aliança, 11 / dezembro / 2014

A prisão

25 de novembro - “Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade.” Sócrates, o verdadeiro. Acompanhar a actualidade tem as suas vicissitudes. “Não se comenta processos judiciais em curso.” “Não se deve incorrer em juízos precipitados.” “É preciso aguardar que a Justiça siga o seu rumo. “ “Há que levar a sério a separação de poderes.” “ Esta situação é de uma gravidade tremenda.” “ Nenhum indivíduo está acima da lei.” “Todos somos inocentes até prova em contrário.” “O essencial é apurar a verdade.” “Esperemos que o caso esteja muito bem fundamentado.” “Talvez a detenção pública vise humilhar o detido.” “É possível que o DCIAP exagere nas recentes investigações.” “No fim de contas, é o Estado de direito que será julgado.” Etc. Já chega de banalidades? Disse-o aqui muitas vezes e as reacções foram diversas. Uns diziam: “Continue, não tenha medo, ele é ainda pior do que isso.” Outros pediam: “Não siga por esse caminho, o local não é o mais apropriado”. Durante muitos anos muita gente não quis ver, não quis ouvir, não quis ler, recusou tomar conhecimento. Sócrates estava acima disso. Sócrates não tolerava dúvidas. As coisas mudaram. Com algumas dúvidas e confusões. Por exemplo: receber luvas, favorecer este ou aquele, traficar influências, realizar negócios ruinosos para o contribuinte, isso é o regime. Mas ser investigado, detido ou condenado, isso é a crise do regime. Ora, se compreendermos bem tal raciocínio a ideia será: a justiça põe em causa o regime. Logo: salvem o regime: acabem com a justiça. Se essa mesma justiça conseguir provar todas as acusações de que Sócrates é alvo, então há alguns assuntos que devem ser esclarecidos. A saber: como é que a Sovenco, a Progitap, a Resin, os Magalhães, a Cova da Beira, o Siresp, a licenciatura, as casas da Covilhã, o Freeport, o Taguspark, os trinta mil exemplares comprados da sua tese, para não falar já da vida faustosa em Paris num apartamento de três milhões de euros, nunca mereceram alegadamente um total empenho dos poderes justiciários da altura? Que intervenção tiveram os Pintos Monteiros, os Noronhas do Nascimento e as Cândidas Almeidas no rápido apagamento das escutas ao cavalheiro? Convém não esquecer, nesta sociedade líquida de que fala Zygmunt Bauman, os pruridos éticos sempre tão rápidos a surgir quando se fala da Tecnoforma, de Duarte Lima, ou de qualquer outro caso em que o protagonista é de uma cor política da nossa. Agora que surgem no novelo das notícias o Grupo Lena e o alegado engenheiro ( e é bom não esquecer as suas ligações de vários ramos à cidade ), as pessoas embatucam com uma lágrima no canto do olho. Cegos na sua crença, não querem saber se Sócrates é ou não culpado. Mais preocupados com o como do que com o porquê, é a forma como o prenderam. E repetem várias vezes: “às 22h30 e até houve tempo para uma câmara captar uma imagem duvidosa de um veículo qualquer numa rua perto da uma da manhã.” É para eles que dirijo as minhas últimas palavras. Depois do que se passou nos últimos dias, do que já sabemos sobre os contornos do processo e das acusações, do que imaginamos mas ainda não sabemos, a pergunta que muitos têm de intimamente fazer é “como foi possível?”, “como é que acreditei?” Sócrates não é ainda culpado de nenhum crime de corrupção ou branqueamento de capitais. Mas mesmo que o venha a ser convém a todos que não seja apagado do seu legado aquilo que mais prejudicou o país: o conjunto de decisões políticas legais que tomou nos seus 6 anos de governo. Nova Aliança, 28 / novembro / 2014

A Milú e as gravações para uso privado

10 de outubro - Nos dias que se seguiram à sua condenação, ouvi Maria de Lurdes Rodrigues, com aquele ar indignado que certos políticos julgam passar por uma real legitimação, dizer que a decisão do tribunal que a condenou significa que, no futuro, todos os ministros e secretários de Estado podem vir a ser obrigados a justificar cada contratação que façam por ajuste directo. Sinceramente, fiquei pasmado: foi preciso consentirmos, coletivamente, na degradação da coisa pública e das funções estatais para que um político, ou alguém que teve responsabilidades no aparelho de Estado, encontrar motivos de escândalo no facto de poder ser chamado a prestar contas relativamente à forma como gere os dinheiros e os recursos públicos. Só mesmo políticos que se habituaram a tratar o Estado como uma coutada privada podem pôr um ar de donzelas ofendidas ao serem confrontados com semelhante exigência. É curioso que Maria de Lurdes Rodrigues se queixe do esforço financeiro que faz com o processo que já levou à sua condenação. Logo uma senhora que participou no governo da criatura socrática, conhecida por processar a eito jornalistas e comentadores que tinham a ousadia de não admirar a radiosa liderança socrática e se incomodarem pelos persistentes casos que não costumam atormentar pessoas honestas e rodeavam o então pm. Queixas – por vezes queixas civis, nem sequer criminais – que não levavam a nenhuma condenação ou, sequer, a acusação. Mas que obrigavam os ditos processados a terem gastos com advogados, além de perderem tempo de trabalho. Com Sócrates, era assim; criticas-me e levas com honorários de advogados para pagar. Maria de Lurdes Rodrigues não teve qualquer problema de consciência por participar num governo que desta forma sem vergonha pressionava jornalistas e comentadores a calarem as críticas a Sócrates, pois não? Desejo por isso que continue a ter um grande esforço financeiro com todo este processo. 14 de outubro - Mesmo depois de muita discussão, continua a ser apresentado por alguns o “argumento económico” para a instituição da taxa sobre os equipamentos que potencialmente possam servir para gravar para uso privado o que foi adquirido legalmente (e portanto pagou os respectivos direitos de autor). Tomemos o argumento económico a sério – o que quer dizer exactamente? Pensando em termos do que os economistas chamam “eficiência estática”, como o custo de uma reprodução adicional é zero, em termos eficientes para a sociedade, é eficiente que o “preço” venha a refletir esse custo adicional e portanto devia ser zero. Ok, não é pelos custos de reprodução da cópia privada que deve haver um preço adicional. Vamos então ao argumento de “eficiência dinâmica” – neste argumento, é necessário atribuir maior retribuição aos artistas para que estes mantenham a intenção criativa, dando-lhes o que em economia se designa por “apropriação dos ganhos da sua actividade”. Ou, numa versão mitigada, dar mais ganhos para que criem mais, o que trará benefícios para todos. Ora, aqui surge um problema básico – como há grande heterogeneidade nos artistas (e cada vez mais, para cada um de grande sucesso haverá muitos de pouco sucesso), a criação de uma taxa sobre o “processo” (o meio de guardar a cópia” e não sobre o “resultado” (o valor do que é criado), significa que uma distribuição acrítica dos fundos recolhidos recompensa todos por igual – o que será manifestamente ineficiente do ponto de vista social. Mas como esta taxa para a cópia privada pretende dar o incentivo para a criação, não é claro porque a existir não deva estar incluída no preço da “obra” vendida legalmente (relembre-se, a pirataria continua ilegal). Neste caso, quem mais sucesso tiver também tem mais “incentivo à criação”. De outro modo, resta apenas a situação de “procura de rendas” e por parte de quem vai gerir o sistema, como bem aponta André Azevedo Alves. Ainda em termos económicos, há a questão crucial de saber qual é o modelo de rentabilidade económica da criação artística. Por exemplo, a principal fonte de rendimento de músicos é a venda de CDs ou a realização de espectáculos? Se for esta última, a disseminação gratuita das suas obras, com quanto mais cópias melhor, poderá ser mais interessante como forma de depois vir a realizar espectáculos. Se estivermos a falar de filmes poderá ser diferente, mas o aspecto central é que o próprio modelo de negócio e de retribuição da actividade criativa poderá estar a mudar. Admitamos ainda que se quer esta redistribuição de rendimento ad-hoc e arbitrária. Então devemos discutir qual é a melhor forma de a realizar. E se estamos a falar de pagamentos que são realizados devido ao poder coercivo do Estado, porque não ser este a tratar dessa redistribuição? Assim, esta verba deverá ir para a Secretaria de Estado da Cultura que depois a atribuirá diretamente aos artistas registados para o efeito (registo que pode ser feito numa plataforma informática simples). Talvez mesmo ter um subdirector geral com essa competência atribuída. Ou caso esta missão seja atribuída a uma entidade externa, então os salários e as despesas praticadas nessa instituição deverão seguir as mesmas regras da administração pública, com equiparação do presidente da instituição a sub-director geral para efeitos de vencimento, e a partir daí estabelecer a cascata de remunerações. Obviamente acompanhando as regras da função pública neste campo. As receitas e despesas deverão ser auditadas regularmente por entidades públicas, tendo o Tribunal de Contas também possibilidade de intervenção. Ou podemos ainda tentar uma solução de “mercado” – colocar a concurso a gestão deste imposto (mais vale usar o nome correcto), em que as entidades externas interessadas apresentam as suas propostas de custo para essa gestão. (Depois deste impulso criativo, vou-me registar algures, para ter também acesso a qualquer coisita da lei da cópia privada, pois a partir de agora conhecidos e desconhecidos podem copiar este texto para os seus computadores e telemóveis, o que irá limitar a minha criatividade futura). Nova Aliança, 30 / outubro / 2014

As conversas à volta da fogueira

8 de outubro - Num mundo cada vez mail digital, um estudo publicado recentemente na revista ‘Proceedings of the National Academy of Sciences’ (PNAS) revela que as conversas à fogueira terão estimulado a evolução das nossas capacidades cognitivas, sociais e culturais. Sabemos que o início da noite é a altura ideal para contar histórias ou para ouvir as dos outros. Os nossos filhos reclamam-nas antes de apagar a luz e nós próprios, se um amigo nos conta uma história à luz da lareira ou das velas, esquecemos as nossas preocupações do dia, descontraímos e sonhamos acordados. A noite em redor de uma fogueira parece ser um momento universal para formar laços, difundir informação social, para se entreter e partilhar emoções. Os conflitos da vida quotidiana apaziguam-se. No passado terá sido sempre assim? Há centenas de milhares de anos, quando os nossos antepassados conseguiram controlar o fogo, terão eles sentido também essa atracção pelas conversas nocturnas à luz de uma fogueira? Não sabemos de que terão falado, que histórias terão desencantado, que mitos e lendas terão partilhado. Mas é possível ter-se uma ideia do conteúdo dessas conversas com base em dados sobre populações actuais. E a partir daí, torna-se razoável especular que o controlo do fogo não terá apenas permitido aos primeiros humanos cozinhar os seus alimentos e proteger-se dos predadores. Também terá tido um papel essencial no desenvolvimento das suas capacidades cognitivas, culturais e sociais. É precisamente essa a conclusão de um estudo publicado nesta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). 40 anos depois de ter começado a estudar os costumes e tradições dos Kung - um grupo de cerca de 4000 bosquímanos que vivem em diversas povoações no deserto do Calaári, entre o Nordeste da Namíbia e o Noroeste do Botswana, no Sul de África - Polly Wiessner, antropóloga da Universidade do Utah (EUA), comparou em grande pormenor as características das conversas diurnas e nocturnas de várias destas comunidades, fazendo assim, escreve na PNAS, uma "etnografia da noite", à procura daquilo que terá “ateado a fogueira” da cultura e da sociedade na noite dos tempos. “Não é possível descobrir o passado através dos bosquímanos”, avisa porém a cientista em comunicado da sua universidade. “Mas estas pessoas vivem da caça e da recolecção, que foi também a forma de vida dos nossos antepassados durante 99% da sua evolução.” Por isso, as conversas dos bosquímanos à noite “ajudam-nos a responder à questão de como o espaço nocturno, iluminado pelas fogueiras, contribui para a vida humana”. O certo é que, a partir do momento em que o uso do fogo se generalizou, há entre 200 mil e 100 mil anos, isso alterou os ritmos circadianos dos seres humanos. A luz permitiu ficar acordado e estendeu o dia, “criando um tempo em que as actividades sociais não interferiam com a vida produtiva e a subsistência”, escreve ainda a cientista. O seu estudo baseia-se em dois tipos de dados. Por um lado, os apontamentos que Wiessner fizera, em 1974, relativos a 174 conversas diurnas e nocturnas em dois acampamentos Kung, com uma duração de 20 a 30 minutos cada e que envolviam entre cinco e 15 pessoas. Por outro, as gravações de conversas, transcritas para inglês, de 68 histórias contadas à luz da fogueira, que a autora presenciou ao longo de várias estadias entre 2011 e 2013 em aldeias Kung. Os temas das conversas diurnas e nocturnas revelaram-se, de facto, tão diferentes como o dia e a noite. De dia, 34% das conversas eram queixas, críticas e mexericos; 31% sobre questões económicas; 16% anedotas; e 6% histórias e outras coisas. Mas à noite, depois de cada família ter jantado ao pé da sua própria fogueira, as pessoas reuniam-se frequentemente em redor de uma fogueira maior – e nessas reuniões alargadas, as histórias passavam a ocupar 81% do tempo. “À noite, as pessoas descontraem, acalmam e procuram entretenimento”, explica ainda Wiessner. Contam-se histórias, mas também se fala de pessoas conhecidas mas ausentes, que não residem na mesma aldeia, bem como do mundo sobrenatural. Canta-se, dança-se e os curandeiros entram em transe para comunicar com os espíritos dos entes queridos que morreram e proteger os vivos que eles querem levar consigo. Segundo Wiessner, os primeiros humanos terão assim construído, na sua cabeça, comunidades virtuais de seres reais e imaginários, e isso terá ampliado a sua imaginação e a sua capacidade de perceber as emoções alheias – um traço exclusivamente humano. Wiessner também pergunta, mas sem dar respostas, em que medida é que a luz eléctrica nos estará a “roubar” esse momento ao permitir-nos trabalhar dia e noite. “Agora, o trabalho estende-se pela noite dentro, em casa, em frente a um computador.” O que acontecerá às relações sociais num mundo onde “apenas tenho 15 minutos para contar uma história de adormecer aos meus filhos”? Nova Aliança, 16 / outubro / 2014

O Proença

A justiça tem, de facto, aspectos curiosos. Proença de Carvalho concedeu uma entrevista ao Diário Económico onde comenta da seguinte forma o caso BES e a detenção de Ricardo Salgado, de quem é advogado: “Até agora o que tem havido são juízos preconceituosos, precipitados. Sabe que eu, em toda a minha vida, me bati contra autos-de-fé e contra julgamentos no pelourinho. Acho que é impróprio de democracia civilizada e de um Estado de direito esta violação dos princípios de presunção de inocência.” E acrescenta: “Vi aqui resquícios do que aconteceu no PREC em 1975.” Realmente é engraçado estarmos na presença de um advogado que levou vários jornalistas a tribunal por causa de uns artigos escritos sobre José Sócrates, em nome dos mesmos princípios da democracia civilizada que agora invoca. Salgado, Sócrates, a elite angolana – não se pode dizer que Proença facilite a sua própria vida na defesa dos melhores princípios democráticos. Mas empenho não lhe faltará, até porque, segundo o próprio esclarece, “nós não escolhemos os clientes, são os clientes que nos escolhem a nós”. (Ora bem…) E tendo Ricardo Salgado escolhido Proença de Carvalho, compreende-se que este utilize o espaço dos jornais para ensaiar a defesa do seu cliente, optando por uma estratégia que já tem barbas: garantir que não se sabe tudo, pedir paciência, afirmar que “é preciso ouvir as várias narrativas de todos os protagonistas” (reparem como adoptou rapidamente o linguajar socrático), e após muito aguardarmos, “com tempo e serenidade e depois de haver um verdadeiro contraditório”, aí sim, estamos autorizados – eu, você, os portugueses, o mundo – a emitir um juízo devidamente fundamentado sobre Ricardo Salgado. Até lá, bolinha baixa, que isto não é o PREC. (Que bom que ele nos avisa…) Deixando de lado o pobre PREC, que tem as costas largas, e o facto de hoje em dia uma nacionalização à moda de 75 até dar um certo jeito a Salgado, eu gostaria de discutir a premissa da presunção da inocência e a forma como ela costuma ser invocada pelos advogados dos donos disto tudo, com esta muito ínvia intenção: querer impor à sociedade e à política um princípio que é do Direito, de forma a que não se fale, não se discuta, não se acuse, não se aponte o dedo. O raciocínio é este: se Salgado é inocente até ser considerado culpado, então façam o favor de calar a boca, que o tempo dos pelourinhos e dos autos-de-fé já lá vai. Só que, graças a Deus e a todos os santos (menos aos Espíritos) e infelizmente para o senhor Proença, não é assim que as coisas funcionam: se nós só pudéssemos emitir juízos de valor após o Supremo Tribunal se pronunciar sobre a culpabilidade de Salgado, então isto não seria uma democracia. Se eu for hoje para o meio do Rossio dar tiros à multidão, continuo a ser inocente aos olhos da lei até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Significa isso que ninguém poderá dizer que sou um criminoso até 2018? Felizmente, Ricardo Salgado não matou gente, mas a catástrofe do BES é um flagrantíssimo delito, que todos temos o direito de avaliar, criticar e culpar. Buracos de milhares de milhões não se cavam sozinhos. Esta mania de nos irem ao bolso e ainda exigirem silêncio é deveras irritante. Da próxima vez que eu estiver na mesma sala que Proença de Carvalho vou procurar roubar-lhe a carteira, e quando ele gritar “agarra que é ladrão”, colocarei o braço à volta do seu ombro e direi em tom melífluo: “Ó sotôr, autos-de-fé e julgamentos no pelourinho ficam-lhe muito mal. Aguarde pelo contraditório, se faz favor.” P.S. O esqueleto deste texto é do cronista João Miguel Tavares. Eu apenas o ‘vesti’ à minha maneira. Nov Aliança, 2 / outubeo / 2014

As redes sociais e o Zé

3 de Setembro – Não é preciso estarmos muito atentos para verificar que quem vive numa grande cidade, por vezes, é como se vivesse numa aldeia. Dá-se sempre com as mesmas pessoas, há bairros onde nunca vai, partes da cidade que nem sequer conhece. Um estudo agora realizado com base nas comunicações telefónicas de pessoas residentes em grandes e pequenas cidades no Reino Unido e em Portugal mostra que essa impressão corresponde mais à realidade do que imaginamos. Os resultados foram publicados na revista Journal of the Royal Society Interface. Em vez de se perguntar às pessoas com quem é que tinham falado ao telefone e durante quanto tempo – um método sujeito a erros de avaliação e de memória por parte dos inquiridos, a equipa do português Luis Bettencourt, do Instituto Santa Fé nos Estados Unidos, juntamente com colegas do MIT, com engenheiros informáticos e com especialistas de empresas de telecomunicações europeias, foi directamente buscar os dados quantitativos – e exactos ao pormenor – das comunicações telefónicas. Mais precisamente, os cientistas tiveram acesso aos registos da maioria das chamadas terrestres realizadas no Reino Unido durante um período de um mês, em 2005 – bem como aos de milhões de chamadas de telemóvel realizadas em Portugal durante um período de 15 meses, entre 2006 e 2007. Uma vez retirados quaisquer elementos que pudessem permitir identificar os interlocutores, os cientistas encontraram-se perante uma autêntica mina de ouro de relações interpessoais, completas com data, duração, local da chamada, etc. Os cientistas reconstruíram, a partir dessa massa de dados, redes de interacções telefónicas para cada aglomeração britânica e portuguesa, onde cada pessoa era representada por um nó da rede e as suas comunicações telefónicas por ligações com outros nós. O número de chamadas telefónicas, bem como o número de interlocutores telefónicos, aumentava com o tamanho da localidade de residência. E até aumentava mais do que proporcionalmente. Por exemplo, se uma dada cidade tivesse o dobro dos habitantes de outra, o número de telefonemas e o número de interlocutores dos habitantes da cidade maior era mais do dobro dos respectivos números associados à cidade mais pequena. Porém, a equipa obteve agora um resultado relativamente surpreendente a outro nível. Acontece que, seja qual for o tamanho da cidade onde vivemos, os cálculos mostraram que a probabilidade de que os nossos amigos se conheçam entre si não se altera. Por outras palavras, as nossas redes sociais são todas semelhantes desse ponto de vista – o que, concluem, sugere que os seres humanos se organizam instintivamente em comunidades sociais compactas. E isso se verifica tanto na Lixa, aldeia do Norte de Portugal, dizem os autores – onde 6000 pessoas vivem numa área urbana de apenas três quilómetros quadrados – como na área metropolitana de Lisboa. O que obviamente não impede, enfatizam contudo, que quem vive na Lixa tenha menos margem de manobra para escolher o seu círculo social do que quem vive em Lisboa. “Este é um dos resultados curiosos deste novo estudo”, explica-nos Luís Bettencourt. “Nas grandes cidades, há em geral maiores oportunidades de interacção com mais indivíduos e indivíduos mais diversos. Nós verificámos isso para Portugal (e para o Reino Unido). No entanto, o que vemos também é que as pessoas que conhecemos têm uma alta probabilidade de se conhecerem entre elas – o que quer dizer que, independentemente do tamanho da cidade, criamos redes sociais coesas (como nas cidades pequenas ou nas aldeias). Numa grande cidade, no entanto, essa rede social é mais o produto da nossa escolha e nesse sentido tem um carácter diferente da de uma aldeia.” 10 de Setembro – Não sei se o nome José Sá Fernandes vos diz algum coisa. Não? É natural. Foi aquele senhor que achava que fazia falta e que travou a construção do túnel do Marquês com evidentes prejuízos para todos nós, financeiros e não só. Pois agora o indivíduo teve a ideia de eliminar uns brasões florais das ex-colónias que se encontram na Praça do Império em Lisboa. Parece que estão ultrapassados, diz ele. Mas brasões e tabuletas existem também para lembrar coisas que acabaram. Se vamos acabar com tudo que acabou, a Praça do Império vai na enxurrada, aliás como o seu autor, Cottinelli Telmo, que também tem praça. Outra: a Rua Cidade de Salazar, no Bairro das Colónias. Outra: a ponte chamada de 25 de abril mas construída antes. Outra: o Estádio Nacional no Jamor. Parece um buraco negro: já não há colónias, nem Salazar. Mas se acabamos com coisas que acabaram ou que dizem coisas com que não gostamos hoje, caímos em coisas engraçadas. O Beco da Ré vira Beco da Arguida. O Beco do Carrasco parece morar em Estado Islâmico. O Beco das Beatas pode ser contestado nas duas versões, contra o tabaco e o proselitismo religioso. O Jardim das Pichas Murchas (em São Vicente de Fora) faz contrapropaganda a conhecido produto farmacêutico. A Travessa do Fala-Só é inaceitável em tempos democráticos. Talvez seja esta a democracia ‘safernandesiana’. Nova Aliança, 19 / setembro / 2014

A estação parva

26 de agosto – Com o país em férias, vive-se a ‘silly season’, a tal estação parva em que nada acontece. Bom,,, quase nada. O que dizer da tragédia do cvasal polaco que caiu de uma arriba com cerca de oitenta metros? Os filhos assistiram a tudo e não o esquecerão até ao fim dos seus dias. O que dizer da recriação histórica que trouxe ‘catraias’, redes e pregões ao areal de Caxinas, um lugar de Vila do Conde que continua a albergar uma das maiore comunidades piscatórias do país? O que dizer dos dezasseis óscares europeus de turismo ganhos por Portugal? De Lisboa à Madeira, do Porto ao Algarve, eis tudo o que um turista precisa; que o destino confirme o que ele espera. O que dizer nestes dias de um pensamento escrito num dos ‘Diários’ de Miguel Torga: “A olhar as mentiras dos salões, esquecemos a verdade das celas”? O que dizer de mais uma releitura de ‘O Leopardo’ de Lampedusa? As mesmas interrogações, as mesmas contradições, a mesma necessidade de perceber a existência. Por isso, talvez se tenha celebrizado a frase do romance imortalizado no filme de que “é preciso que mude alguma coisa para que tudo fique na mesma”. O que dizer do reencontro de Randhatul Jannah, dado como morto em 2004, por ocasião de um dos maiores tsunamis registados no Oceano Índico, com Jamaliah e Septi Rangkuti, seus pais? Encontrada a quarenta quilómetros da sua aldeia, Randhatul foi salva por um pescador e alguém notou a sua semelhança com acriança desaparecida dez anos antes. O que dizer do pedido feito pelo vice-primeiro ministro da Turquia, Bullent Arinc, para que as mulheres turcas não se riam em público? O ponto é que, se ele acha tal coisa, o mínimo que se pede é que não diga coisas engraçadas como “as mulheres não se devem rir em público”. Se ele acha tal coisa é, muito provavelmente, porque ele próprio não se ri em privado, o que advém do facto de ter uma figura risível. O que dizer da última decisão do Tribunal Constitucional? Os cortes são aprovados durante o período claramente identificado como de emergência, e apenas no caso em que se vislumbra alguma justiça dentro da injustiça geral qu écortar direitos adquiridos. Depois, os governos que se organizem. Os juízes, tantas vezes acusados de fazerem política por caminhos ínvios, desta vez fizeram-na efetivamente dando uma lição aos políticos. Ao imporem o limite temporal para os cortes nos salários, contribuem ainda para dar um sentido aos sacrifícios, algo que competia ao governo. O acordo do Tribunal Constitucional mostra que o equilíbrio de poderes está bem e recomenda-se. O que dizer da deputada do PS, Maria João Rodrigues? Não se conforma por não ter sido nomeada comissária, mesmo depois de Jean-Claude Juncker ter afirmado que ele nunca fez parte da ‘lista de desejados’. A senhora diz agora que aquilo que lhe custa”não é não ter sido selecionada, é não ter sido submetida à seleção pelo Presidente da Comissão”. Ou seja, queria que ao menos o senhor juncker tivesse olhado para ela, mas o raio do homem nem isso fez. O que dizer ainda das PPP? Ao fim de todo este tempo, a única poupança que se conseguiu foi pelo cancelamento de novos projetos e pela anulação de contratos para manutenção futura das autoestradas. Mas as taxas de rentabilidade obscenas de vinte e tal por cento que o Estado pagou, essas estão inalteradas. Não houve por isso nenhuma renegociação das rendas dos contratos de PPP. Nova Aliança, 5 / setembro / 2014

18.6.14

As contas públicas e palavras antigas

23 de março - Apesar de tudo, ainda há notícias que furam a total indiferença. Segundo dados do INE, a taxa de risco de pobreza em Portugal aumentou em 2012 para 18,7%. Ditas as coisas desta maneira, parece justificado o alarme geral e a presença nas televisões de estudiosos aflitos. Afinal de contas, não são dados nada agradáveis e é sempre bom reconhecer algo que muitos afirmam há já muito tempo. Porém, ao acrescentar-se, de modo a acentuar as sombras, que a taxa é a mais elevada desde 2005, obtém-se o efeito inverso ao desejado e a coisa muda de figura. Recordamo-nos todos que então os poderes públicos tinham acabado de construir uma resma de estádios e organizado o "melhor Europeu da História", planeado o TGV e prometido o futuro aeroporto de Lisboa, entre outros desígnios nacionais que nos haveriam de conduzir à felicidade eterna. Agora que já verificámos que os estudos que davam o Aeroporto da Portela como ESGOTADO em 2011 não se verificaram, e já lá vão 3 anos, pelos vistos nem para lá se caminhando, convinha passar à fase de investigação criminal dos estudos e dos estudiosos que se prestam aos estudos que justificam as obras que nos enterram a todos e enriquecem alguns. Sobre Estádios e seus contributos para diminuir a pobreza, um pequeno apontamento. O Beira Mar, simpático clube da antigamente chamada 2ª Divisão, joga no magnífico Estádio Municipal, portanto de todos nós que leva 30,000 pagantes. Teve 17 jogos em casa com 12,897 espectadores ou seja uma média de assistência de 759 heróis que ocuparam 2,53% do mesmo Grandioso Estádio. Infelizmente um dos culpados disto é inimputável e não veio preparado, o outro que ajudou está na cadeia ( por outros motivos ) e todos nós vamos continuar a pagar tudo isto. Apresentando os números de outra forma, este valor aumentou de 17,9% em 2009 para 18,7% em 2012 (subiu 0,8%). A população em 2009 contabilizava 10.568.200 habitantes e em 2012 de 10.514.800; isto significa que em 2009 havia 1.881.140 cidadãos em risco de pobreza, “quase dois milhões”. Agora são 1.966.267, “quase dois milhões”. Isto significa que temos tantos pobres como os que tínhamos quando podíamos fazer 10 estádios, organizar um europeu de futebol, e gastar 74,1 milhões em estudos para o TGV. Os tempos, pois, eram risonhos, tão risonhos que o facto de o número de pobres de então superar o actual não incomodava ninguém, ou quase ninguém. E achava-se importantíssimo lembrar que os portugueses, incluindo os menos afortunados, não são números: são pessoas. Infelizmente, as pessoas em causa vêem-se transformadas em números logo que os seus alegados paladinos necessitam de agitar estatísticas. As dramáticas condições de vida de perto de dois milhões de cidadãos, de resto uma quantidade relativamente estável ao longo da última década, constituem a garantia de uma vida desafogada para as centenas ou milhares que "combatem" a pobreza como se o salário deles dependesse disso. Abrimos o "telejornal" e levamos com "técnicos" autodesignados para "analisar" os pobres , enquanto desfiam percentagens que "provam" o respectivo crescimento (a pobreza, nova ou velha, envergonhada ou indecente, escondida ou escancarada, cresce independentemente das circunstâncias). A terminar, lançam meia dúzia de "conclusões", embora sobretudo concluam a urgência em reforçar os apoios às fundações, redes, associações e "observatórios" a que pertencem. 27 de março – “ Lembro-me de que sendo Schmidt chanceler e eu primeiro–ministro, e estando Portugal numa situação financeira difícil, fui a Bona, então capital da Alemanha, com o ministro das Finanças Vítor Constâncio. Uns minutos depois, estando já Vítor Constâncio a expor a situação financeira, de que eu percebia tão pouco, pedi licença a Schmidt para ir dar uma volta e ver um museu. Assim aconteceu. Mas uma hora depois regressei para almoçar com ele, como estava combinado. Constâncio pediu para ir lavar as mãos. E então Schmidt disse-me: “Parabéns! Tens um ministro das Finanças excecional.” Ficou tudo resolvido.” ( Mário Soares ) O FMI chegou a Portugal pela primeira vez logo a seguir. Estava mesmo tudo resolvido. O caso BCP haveria de surgir mais tarde. Nova Aliança, 3 / abril 2014

A 'Casa do Cinema' e o Aeroporto de Beja

25 de abril - Mário Soares esteve no Largo do Carmo, ao lado dos capitães de Abril, para pedir o derrube do governo de Passos Coelho, se for necessário na rua “e a mal”. Longe vão os tempos do 10º aniversário do 25 de Abril, em 1984, em que Mário Soares, então primeiro-ministro do governo de Bloco Central PS-PSD,com o FMI pela segunda vez em Portugal, dizia na Assembleia da República aos capitães de Abril que contestavam a sua governação, parecendo o Passos Coelho de hoje: “O Povo, no seu bom senso, sabe quem lhe fala a verdade, tem consciência de que a crise é geral – não somos nenhuma excepção por essa Europa além – e está sobretudo cansado da demagogia, da agitação inconsequente, de uma certa retórica pseudo-revolucionária que já ninguém suporta”. 4 de maio - Estávamos em 1998, Fernando Gomes presidia à Câmara Municipal do Porto, Manuel Maria Carrilho reinava como ministro da Cultura e Manoel de Oliveira ia fazer 90 anos. Para aquelas almas profundamente imbuídas de paixões culturais nada melhor do que fazer erguer um monumento de betão – mas com pedigree cultural, pois o desenho seria de Souto Moura – com o pomposo nome de “Casa do Cinema”. Escolheram a melhor e mais refinada zona da cidade do Porto – a Foz, como não podia eixr de ser – e lá ergueram as paredes do que seria a futura residência do cineasta (seria ele um sem-abrigo desconhecido?) e, ao lado, as arrecadações para guardar o seu espólio. A obra levou uns anos a fazer – afinal Portugal nunca deixaou de ser Portugal – e, quando ficou pronta, a câmara não se entendeu com o cineasta. A lindas paredes ficaram ao abandono, ninguém parece ter estado muito incomodado, os anos passaram, tudo se foi degradando, e entretanto Manoel de Oliveira somou mais dez anos, tornou-se centenário, nunca achou que tivesse de mudar os tarecos para um casa nova e acabou a entender-se com a Fundação de Serralves, onde entretanto está a surgir outra casa Manoel de Oliveira, esta da autoria de Siza Vieira (noblesse oblige). Chegamos assim ao ponto de, dez anos depois, o “betão cultural” que custou mais de dois milhões de euros – não se indignem já, foi para “investimento”, ainda para mais um “investimento cultural” – ir agora à praça por apenas 1,5 milhões. É o que se chama uma história exemplar da saloice nacional, do encantamento parolo com certos “símbolos da cultura” e da leviandade com que se gasta o dinheiro dos contribuintes. Ao menos que corra bem o leilão. 12 de maio - Um dos jornais televisivos da TVI 24 abre com a seguinte manchete: “PS questiona Governo sobre interesse dos EUA na Base Aérea de Beja Socialistas exigem que novas utilizações da infraestrutura «não ponham em causa» o desenvolvimento do aeroporto”. Os leitores recordam-se certamente do que aqui já foi dito do Aeroporto de Beja que recebe em média dois voos por semana. Mas é tudo culpa do actual governo que desinvestiu no aeroporto, da senhora Merkel porque ela é sempre culpada de alguma coisa e depois dos americanos que eram para vir, comprometendo desse modo o desenvolvimento do aeroporto e depois como não hão-de vir comprometem-no ainda mais. Quando o PS for governo faz-se um programa de desenvolvimento para o aeroporto de Beja. Eu sugiro que se levem os ‘desencorajados’ de avião até Beja de preferência em Julho, metem o nariz na rua e regressam para casa animadissimos e quiçá até dispostos a trabalhar numa churrascaria. Obs. Segundo a TSF os ‘desencorajados’ recusam sistematicamente as propostas de emprego dos centros de emprego mas não são pessoas que não querem trabalhar, são sim pessoas desencorajadas. Nova Aliança, 14 / maio / 2014

Isabel Jonet e a segurança social inglesa

4 de abril – Tal como noutras actividades, também o Facebook tem os seus lápis azuis. Infelizmente há gente que pouco mais faz que bisbilhotar o que os outros dizem e fazem, tentando com isso apanhá-los em falso, se a ocasião o permitir. Quem ousar pensar de forma diferente tem o castigo correspondente: é crucificado na ‘rede’ e o trabalho de uma vida reduzido a cinzas. Neste momento a pessoa em questão é Isabel Jonet. Como tudo na vida, as redes sociais são boas ou más conforme o uso que delas se faz, e obviamente, foi a isso que a presidente do Banco Alimentar se referiu quando falou no prejuízo que elas podem causar aos desempregados. E o maior prejuízo que podem causar é deixar as pessoas agarradas a “amigos que não existem” e a “viver uma vida que é uma total ilusão”. É pena que certos “gurus” pseudo-intelectuais da nossa praça – leia-se das nossas redes sociais –, dediquem os seus talentos a denegrir quem não pensa como eles demonstrando uma visão deformada sobre a realidade, que não olha para as obras, mas sobrevaloriza e deturpa as palavras e as ideias só porque, na democracia deles, há coisas que não se podem pensar e muito menos dizer. Isabel Jonet tem um defeito: fala com franqueza. E tem outro defeito ainda maior: diz o que pensa sabendo sobre aquilo de que fala. Isto para além desse defeito supremo que é não ser politicamente correta, entenda-se, não ser de esquerda. Ela acha que assim é praticamente impossível conseguir-se um emprego, e não custa concordar com a senhora - excepto, claro, se partirmos do princípio de que tudo o que a senhora diz é uma afronta aos desvalidos, dado que a senhora tem o descaramento de distribuir comida entre os pobres, em vez de retórica. Neste caso, a opção óbvia consiste em distorcer um bocadinho ( no mínimo… ) as palavras de Isabel Jonet e verter indignação a rodos. Onde? Ora essa: curiosamente no Facebook, que serve justamente para que a loucura, à semelhança de certa pobreza, não permaneça envergonhada e confinada a hospitais e consultórios psiquiátricos. Difícil não é perceber como é que inúmeros viciados nas "redes sociais" não arranjam emprego, mas perceber como é que outros tantos mantêm o seu. 6 de abril - A Segurança Social britânica retirou cinco filhos a um casal português que ali vivia. A própria magistrada reconhece que as crianças queriam viver com os pais. Pela Europa fora, como se vê, o Estado arroga-se no direito de fazer o que quiser com uma família. Sobretudo as mais pobres. Sim, é de pobreza e não de Justiça que se trata. Lembram-se de Liliana Melo, a cabo-verdiana a quem tiraram sete filhos em Portugal, apesar de não haver maus tratos, queixas, apesar de a senhora já estar empregada, numa operação de tal forma tosca que se esqueceram de um dos filhos? A mesma Liliana, que não sabia sequer ao que ia quando foi a tribunal? Aquela a quem não deixaram mais ver os filhos? Lembram-se que, depois disso, uma advogada e várias pessoas se mobilizaram para a defender? Lembram-se que o caso foi à Relação? Pois bem, a Relação já julgou e...surpresa das surpresas, confirmou a sentença da 1ª Instância. A Liliana continua, por ora, sem os filhos, à espera de novo recurso. As advogadas entendem existirem erros manifestos e grave violação de princípios estruturantes do Estado de Direito. No tempo em que o Direito era Justo, levava em conta situações concretas e não abstratas. Ora na 1ª Instância, que a Relação ora confirmou, escreve-se que "não há prova de maus tratos" (não há, aliás, prova de um delito que seja); aquele acórdão reconhece que há afetividade entre os irmãos e entre mãe e filhos e apenas se prova o que é evidente - que Liliana é pobre. Ponto! Num ataque da mais pura desumanidade, a sentença refere que falta higiene, que a luz chegou a estar cortada por falta de pagamento! E que há um quarto para cinco crianças! E que Liliana não laqueou as trompas e ainda teve mais filhos, já depois da família começar a ser acompanhada pela assistência social. Foi isto que a Relação quis confirmar. E ainda acrescentou este trecho vergonhoso. Totalmente vergonhoso no cinismo que demonstra para a pobreza. Leiam-no devagar e por favor não se engasguem: "A falta de empenho dos progenitores em proporcionar desafogo material aos menores é por si próprio uma grande violência que legitima a decisão tomada pela 1ª instância". Claro que sim, senhores juízes, a pobreza é uma enorme violência. Mas não será porventura maior violência do que a pobreza arrancarem os filhos a uma mãe? Quem não sabe o que é amor, compaixão, família dificilmente compreenderá. Muito menos perceberá porque razão no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ou na Declaração dos Direitos do Homem é a família e o apoio à família, unida, que está no centro do combate à pobreza. Há um poema de Tomás Ribeiro (séc. XIX), chamado ‘D. Jaime’, que refere a determinado passo: "El-Rei de Castela é nobre/ não manda insultar um velho/ pode mandá-lo ser pobre/ matá-lo à míngua de pão/ mas mandar que um pai lhe entregue o próprio filho?! Isso não". Talvez isto tenha um nome: ignorância. Nova Aliança, 17 / abril / 2014

Seymur Hoffman

Se o ator Philip Seymour Hoffman vivesse em Portugal, ele teria morrido com uma overdose de heroína? A pergunta pode parecer absurda mas lembrei-me dela ao ler Russell Brand, em artigo para o "Guardian". A tese de Russell Brand é a seguinte: o grandioso Seymour Hoffman morreu como normalmente morrem os viciados no produto. Só. Escondido. Longe de amigos e familiares. Isso deve-se ao facto de os Estados Unidos continuarem a criminalizar a posse e o consumo de drogas, fazendo do viciado um pária. Exatamente o contrário do que acontece em Portugal, onde só o tráfico é punido criminalmente. A posse e o consumo deixaram de habitar o planeta criminal e são hoje uma infração administrativa, que termina muitas vezes com o tratamento do viciado. Russell Brand tem razão e não tem razão. Mas, primeiro, convém ir aos factos. O jurista norte-americano Glenn Greenwald, em estudo intitulado "Drug Decriminalization in Portugal" para o Cato Institute olhou para o caso português. E gostou do que viu. Em 2001, Portugal tornou-se o primeiro país da União Europeia a "descriminalizar" todas as drogas (heroína incluída ). Por outras palavras: recusando os extremismos que existem sobre a matéria —proibição absoluta ou liberalização absoluta— os lusos optaram pelo ‘assim-assim’. O consumo deixou de ser crime; passou a sofrer uma sanção administrativa ( através de coimas, por exemplo). E o consumidor deixou de lotar as prisões; começou a ser encaminhado para o tratamento respectivo. Isso permitiu aos governos poupar recursos na punição judicial do viciado, reforçando os mecanismos terapêuticos. Ao mesmo tempo, os viciados que temiam as consequências criminais começaram a olhar para o tratamento do vício com outra atitude. Resultados? O consumo de drogas baixou na generalidade do país, ao contrário do que sucedeu nos outros parceiros da União Europeia. Doenças associadas ao vício —sida, hepatite, etc.— também baixaram. E, claro, o número de mortes por consumo de drogas seguiu a mesma tendência. Último pormenor: Portugal não se transformou na Disneylândia do consumo europeu, desmentindo os cenários mais catastrofistas. A vida corre normalmente por cá e ninguém pensa em alterar a legislação sobre a matéria. O estudo de Glenn Greenwald sobre o sucesso português, disponível na internet, merece ser lido por qualquer governo interessado em enfrentar o problema das drogas no seu país. Mas é preciso uma dose homérica de ingenuidade para restituir a vida a Philip Seymour Hoffman, imaginando o ator em Portugal. Todavia, a legislação portuguesa tem limites. E esses limites começam quando existe uma vontade irreprimível do sujeito em promover a sua própria destruição. Os governos não salvam almas. Podem é salvar corpos, se houver oportunidade e vontade de os encontrar. Porque, no fundo, o problema das drogas é anterior a qualquer lei. Ele começa, e às vezes acaba, nesse vazio imenso por onde se perdeu agora um dos maiores criadores do cinema do nosso tempo. Nova Aliança, 20 / março / 2014

Lacão e os quadros de Miró

12 de fevereiro - O Parlamento português viveu recentemente um momento histórico. Não foi um grande discurso ou um debate fabuloso, muito menos um protesto imaginativo nas galerias. Nada disso, desta vez o momento histórico teve lugar numa Comissão e deu-se numa interpelação do senhor Jorge Lacão à ministra da Justiça. E o que fez Lacão? Lembrou-se de uma pergunta inquietante, fez uma exposição notável, representou os seus eleitores brilhantemente? Não, Lacão falou, falou, falou e... falou. Mais precisamente falou durante cinquenta e nove (59) minutos. Acontece que o monólogo passava por ser uma pergunta à ministra, que ali estava para responder às perguntas dos deputados. Ou seja, quando teve a oportunidade de fazer perguntas a Paula Teixeira da Cruz, o deputado Jorge Lacão decidiu ler um papel durante 59 minutos. Mais precisamente, em vez de fazer uma pergunta ou um conjunto de perguntas, resolveu ouvir-se a si próprio durante uma hora - perdão, uma hora menos um minuto -, com o objectivo claro de não fazer nenhuma pergunta, muito menos de obter respostas. Os deputados de vários partidos e a ministra assistiram a tudo isto de boca aberta, protestaram e Lacão acabou por abandonar a sala depois de uma segunda investida, agora com uns modestos 15 minutos. Lacão abandonou a sala em protesto porque não o deixaram falar, depois de ter falado 59 + 15 minutos. Os deputados do PS saíram atrelados a ele, talvez para o continuarem a ouvir nos corredores ou no jardim. Caros eleitores, já sabem, se virem Jorge Lacão um dia na rua, mudem de passeio imediatamente ou finjam que estão a correr para o autocarro. Já viram se ele vos pergunta pelas horas ou como é que se vai para a Bemposta? Lá se vai uma hora do vosso dia… 16 de fevereiro - Nesta discussão sobre as obras de Miró parte-se logo de um equívoco: a de que não existe custo se ficarmos com os quadros, pois eles já são nossos. Não é verdade. Há um custo de cerca de 35 milhões de euros. Se os quadros não forem vendidos, será o Orçamento de Estado a ter de meter esses 35 milhões no imenso buraco do BPN – uma realidade que a senhora Inês de Medeiros insiste em negar com a sua imensa arrogância e ignorância. É uma gota de água nesse imenso buraco? É. Mas não deixam de ser mais 35 milhões suportados pelos contribuintes. Estando este ponto assente, importa saber se comprar uma colecção de quadros de Miró tem prioridade sobre outros gastos do Estado, se tem prioridade sobre outros gastos da Cultura e se tem prioridade sobre a aquisição de outras obras e colecções para os museus nacionais. Qualquer pessoa sensata só pode responder negativamente a qualquer destas perguntas. Nenhum governante com os pés assentes na terra preferiria aplicar 35 milhões em pinturas de Miró quando isso implica retirar 35 milhões a outros destinos. E nenhum titular da Cultura com um mínimo de sensibilidade decidiria gastar 35 milhões nestas pinturas e não noutras inúmeras obras e colecções realmente relevantes para o património e memória nacionais. Aquela colecção de Miró nunca seria a primeira escolha. É esta realidade que devia entrar pelos olhos dentro. O resto é poeira para os olhos. Uma das ilusões que também regressou com este debate é a de que este “investimento” geraria muitas receitas futuras. É preciso ter uma enorme lata. Olhe-se para a Colecção Berardo que continua sem cobrar bilhete aos que a visitam. Olhe-se para o destino de Foz Côa. Olhe-se para os números dos museus nacionais onde existem colecções mais relevantes e muito mais interessantes. Só o voluntarismo cínico e demagógico dos que gostam de chamar aos outros “estúpidos institucionais” é que pode propagar esta ilusão. Uma ilusão, como sempre, paga com o dinheiro dos outros. Se acham mesmo que o investimento é bom, dirijam-se a um banco, arranjem os 35 milhões, exponham depois os quadros num museu cobrando bilhete e fiquem ricos. Ou, o que é mais provável, fiquem endividados para sempre. Mas não queiram sobrecarregar ainda mais os contribuintes portugueses. Nova Aliança, 23 / fevereiro / 2014

Fotografias e os crentes

12 de janeiro - 1. Fotografias: haverá alguém que não goste de olhar para elas? Em tempos arcaicos, talvez. Há quem diga que o maior tesouro que trouxe da casa dos pais eram as fotos de família. Álbuns e álbuns com fotos em preto e branco, algumas coloridas (manualmente, claro) e impressas em cartão grosso. Todas elas insubstituíveis. Estranho tempo, esse, em que os retratos valiam tanto como ouro. Ou até mais que ouro. Hoje vivemos o supremo paradoxo: nunca se tiraram tantas fotos mas nunca elas tiveram tão pouco valor. O jornal "Guardian" avisa que 2014 será o ano em que o mundo vai bater recordes no número de fotos tiradas: qualquer coisa como 3 biliões. Esse excesso não pode ser coisa boa: a facilidade com que hoje se tiram fotos é diretamente proporcional à facilidade com que nos esquecemos delas. Uma amiga, aliás, contava-me há tempos uma história instrutiva: em três anos de maternidade, ela acumulara mais de mil fotos do primeiro filho. Até descobrir que não tinha nenhuma para mostrar em papel ou em moldura -permaneciam todas na memória do computador, ou na máquina, ou no telemóvel. À espera de melhores dias. Três biliões de fotos para 2014, diz o "Guardian". E, no fim de contas, é como se o mundo não tirasse uma única foto que realmente importe. 2. Só existem dois tipos de pessoas que se preocupam genuinamente com Deus: os crentes e os ateus. Os primeiros por razões óbvias. E os segundos por razões ainda mais óbvias: a não crença, sobretudo quando levada a excessos de negação, converte-se sempre numa forma de crença e até de afirmação. O escritor Kingsley Amis é um bom exemplo. Um dia perguntaram-lhe por que motivo ele não acreditava em Deus. Amis corrigiu a pergunta e ripostou: "Não é bem não acreditar; é mais detestá-lo". Haverá forma mais sofisticada de fé na transcendência? Não admira por isso que já existam igrejas ateias nos quatro cantos do mundo ocidental. Leio que a moda começou em Londres, com a Assembleia de Domingo. A autora do artigo publicado no site Salon, Katie Engelhart, foi assistir a uma "celebração". E encontrou um mimetismo perfeito das celebrações religiosas tradicionais, com um "pastor", um "sermão", momentos de "oração" -no fundo, a busca de um sentido de "comunhão" para o rebanho ateu. A coisa fez sucesso em Londres, espalhou-se pelo Reino Unido, emigrou para os Estados Unidos (e para a Austrália) e, palavra de honra, até já teve a sua primeira "reforma protestante": em Nova Iorque, dissidentes da Assembleia de Domingo resolveram fundar a sua própria "igreja" por entenderem que a original não era suficientemente ateia. Imagino que, no futuro, outras "igrejas" se seguirão, dispostas a espalhar a "palavra" (mas qual "palavra"?) em adoração ao "não-deus". O fenómeno é interessante e só confirma o que os clássicos da ciência política sempre escreveram sobre o assunto: a negação da religião estabelecida não liberta os homens da sua condição de "animais religiosos". Que o diga o filósofo Raymond Aron, por exemplo, para quem o nazismo e o comunismo não eram mais do que "religiões seculares", dispostas a oferecer aos seus "fiéis" o Reino da Raça (ou do Proletariado) em substituição do Reino dos Céus. As igrejas ateias, pelo menos, sempre me parecem mais inofensivas e até divertem na sua óbvia palhaçada. Nova Aliança, 23 / janeiro / 2014

Diogo Mainardi Na 'Folha de São Paulo'

Aproveitem o conselho. Se quiserem ler um cronista de muita qualidade, procurem Diogo Mainardi no Google. Com sorte, surgirão os textos que escreveu na revista Veja. Há tempos atrás assustou-nos a todos: desapareceu das páginas da "Veja" e eu estranhei porque todas as semanas, a coluna dele era lida e relida com prazer e proveito. Tentei saber: que sucedera? A resposta veio agora, em forma de livro. Intitula-se "A Queda - As memórias de um pai em 424 passos" (Record, 150 p.). Abençoado desaparecimento. É o melhor livro de Mainardi até hoje. Superficialmente, a obra pode ser resumida como o retrato que Mainardi dedica ao filho, Tito, que nasceu com paralisia cerebral em 2000. Esse grosseiro erro médico atingiu a mobilidade de Tito de forma profunda e irreversível. As caminhadas do filho - passo a passo, queda a queda, ascensão a ascensão - ganham uma ressonância quase homérica aos olhos do pai. E aqui reside a essência de um livro superiormente escrito e pensado: "A Queda" é uma obra sobre o pai, não propriamente sobre o filho. E as verdadeiras quedas e ascensões não são as físicas de Tito; são as existenciais de Diogo. É o próprio quem o confessa em tom apropriadamente anti-confessional (e anti-sentimental): antes de Tito nascer, o projecto de vida de Mainardi era não deixar a ninguém o legado da sua passagem. "Pulando de romance em romance", em Veneza - haverá melhor projeto? Por incrível que pareça, há: encontrar algo, ou alguém, que é mais importante do que nós. Algo, ou alguém, que nos descentre de nossas "veleidades" (palavra de Mainardi), concedendo um sentido de vida que é maior do que a nossa vida. Esse alguém é Tito. A infância de Tito. As quedas de Tito. Os passos de Tito. E, a propósito de Tito, Mainardi vai congregando todas as artes disponíveis para o explicar e celebrar: a arquitectura de Veneza; as palavras de Ruskin sobre a "Serenissima"; a pintura de Rembrandt. E, claro, o cinema de Abbot e Costello. Tito é a sua teoria, a sua ideologia, a sua religião. A sua vida. E a grande arte só tem préstimo quando a tomamos por empréstimo. Para que ela possa reflectir, no duplo sentido da palavra, os contornos da nossa existência. Os nossos livros, os nossos filmes, os nossos quadros - tudo isso só tem interesse porque em cada obra encontramo-nos a nós. Com Tito, Mainardi aprendeu o que poucos, raríssimos, são capazes de aprender: que "saber cair" é mais importante do que "saber caminhar". Qualquer um caminha. Difícil é saber cair. Difícil é receber cada queda com gratidão, muita gratidão. Porque só é possível caminhar direito quando o medo da queda nos abandona passo a passo. E até ao dia em que paramos de os contar. Nova Aliança, 17 / dezembro / 2013

Os contratos dos colégios privados

7 de novembro - A TVI voltou a mostrar-nos como funcionam as relações do Estado com os colégios privados com contratos de associação e que se batem por uma suposta "liberdade de escolha". Desta vez não se ficou pelo grupo GPS , que permitia que alguns dissessem que se tratava apenas de um caso de polícia. Mostrou como estamos perante um fenómeno generalizado. O padrão é simples de resumir. Num determinado concelho há escolas públicas suficientes. Algumas em excelentes condições, com obras muito recentes e com um óptimo quadro docente. Outras, pelo contrário, há decadas à espera de investimento. Escolas que chegam e, em alguns casos, até sobram para o número de alunos na região. Mas, no mesmo raio de influência, autoriza-se incompreensivelmente a construção de escolas privadas que, à partida, sabem com toda a certeza que contarão com apoio público - caso contrário nunca se lançariam no negócio. Esses colégios têm direito a subsídio público para receberem alunos, ao mesmo tempo que as escolas públicas veem o número de turmas reduzido muito abaixo da sua capacidade. Um apoio público de milhões permite que os ditos colégios ofereçam o que está interdito às escolas públicas: transporte para todos, por exemplo. E assim se duplicam custos e se garante o subsídio público a atividades privadas que não cumprem nenhuma função que o Estado não tivesse já condições para garantir. E se deixam as escolas do Estado a morrer por falta de alunos ou de recursos. À frente das empresas financiadas encontramos ex-ministros, ex-responsáveis pelas mesmas entidades que autorizam as escolas e determinaram o número de turmas permitidas no público, até autarcas no ativo que presidem às mesmas câmaras que financiam os seus próprios colégios. Encontramos a mesmíssima promiscuidade entre o público e o privado que determinou quase todos os crimes económicos deste país: do BPN às PPP, dos Swap às privatizações ruinosas, da administração privada de hospitais públicos às concessões rodoviárias. Não são casos de polícia. Não são a exceção que confirma a regra. São o retrato da elite política e económica nacional. São, com raras excepções, a sua forma de fazer as coisas Ou seja, a criação de um Estado paralelo, dirigido por empresas que o Estado financia para nos prestarem os mesmos serviços que ele hoje garante. Não é menos Estado. É mais Estado para as clientelas e menos Estado para os cidadãos. Garantirá esta solução mais qualidade de ensino? Apenas aquela que a seleção social garante e que os colégios praticam. Garantirá mais equidade e justiça social? Pelo contrário, cria um ensino a duas velocidades. Reduzirá os custos? Se cumprirem as mesmas obrigações do Estado, não..iDo que falta falar é do que esta lógica, no ensino, na saúde e em todas as funções do Estado, tem feito à nossa economia. Os últimos governantes não se limitam a querer que o Estado abandone as suas funções sociais para que, sem qualquer proteção garantida pelo conjunto da comunidade, esse mercado fique livre para o negócio. Isso foi o que durante anos defenderam para a saúde, para a educação e, talvez mais importante do que tudo, para o sistema de pensões. Agora querem mais. Querem que o Estado mantenha essas funções como mero pagador. Querem um mercado supostamente livre, mas que usa os impostos dos cidadãos para se financiar. Na realidade, é disto mesmo que a elite económica portuguesa vive desde quase sempre. Primeiro do ouro do Brasil e do comércio colonial. Depois do condicionalismo industrial. Por fim, dos fundos europeus e da privatização de monopólios protegidos e com o fundamental do investimento já feito. E agora, quer viver do financiamento público para desempenhar as funções hoje garantidas pelo Estado. A única coisa que não querem é um Estado Social forte, que qualifique e dê direitos a trabalhadores indisponíveis para viverem com salários de terceiro mundo, para, neste grau de exigência, competirem onde o mercado e a concorrência realmente existem. As boas agendas recheadas de contactos de ministros e os conselhos de administração recheados de ex-ministros continuam a ser um investimento mais proveitoso e seguro. É para manter esta forma de fazer negócios no país, passando para uma nova fase da rapina, e não para modernizar a economia e os serviços públicos, que se pede um consenso nacional em torno duma suposta reforma do Estado. Na realidade, a novidade que nos oferecem é antiga de séculos: continuar a proteger e a financiar uma das mais medíocres e protegidas elites económicas da Europa - que é constituída, há mais de cem anos, por mais ou menos as mesmas famílias. Nova Aliança, 14 / novembro / 2013

Os cortes

Em 2011, José Sócrates avançou com o corte de 3,5% a 10% nos salários dos funcionários públicos acima de 1500 euros brutos. Muito a custo, o Tribunal Constitucional aprovou a medida. Avisando que apenas o fazia por duas razões: porque era transitória (na verdade é "transitória" desde então) e porque, sendo o valor mínimo de 1500 euros, isso era aceitável. Porque os cortes estavam "dentro dos limites do sacrifício que a transitoriedade e os montantes da redução ainda salvaguardam". Em 2012, o TC voltou a recordar que a medida era transitória. No mesmo ano, o TC chumbou a suspensão dos dois subsídios. Mas numa solução um pouco estranha, a inconstitucionalidade determinada pelo TC não teve efeitos práticos. Em 2013, o TC volta a aceitar a medida transitória dos cortes acima de 1500 euros, mas desta vez com um aviso ainda mais claro: "o decurso do tempo implica um acréscimo de exigência ao legislador no sentido de encontrar alternativas que evitem que, com o prolongamento, se torne claramente excessivo para quem o suporta", acrescentando que "o tratamento diferenciado dos trabalhadores do sector público não pode continuar a justificar-se pelo carácter mais eficaz das medidas de redução salarial". Em tribunal-constitucionalês isto quer dizer: a medida era transitória e o facto de ser fácil ir sacar dinheiro aos salários dos funcionários públicos não os pode transformar em mealheiro do governo. Para deixar tudo ainda mais claro, o TC chumbou de novo a suspensão dos subsídios mas desta vez obrigou o Estado a devolver o que, como os juízes já tinham dito, nem poderia ter sido retirado no ano anterior. No Orçamento de Estado para 2014, aquilo para o qual o TC pedia que fossem encontradas alternativas é repetido. Mas em muito pior. Em vez do limite inferior de 1500 euros, ele passa para 600 euros. Em vez do corte máximo de 10%, ele passa para 12%. Sendo muito menos progressivo do que os cortes anteriores, o valor máximo começa logo nos 2000 euros brutos, que passam de um corte de 3,5% para um corte 12%. O que afetava menos de metade dos funcionários públicos passa afetar 90%. Não é preciso ser bruxo para desconfiar que, depois de tudo o que disse e de todos os avisos que deixou, muito dificilmente os juízes do Constitucional deixarão passar esta medida. Ela é, mais ainda do já fora a repetição da suspensão dos dois subsídios, uma inacreditável provocação ao Tribunal Constitucional. E é evidente que os juízes terão toda a razão em impedir estes cortes. A ver se nos entendemos: os funcionários públicos, que sofreram o mesmo agravamento fiscal sentido por nós todos, passaram a descontar mais para a ADSE (única medida com a qual concordo, por ser voluntária), sofreram o anterior corte até 10% e já tiveram a perda de dois subsídios em 2012. Com esta medida, o seu salário é ainda mais maltratado. Pegando num exemplo que nem é dos piores, um funcionário público que recebesse 1600 euros limpos em 2010 vai receber 1350 euros limpos em 2014, isto já com um dos subsídios diluídos no salário. Perde 4500 euros por ano. É um ¼ do seu salário líquido. Não há, que eu saiba, nada de parecido em trabalhadores que façam parte do quadro de empresas e com salários semelhantes. E sabemos como estes também não têm sido poupados à rapina. Apesar do governo estar apostado em provar o contrário, os funcionários públicos são pessoas, não são sacos de pancada. Mas ainda que se discordasse das decisões do Tribunal Constitucional, elas têm sido claras nesta matéria. E com um tribunal não se fazem negociações. Não se vai esticando a corda até ela rebentar. Cumprem-se as decisões e as recomendações e respeita-se a sua autoridade. Discorda-se, critica-se, barafusta-se. Mas cumpre-se. Partindo do princípio que há uma coerência na interpretação que os juízes do TC fazem da Constituição da República (e só a sua interpretação é vinculativa), esta proposta vai ser chumbada. Partindo do princípio que o governo não pensa que os juízes mudarão de opinião por cansaço, o governo sabe que ela será chumbada. Ou então, o que é mais grave, acredita que a pressão política interna (que o governo tem exercido) e externa (que o governo tem permitido) fará os juízes desistir das suas funções: que são apenas e só fazer cumprir uma Constituição que resulta da vontade dos que foram eleitos pelo povo, que a escreveram e alteraram sete vezes. E nem os nossos parceiros internacionais, nem qualquer memorando com eles assinado se sobrepõem à lei fundamental do País. Nem aqui, nem em qualquer Estado de Direito. A minha tese é outra: o governo não anda distraído nem é teimoso. Não se incomoda muito com a forte possibilidade desta e doutras medidas serem chumbadas. Quer, aliás, alimentar o mais que puder o conflito institucional com o Tribunal Constitucional. Para recentrar o debate na Constituição da República, e não no seu falhanço em todas as metas que se propôs cumprir (foi perturbante ver a ministra das Finanças falar dos sinais de retoma enquanto a desgraça dos números da dívida, do défice e do desemprego passavam em rodapé na televisão). Para encontrar nas "forças do bloqueio" - a Constituição e o Tribunal Constitucional - os bodes expiatórios da tragédia para onde nos está a levar. Para provar que é a nossa Constituição e não numa receita absurda, inviável e fanática que nos afunda cada vez mais nesta crise. E que é ela que impede a purificação do Estado e da economia. Não faltam jovens e velhos comentadores a fazerem coro com o governo neste discurso vigoroso contra as forças "reacionárias" que impedem o nosso progresso. A retórica revolucionária começa sempre por atacar as instituições que travam a queda de um regime decadente. Neste caso, são instituições passadistas, como o Tribunal Constitucional, que continuam a suportar os focos antirevolucionários. Mas graças ao empenho desta vanguarda esclarecida que ilumina os nossos espíritos arcaicos, é sobre as ruínas desta democracia feita de direitos adquiridos que nascerá um homem novo. Livre do Estado e das dependências que ele alimenta. Só falta a tomada do Palácio de Inverno. É uma questão de tempo. Porque, como todas as ideologias totalitárias, o "liberalismo científico" sabe que nada pode travar a marcha da história. Que inevitavelmente esmagará as forças da reação. A começar, claro, pelos esclerosados juízes do Tribunal Constitucional. Sobre o resto da orgia de aumentos de impostos e cortes em salários e reformas, que não são, segundo as palavras do vice-primeiro-ministro, um novo pacote de austeridade, escreverei na edição impressa do Expresso e, talvez, ainda aqui. Nova Aliança, 17 / novembro / 2013

Os festejos das eleições

29 de Setembro – Os palermas que, numa noite de chuva, decidiram sair à rua e gastar uns bons litros de gasolina para dar umas apitadelas e vitoriar os vencedores autárquicos estarão no seu perfeito juízo? Existirá alguém que ainda tenha o desplante de atirar foguetes num ambiente de cortar à faca? Algum candidato consegue afirmar que venceu, sem engolir em seco perante os louváveis níveis de abstenção, perante os votos em branco e perante os recados fabulosos que os eleitores mais criativos foram deixando nos boletins nulos? A resposta a estas perguntas é “sim”. O que não falta por aí é gente assim. Registe-se o seguinte: há mais de 180.000 votos em branco (3.84%) e 140.000 votos nulos (2,94%). Em ambos os casos, são mais do dobro dos verificados nas eleições de 2009 (85.000 e 62.000, respectivamente, para o mesmo universo). Serão várias as causas destes números, que devem merecer reflexão. Os números são ainda mais avassaladores para as Assembleias Municipais (203.000 votos brancos e 145.000 nulos). Quer isto dizer que trezentas mil pessoas se deram ao trabalho, num dia chuvoso, de se deslocar aos locais de voto para não escolherem qualquer das listas candidatas. Infelizmente para todos nós, voltámos à realidade. Agora os tapetes de relva vão degradar-se e aqueles arbustos acabadinhos de plantar vão perder a sua graça. Agora as listas brancas pintadas no alcatrão vão apagar-se. Os buracos vão voltar aos mesmos sítios onde estiveram durante anos, o lixo vai acumular-se nos mesmos sítios, as árvores vão continuar a ser estupidamente arrancadas, algumas casas verão os seus acessos deteriorados embora paguem o mesmo IMI que as moradias chiques nos centros das cidades. Agora vamos ter uma pequena pausa nos boletins, revistas, espectáculos e demais ‘instalações' de múltiplos e avençados criadores que nos garantem que o município é uma festa. Agora vai ser assim até que daqui a três anos e meio a girândola comece a girar de novo e eles de novo comecem a prometer o impossível, quando não o indesejável, e, no caso dos que correm para a reeleição, a fazer com desmesura aquilo que sempre deviam ter feito com contenção. Agora vamos continuar a assistir à evolução dos autarcas: houve o tempo do saneamento, das ligações básicas e reais com os investidores imobiliários, depois o tempo dos estádios, pavilhões e piscinas. Hoje eles centram o seu discurso na ‘área social’. Urbanismo, lei das rendas, crescimento urbano são esquecidos. Infelizmente esta estratégia mediática não se mostra desacertada pois a falta de escrutínio a muitos dos programas ditos sociais é um dos sinais mais evidentes de como esta área rende muitas e boas notícias e melhor que tudo gera poucas perguntas. Os nossos partidos políticos continuam hábeis na arte de serem autistas face à realidade. O facto de os representantes poderem prosseguir as suas empreitadas em total desprezo pelos sinais óbvios que o eleitorado envia consegue ser mais preocupante e revoltante do que conhecer as fraquezas da democracia em si mesma. Politicamente, Portugal é um doente terminal a delirar e a pedir para ir dançar à chuva outra vez. Basta passar em vista as promessas que encheram as nossas ruas nas últimas semanas e que nos fizeram rir, já em meio de desespero e ao som de uma implícita marcha fúnebre. Os candidatos aos cargos locais, de mão estendida para Lisboa, parecem filhos do pai pobre a fazerem a lista de prendas de Natal às escondidas. Sonham com um dia que há-de vir. O dia em que poderão comprar tudo. Não os acordem repentinamente. Podem ficar traumatizados. Nova Aliança, 3 / outubro / 2013

Ilídio Matos e Alice Munro

A Espuma dos Dias 4 de outubro – Os verdadeiros leitores dificilmente esquecerão alguns nomes. Nem necessitam de ser autores, à volta da ‘produção’ de um livro surgem nomes incontornáveis. Nomes que nunca desaparecerão. Conhecemos os seus nomes: editores que arriscaram a vida e os cabedais, grandes revisores e leitores, excelentes livreiros, notáveis capistas – e agentes literários que, por trabalharem na ‘sombra’, quase ninguém conhece. Ilídio Matos, que nos deixa aos 84 anos, foi, durante anos, esse agente literário. Primeiro, em part-time atrevido; depois, ocupação principal, representando autores que iam de Agatha Christie a Hemingway, de Caldwell a Patricia Higshmith. Nas feiras internacionais de direitos (Frankfurt, Londres, etc.) ele foi, durante anos, o agente português – um George Smiley da nossa pequena edição: discreto (sabia guardar segredos), divertido, cauteloso, prudente, generoso e possuído pela loucura dos livros. Depois dos oitenta, Ilídio Matos continuou a trabalhar; era o seu único vício, além do anonimato. Ele merece as homenagens que lhe são devidas. 10 de outubro - Alice Munro acaba de ganhar o Nobel da Literatura 2013 e é talvez a melhor contista da actualidade. Editada em Portugal pela Relógio d’Água, estreou-se em 1968, mas só foi revelada por cá em 2008. Após as antologias Fugas (de 2004), O Amor de uma Boa Mulher (1998) e A Vista de Castle Rock (2006), edita-se O Progresso do Amor, de 1986. São onze contos sobre as ilusões e desilusões amorosas de homens e mulheres comuns, habitantes sobretudo do Ontário rural, espaço natal e de eleição da autora canadiana. Na maioria dos enredos, trata-se, como refere uma personagem no seu caso individual, de «erros de fuga», confundíveis com erros passionais. Brechas nas ações e cenários quotidianos das personagens que abrem caminho a ligeiríssimos movimentos das placas subterrâneas que sustentam as vidas, por sua vez fonte de intensos, mas subtis, choques à superfície. A grande ficcionista Joyce Carol Oates diz que Munro «escreve contos com a densidade — moral, emocional, por vezes histórica — dos romances de outros autores». A própria esclareceu que os desenvolve como se sentisse «a tensão numa corda, ciente apenas de aonde ela está atada». O que mais espanta é a exímia conjugação de contenção de meios e riqueza densa do mundo interno de cada personagem, explorado sempre na terceira pessoa do singular («Ela, que sempre tivera um ar pálido, sedoso e dócil, mas difícil de seguir, como uma marca de água»; Edgar está sentado «como um adorno polido, quase sempre imóvel»). Munro não é dada a grandes experimentalismos técnicos e não hesita sequer em abusar das metáforas ou da adjetivação. Nela, tudo surge com uma espontaneidade e um talento desarmantes. Notável na elasticidade das frases e dos diálogos, desenvolve estruturas pragmáticas a partir de uma luminosa atenção aos detalhes. Nada é estático, ainda que a evolução das personagens (a vida «a recuar como uma fotografia rasgada e enrolada sobre si, mostrando o que sempre tivera por trás») surja com a densidade de uma espessa camada de neve. No brilhante «Ataques», que só por si vale o livro, o homicídio-suicídio de um casal serve, afinal, para explorar a enigmática personalidade de uma sua vizinha. Indiretamente, Munro descreve a forma direta e dramática como as vidas de gente comum se encontram ligadas, pelo banal e pelo extraordinário. Nos contos de Munro, os catalisadores da acção podem ser movimentos de fuga a um matrimónio, a um passado, aos laços familiares ou às limitações provocadas pela doença ou pelo envelhecimento (como em «Fugas»). Por vezes, resultam de impulsos de identificação, concretização ou repulsa de fantasias (todas elas femininas, em O Amor de Uma Boa Mulher). Mas o que marca a originalidade destas histórias é a extrema atenção dada a pequenos pormenores (lembranças, palavras ou factos) que desencadeiam e iluminam a compreensão do universo de cada personagem. Tal como diz Robin, a protagonista de «Truques» (Fugas), «basta movermo-nos um centímetro para aqui ou para ali e estamos perdidos». A intuição de Alice Munro permite-lhe determinar e descrever esses epicentros de crise. No brilhante «Podre de Rica» (O Amor de Uma Boa Mulher), a personagem Karin descreve-se como «algo de imenso, de tremeluzente e autónomo, com picos de dor em certos sítios, e no restante uma extensa e monótona planície». São assim as personagens de Munro: imensamente iguais a nós e dramaticamente diferentes. Nova Aliança, 17 / outubro / 2013

Os tesourinhos deprimentes e os piropos

8 de Setembro - Talvez por terem menos dinheiro para gastar nas eleições, a ingenuidade dos cartazes tem animado esta campanha autárquica. Eis um bom exemplo de como a crise aguçou o engenho. Acontece isto quando a tecnologia facilita a feitura da propaganda. Alguns resultados têm sido iguais aos da velhota espanhola de Borja que "restaurou" uma pintura de Cristo: artisticamente, um desastre, mas todos falaram disso... Como a propaganda eleitoral é exatamente para que se fale, vivemos talvez um grande momento. Em Torre de Moncorvo, Carla Neves, candidata a uma das freguesias, abrilhantou um dos cartazes com uma foto - vestido rosa quase quase a cair e cabelo armado - parecendo de baile de debutante de há cinquenta anos atrás. Ela própria admitiu no Facebook que a foto era "horrível", mas, graças a ela, passou a ser "a pessoa mais amada do meu querido Portugal." Exagero, talvez, mas que o eco (ou pelo menos a photoshop da candidata) chegou longe, chegou. A conclusão essencial a tirar é que a crise descentralizou as campanhas eleitorais e que os candidatos locais podem ver nisso uma janela (ou cartaz) de oportunidades. Há quem apelide os cartazes de "tesourinhos deprimentes". Mas estes podem ser a devolução aos candidatos da sua condição de nos convencerem. Por mais toscos que sejam os de hoje, são mais democráticos do que as resmas mandadas pela sede do partido, com fotos perfeitas e palavras de ordem não discutidas. 10 de Setembro - A grande vantagem do mês de agosto é que , como quase toda a gente está de férias, qualquer assunto maluco pode virar capa de jornal. Este ano surgiu o convite para a promoção de legislação contra o piropo. Certamente com pouco que fazer e na falta de livros e jornais, duas senhoras mostraram-se seriamente preocupadas com os criminosos que elogiam a anatomia feminina na via pública. Garantem que os elogios são "machistas" e ofensivos para a mulher e, naturalmente, exigem medidas adequadas. Claro que, para consumo exterior ao movimento, "piropo" diz-se "assédio verbal" e "proibir" diz-se "abrir o debate". E que se estranha a exclusão, no debate entretanto aberto, do assédio verbal entre homossexuais. E que se duvida da pertinência em discutir semelhante irrelevância. E que toda a gente já dedicou ao problema a galhofa que o problema merece. E que… Falta é constatar o óbvio: na falta de assunto, qualquer assunto é assunto. Depois da legalização do aborto (aprovado), pela institucionalização do casamento gay (aprovada), pela adopção de crianças por casais do mesmo sexo (em vias de facto), pela abolição das touradas (uma palermice regional), pela legalização das drogas leves (ninguém liga) e pela perseguição dos transgénicos (idem), hoje "debate-se" o piropo como amanhã talvez se "debata" a erradicação do pião a pretexto dos perigos do metal. Não sendo uma tragédia humanitária, dá pena. E dá vontade de rir. 14 de Setembro – Em grande plano, o rival eleitoral de Angela Merkel, Peer Steinbrück, apareceu na capa de uma revista com o dedo médio estendido, fazendo o célebre gesto obsceno. Como alguém já referiu, o escândalo é bom para lembrar uma das poucas superioridades lusitanas. Vejam a fotografia e observem o alemão: estende o médio, numa mão onde os outros dedos se limitam a encolher... Nem precisa de ser alemão, quase todo o mundo faz o gesto da mesma forma mole. A peineta espanhola, o doigt d"honneur francês, o rude finger inglês são todos como o agora famigerado Stinkfinger do político alemão: preguiçoso. A linguagem gestual devia ser mais respeitada. É ou não verdade que foi a mão e a forma dos dedos humanos que nos permitiram evoluir. Mas uma coisa é certa, só os portugueses fazem aquele gesto de forma impecável. Há agora a mania de, ao falar, fazer aspas com os dedos, como que pedindo desculpa: "Não é bem isso que queremos dizer..." Ora, quando se estende o dedo médio a alguém, aquilo que queremos dizer é mesmo aquilo, mostrar um sexo masculino. Sendo sempre mal-criado, ao menos que o digamos de forma clara - e isso só os portugueses fazem. O nosso dedo médio estendido é como o dos outros, universal. Mas só os portugueses dão um toque de classe, erguem as falanges dos dedos indicador e anelar, enroladas com as falanginhas e as falangetas, fazendo duas rodas onde se apoia, como o cano de um canhão, o dedo médio. O simbolismo da artilharia fica claro, a solidariedade dos dedos é notável. E querem os alemães dar-nos lições de organização e qualidade... Nova Aliança, 17 / setembro / 2013

O 'palhaço' e as medidas a tomar

16 de julho – Os tempos andam mesmo estranhos. Então não é que uns palhaços do Ministério Público resolveram arquivar a queixa-crime de um palhaço que mora em Belém, por se ter sentido ofendido por um palhaço que escreve nos jornais lhe ter imputado essa nobre profissão!... Os palhaços do Ministério Público arquivaram rapidamente o processo contra o palhaço jornalista, fundamentando a decisão no princípio da “liberdade de expressão”, que “é válida não apenas para juízos de valor favoráveis, inofensivos ou indiferentes, mas também para os que ferem, chocam ou incomodam”. Por isso, chamar “palhaço” ao Presidente da República Portuguesa, ou a qualquer outro titular de um órgão de soberania, ou mesmo a qualquer cidadão português, passa a ser, a partir de agora, um direito fundamental de todos os portugueses, que a Constituição protege e o Ministério Público tutela. Aplicando-se o mesmo critério a outros adjectivos que “ferem, chocam ou incomodam”, o nosso direito fundamental à liberdade de expressão ficará consideravelmente ampliado. É só começar… 20 de julho - O governo português continua teimosamente a insistir em políticas recessivas de austeridade, rejeitando as políticas de crescimento económico que lhe têm sido aconselhadas pela oposição, por eminentes economistas portugueses e estrangeiros, pelas centrais sindicais, por ilustres membros da prelatura lusitana da Igreja Católica, sobretudo pelo seu Bispo Castrense D. Januário Torgal Ferreira, por Tozé Seguro, pelo Presidente da República actual e pelos Presidentes da República pretéritos Mário Soares e Jorge Sampaio, e pelo Doutor Artur Baptista da Silva, conselheiro não ratificado da ONU e verdadeiro herói de Nicolau Santos, o homem do laço.. Tamanha cegueira só pode encontrar justificação na falta de cultura dos membros do governo e numa imensa falta de imaginação para criarem as políticas de crescimento económico de que todos falam. Ou, então, num profundo masoquismo político, que se satisfaz em maltratar o povo e em perder votos e eleições, coisa incomum na política, a merecer estudo psicanalítico. Para suprir essa lacuna governamental e pôr o país no caminho que ele merece, deixamos aqui algumas sugestões de políticas económicas para o crescimento. Embora estas ideias sejam nossas, apostamos que encontraremos a sua grande maioria nas propostas que o Partido Socialista levou para o acordo de salvação nacional. Assim: 1ª Fabricar notas de banco em quantidade suficiente para acabar com a crise e com a pobreza (ideia roubada ao senhor Soares). 2ª Obrigar os bancos a concederem crédito ao consumo e às empresas a custo zero ou próximo disso. Os bancos iriam buscar aos seus lucros perdulários o dinheiro que «perderiam» nestas operações. A dinamização da economia interna com estas medidas seria espectacular e geraria riqueza e prosperidade para todos (ideia roubada do senhor Louçã). 3ª Duplicar o número de funcionários públicos, acabando assim com o problema do desemprego e com a instabilidade na administração pública (ideia roubada ao senhor Arménio Carlos). 4ª Retomar um amplo programa de obras públicas, desde logo o TGV e o novo aeroporto de Lisboa, mas também novas auto-estradas, pontes, hospitais, escolas e outros, através de vantajosas parcerias público-privadas, que gerariam emprego, dinamizariam o mercado interno, criariam riqueza para todos e, mais importante de tudo, não teriam qualquer encargo sobre os contribuintes portugueses (ideia roubada ao senhor Sócrates). 5ª Criar um grande banco público de fomento da economia e das empresas, que emprestaria dinheiro a quem dele precisasse para desenvolver negócios de sucesso garantido (ideia roubada ao senhor Seguro). 6ª Pregar o calote aos alemães e demais credores do tesouro público (ideia roubada do senhor Sócrates). 7ª Obrigar os empresários portugueses a duplicarem os postos de trabalho nas suas empresas, a reajustarem anualmente os salários em 10%, a aplicarem um salário mínimo com o valor praticado na Suécia e a não despedirem trabalhadores nos próximos cinco anos (ideias roubadas ao senhor Jerónimo de Sousa). 8ª Solicitar aos nossos amigos europeus que nos paguem a dívida (ideia roubada ao senhor Seguro que, como devem imaginar, tem muitos amigos por essa Europa fora). 9ª Criar o «Dia Nacional do Empresário», prometer a redução dos impostos num prazo máximo de cinquenta anos, criar condições atractivas para o investimento estrangeiro, como o «Prémio do Investidor Camone do Ano» (pago em títulos da dívida pública), e garantir aos investidores que «Portugal é um país amigo» (ideias roubadas ao senhor Portas). É fácil e não custa nada, como se vê. Só falta começar. Nova Aliança, 25 / julho / 2013

A greve dos professores

A conceção1 da prova é a culpada pelos maus resultados, diz Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática. Aparentemente, para um professor de matemática, é possível calcular, a olho nu e com elevado grau de confiança, a existência de diferenças significativas entre duas médias, uma de 47%, outra de 49%. Eu sei que é um preciosismo matemático – algo que não se deve esperar obrigatoriamente de um professor de matemática – mas, é 47% diferente de 49% com provas diferentes e diferentes alunos? De acordo com Lurdes Figueiral, em declarações à TSF (sem link), houve uma preponderância de exercícios de cálculo na prova de matemática, algo que, pelo exagero, prejudicou os resultados. É um problema neste país: cálculos a mais. Este excesso, tão prejudicial para aferir a realidade (quer das contas públicas do país, quer das aprendizagens dos alunos), estraga a possibilidade de conclusões peremptórias através da ferramentas bem mais relevantes que o cálculo: o desejo, a paixão e a certeza conceptual da bondade em tudo o que é justamente belo. Numa coisa Lurdes Figueiral tem razão: as provas aos alunos não são boas para aferir as aprendizagens dos alunos; porém, são excelentes para aferir professores, motivo pelo qual não faltarão movimentos exigindo a sua abolição. Nova Aliança, 7 / julho / 2013

20.6.13

A 'impressão' moderna e a chegada do verão

27 de maio – A história veio nos jornais e é daquelas que oferecem um final feliz. Uma criança foi salva com a construção de um pequeno tubo saído de uma impressora 3D.Um dia farão uma impressora de gente, com alma e muitas dúvidas existenciais. Metade da alma e o dobro das dúvidas. "Serei um original ou uma cópia?", perguntar-se-ão de tempos a tempos, os homens de boa vontade. E o que é que isso interessa? O que importa é ser, existir. Tudo começa como uma brincadeira. Imprimir a ex-mulher para matar saudades. A si próprio para faltar ao emprego. Enquanto um vai trabalhar, o outro fica em casa a ver a bola. Só pode dar mau resultado. A 'sósia' da ex-mulher não será assim tão diferente da original, o mesmo corpo e metade da alma. E a genuína vai sentir ciúmes da cópia, e reclamar direitos de autor. Isso vai custar uma fortuna. E o outro que era eu, igualmente preguiçoso, ou mais ainda porque tem apenas metade da alma, também vai querer seguir os jogos do Sporting e matar saudades da ex-mulher, apesar de nunca ter sido sua. Que complicada será a vida. Estamos melhor assim. Não matamos saudades, mas matamos. Matamos se quisermos, através de uma impressora. O futuro já lá vai, no parágrafo anterior, agora falamos do presente. Não é ficção científica, é a realidade científica e tecnológica, que nos atropela e nos invade de espanto. Nos Estados Unidos, algures no Texas, houve uns neo-cowboys que conseguiram fabricar uma arma, um revólver com ar de Tupperware , que dispara balas de verdade. À medida que as bisnagas se vão parecendo cada vez mais com pistolas, as pistolas parecem-se com bisnagas. Eu vi-a numa reportagem da BBC, está disponível na internet. É o passo mais concreto em direção ao abismo da impressionante tecnologia das impressoras 3D. Claro que a culpa nunca é da tecnologia mas da forma como esta é usada. Para estas impressoras, em concreto, têm sido encontradas as mais louváveis utilidades, em áreas como a medicina dentária. Maquinaria de ponta, altamente evoluída, em prol da saúde e bem-estar. Mas daqui a meia dúzia de anos será comum ter uma impressora 3D em casa. A sua democratização avança a largos passos. Nos Estados Unidos, já se vendem impressoras 3D para uso doméstico com preços a partir de 1500 dólares. Quase todas usam como material uma liga de plástico (também há com outros materias, como chocolate), que é fundida a alta temperatura. A impressora recebe os dados sobre a formatação do objeto através de um programa: os ficheiros podem ser descarregados na internet ou desenhados pelos próprios. Também já há programas que permitem cópias através de fotografias. Caminha-se assim para a pirataria de objetos em larga escala. Já não é apenas a contrafação das fábricas chinesas. Brevemente, poderemos ter clones de objetos feitos em casa. Mas também poderemos fabricar peças absolutamente originais. O homem fabrica-se a si próprio e a preços competitivos. Até faz impressão. 1 de junho – Há que tempos que te não via. Estás mais gordo. Emagreceste quantos quilos? Passaste os cem. Toma cuidado? Tu vais comer isso? Deixei de comer hidratos de carbono. Proteínas só até às seis da tarde. Nem pão, nem batata, nem arroz. Nem massa. Não comas isso, tem um índice elevado de glicemia. Só consigo beber café sem açúcar. Vou entrar no ginásio. Que dieta andas a fazer? Isso, torradas com manteiga. Potássio, não. Cenoura ralada crua e brócolos cozidos sem sal. O melão, quando está maduro, apresenta uma alta concentração de açúcar. Não devias comer isso. Estás mais magra. Votos de um bom fim de semana, sem carnes vermelhas. Abstinência de ameixas. Personal trainer. Onde é que eu vou buscar serotonina? Levo uma vida saudável. Ouvi dizer que ela comeu duzentas calorias a mais. Bem-vindos ao verão. Nova Aliança, 13 / junho / 2013