19.4.13

O monarca

8 de abril – Há para aí uns bastardos na comunicação social que não têm vergonha na cara e continuam a fazer fretes aos amigos e conhecidos. Vão longe os tempos em que o jornalista procurava a independência e a isenção. Hoje, está instalado o compadrio. Querem um bom exemplo? Mário Soares. Alguém que ficará na história pelo papel que teve depois do 25 de abril está a ter um ‘ocaso’ verdadeiramente lamentável. De forma pouco séria, Soares nunca viu nenhuma virtude em nenhum governo que não fosse do seu partido. Muito recentemente, Soares não se distinguiu dos demais capangas socráticos na defesa do chefe. Ante as trapalhadas e mentiras de Eng., o ex-Presidente usou a cassete dos Lellos e Santos Silvas desta vidinha. O alegado "pai da democracia" transformou-se em pai do PS. A alegada dignidade do ‘senador’ revelou a dentola dos jotinhas. Porquê? Para Soares, a democracia é o PS e o PS é a democracia; nesta quase ‘monarquia republicana’ chamada III República. Aliás, naquela cabeça, o regime é o ele mesmo, o regime é o próprio Soares, D. Soares I. Esta presunção de superioridade dinástica subiu de tom após a subida ao poder do actual governo. Para Soares, todos os problemas começaram agora. Numa linguagem arruaceira, Soares tem sugerido um incremento da violência social. Qual miguelista invertido, Soares anda a sonhar há meses com várias Marias da Fonte. E, neste fim-de-semana, passou dos limites quando disse o seguinte sobre Cavaco: "por muito menos do que isto foi D. Carlos morto". Independentemente dos diversos disparates protagonizados pelo Presidente da República, isto é linguagem de taberna, obviamente vergonhosa para um ex-Presidente de uma democracia. Mas, claro, D. Soares I não se sente numa democracia onde ninguém está acima de crítica. D. Soares I julga que está no seu reino, a monarquia republicana onde todos lhe devem respeitinho. Mas o pior é o silêncio dos média e é aqui que os jornalistas bastardos entram. Ao contrário de outros, Soares pode dizer o que quiser. Pode ter atitudes machistas perante eurodeputadas, pode gozar com os contribuintes quando o seu carro é multado, pode refazer à vontade a sua biografia , pode ser um mero apparatchik do PS, pode até acenar com violência política, pode tudo isto porque passa sempre entre os intervalos da chuva. Ele é o Rei, e o Rei, como se sabe, nunca se molha mesmo quando vai nu. Enquanto esteve no poder, D. Soares nunca se molhou porque recebeu sempre um tratamento principesco nas redacções ( leiam a biografia da autoria de Joaquim Vieira ). Agora, depois da reforma, é tratado como um ser inimputável. Ou seja, Mário Soares passou as últimas décadas numa redoma situada acima do bem e do mal. Só falta mesmo a água de malvas. 11 de abril – O tempo que a comunicação social poupa com Soares gasta com os cenários de papel das remodelações. Aí há sempre algo para dizer. Confiram, por favor. Se o novo ministro é do partido, dizer que é um boy, se o novo ministro não é do partido, dizer que não tem experiência política. Se o novo ministro é um académico, dizer que é um teórico, se o novo ministro é um homem de acção, dizer que não tem qualificações para o cargo. Se o novo ministro vai trabalhar fora da sua área, dizer que é um erro de casting, se o novo ministro vai trabalhar na sua área, referir que tem conflito de interesses. Se o novo ministro é jovem, dizer que não tem experiência, se o novo ministro é velho, dizer que não há renovação da classe política. Se o novo ministro nunca trabalhou fora de Portugal, dizer que não tem experiência internacional, se o novo ministro trabalhou fora de Portugal, dizer que é um estrangeirado que não compreende o país. Se o novo ministro vem do próprio governo, dizer que não há renovação do governo, se o novo ministro vem de fora do governo, dizer que levará demasiado tempo a estudar os dossiers. Se o ministro não é substituído, dizer que é uma vergonha para Portugal, se o ministro é substituído, dizer que é a prova que o governo é incapaz de governar e tem de se demitir todo. Se o ministro tem demasiadas pastas a cargo, dizer que não dá conta do recado, se o ministro vir parte das responsabilidades atribuídas a outro, dizer que o estão a esvaziar e que é incompetente 13 de abril - O ministro Nuno Crato foi exemplar no caso Miguel Relvas. E o primeiro-ministro também, reconheça-se, pelo menos a acreditar que disse sempre ao ministro da Educação, como o próprio garantiu, para se investigar o caso até às últimas consequências: "Cumpra a lei", foi a citação de Crato na SIC/Notícias. Se tivesse sido assim no caso da licenciatura de Sócrates - e é preciso terem muita lata para as viúvas, os órfãos e amigos próximos do ex-primeiro-ministro - se atreverem a falar de ética a propósito de Relvas - outros galos cantariam hoje muito mais baixinho. O senhor Mariano Gago terá aprendido alguma coisa? Nova Aliança, 18 / abril / 2013

16.4.13

Grandes leituras

Já lá vai o tempo em que, de quinze em quinze dias, reservava um fim-de-semana para os livros policiais. Ponto prévio: se não gosta de literatura policial, ou se pura e simplesmente nunca leu literatura policial, pode continuar a ler este texto. De tempos a tempos, volto ao meu autor preferido: Rex Stout. Os seus livros valem pela literatura e não pelas histórias neles narradas. Experimente levar alguns livros consigo e verá como encontrou o melhor meio de aplacar mais de um mês de insónias com a figura, as investigações, os tiques, as obsessões e as vitórias fulgurantes de Nero Wolfe. Li-os praticamente todos há alguns anos, mas perdi uns e emprestei outros, deixei alguns em lugares que já não existem. Não comecei com ‘Picada Mortal’ mas com ‘A Caixa Vermelha’ e os mais lidos, até hoje, foram ‘A Montanha Negra’ e ‘Terror a Prestações’. Nero Wolfe pesa cerca de 150 quilos, nunca sai de casa em investigação, vive numa casa na Rua 35, NY; o seu tempo divide-se entre as refeições e a cozinha, a leitura e as orquídeas; o resto do tempo é dedicado ao trabalho de detective e ao consumo de cerveja. Sair de casa, praticamente nunca – e para trabalhar, impossível. Das 9 às 11 e das 16 às 18, orquídeas. As histórias são narradas por Archie Goodwin, o seu secretário particular e detective-adjunto. O que acontece em ‘A Montanha Negra’ e em ‘Terror a Prestações’ é que Nero Wolfe sai de casa. Não é a única vez, há excepções garantidas, desde ‘Caçada a Mr. X’ a ‘Gambito’. Mas em ‘A Montanha Negra’, Wolfe vai até à sua natal Montenegro, na então Jugoslávia, para perseguir os assassinos do seu amigo Marko Vukcic; e em ‘Terror a Prestações’ é obrigado a sair de casa para perseguir e eliminar o seu inimigo fatal, ‘X’, aliás Arnold Zack, o génio do mal que lhe telefonara em três livros anteriores e que em ‘Caçada a Mr. X’ lhe mandara destruir as estufas de orquídeas. É sacrilégio, para qualquer leitor de Stout (que não se dedicou apenas a Nero Wolfe), catalogar os seus hábitos e peculiaridades –desde a sua aversão à "histeria feminina" (‘alguma’ misoginia, decerto), à incompreensível obsessão por ovas de sável, da relação com o sargento Cramer à paixão pela cerveja, da sua cultura enciclopédica à paixão pelo amarelo. Isto porque é inadmissível que não sejam conhecidos. Archie Goodwin (há um certo número de traduções daninhas em que eles se tratam por ‘tu’; nunca podia ter acontecido) , o seu narrador natural do Ohio, merece também cuidado, não só pela sua relação com a milionária Lily Rowan ou pela paixão pelo basebol, mas também por ser um janota americano dos anos cinquenta que assiste com paciência e arrogância o génio de Wolfe – é o próprio Wolfe que se assume como o mais talentoso de todos os detectives privados do universo (com a excepção de um, francês, que nomeia ou a quem recorre ocasionalmente). Nas páginas dos livros de Rex Stout encontramos os momentos mais significativos da história recente dos Estados Unidos, o que faz deles não só uma leitura apaixonante literariamente, mas também histórica e sociologicamente. Neste caso, estamos perante os problemas da segregação racial, os preconceitos mais profundos e dificeis de erradicar. Como sempre, as opiniões de Nero Wolfe são interessantes, afinal estamos perante um leitor infatigável e uma pessoa superiormente culta. Uma palavra final relativamente à edição portuguesa. Os livros do Rex Stout costumam estar miseravelmente traduzidos, os livros costumam estar cheios de gralhas tipográficas e a composição parece ter sido feita no intervalo do almoço e não no período normal de trabalho de um profissional. Neste caso e com o tempo, as coisas melhoraram qualquer coisa. Rex Stout merece-o. Ele não é apenas mais um autor de policiais de cordel: é um grande escritor, que merece a melhor tradução para que não se percam os seus imensos recursos literários. Não se incomodem por mim. Tenho noitadas para alguns meses. Experimentem. Nova Aliança, 31 / outubro / 2012

Os filhos do zip-zip, Óscar Lopes e Natália Correia

25 de março - Os Filhos do Zip-Zip’ (Esfera dos Livros), de Helena Matos, chegou às livrarias. Num país sem memória, ou que a despreza e frequentemente adultera, Helena Matos evoca, através de recortes de jornais, fotografias e publicidade da época, a transição portuguesa para os nossos anos setenta. Há gente que se lembra de como o ‘Zip-Zip’ marcou a sua vida – e gente que não se recorda do programa de televisão de Raúl Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz. Mas o país está lá, no fundo das recordações: guerra colonial, futebol, Vilar de Mouros (com Elton John em 1971), cigarros Kart, a fabulosa Dyane 6, Tulicreme, drogas, Procol Harum, J. Pimenta, ‘Simplesmente Maria’ e os bonecos do ‘Riso Amarelo’. Para alguns, esta evocação é pura nostalgia; na verdade, é o ‘Portugal futuro’ que já ali aparece desenhado. Nem de propósito, atravessamos uma época especial: os filhos do Zip-Zip estão a abandonar o poder. Façam contas. 29 de março - Depois de, em 2011, ter publicado as cartas trocadas entre António José Saraiva e Luísa Dacosta, a Gradiva lançará muito em breve um volume reunindo a correspondência pessoal entre Saraiva e Teresa Rita Lopes. Boa ideia. O que tem isto a ver com Óscar Lopes? Praticamente tudo. Num mundo dominado pelo interesse no espetáculo, com a sua velocidade e indigência, o nome de Óscar Lopes está naturalmente confinado ao círculo da gente com memória, apesar de ter marcado várias gerações com os seus livros. Lopes (leia-se o magnífico e comovente poema de Vasco Graça Moura sobre “um senhor de Matosinhos”) foi um sábio. O seu trabalho circulava entre a literatura, a estética e a linguística, mas convocava toda a sua experiência de contacto com outros saberes (até a matemática); isso fez dele um dos nossos grandes professores, ocupação hoje caída em descrédito. A monumental História da Literatura Portuguesa, que escreveu com António José Saraiva, foi uma das peças da sua grande intuição e do seu edifício harmonioso – e toda a sua obra é um combate pela cultura (veja-se este título, A Busca de Sentido), contra a ignorância, a leviandade e a falta de inteligência. É bastante. 31 de março - Passaram vinte anos sobre a morte de Natália Correia. Não vale a pena praticar o exercício do anacronismo – por exemplo, pensar no que hoje diria Natália sobre o nosso país. A autora de ‘Não Percas a Rosa’ disse-o em vida, na época, e com aquela veemência que nunca conseguiu fixá-la a uma redoma ideológica, de janelas fechadas para o exterior. Pessoas como ela fazem falta porque nunca podem ser substituídas; nem a sua poesia, nem os seus textos de intervenção mais imediata, nem o seu sarcasmo, nem a sua tentação de desancar a pátria e, sobretudo, os hierofantes empalhados da pequena moral. Por muito que se procure “uma forma de ser Natália Correia” é impossível encontrá-la porque ela foi tão plural e desconcertante que encaderná-la num catálogo é uma tarefa inútil. Os tempos não vão para pessoas assim. Para homenageá-la, vamos aos seus livros. É o que resta, no fim de contas. Nova Aliança, 4 / abril / 2013

Os 'nossos' banqueiros

4 de março – Por que razão temos uma boca e dois ouvidos? Provavelmente para ouvirmos mais e falarmos menos. De forma cada vez mais frequente, verifico a pertinência deste ‘conselho’. Vejamos três casos recentes. "Se não sabem o que fazer, ponham metade dos desempregados a abrir buracos e a outra metade a tapá-los. O que interessa é que estejam ocupados". É esta a proposta de João Salgueiro - banqueiro e ex-ministro, responsável também pela situação a que chegámos - para "oferecer às pessoas uma oportunidade de trabalhar, em vez de ficarem a vegetar, marginalizadas". Pode ser na construção civil ou nas matas, tanto faz. O importante é que ‘não chateiem’ ( aspas minhas ). Repare-se que o senhor não propõe trabalho desqualificado para garantir emprego para todos. Que não defendeu trabalho inútil para criar emprego pago que faça a economia andar. O objetivo é só este: ocupar as pessoas, como se de adolescentes rebeldes e em risco se tratassem. Entretanto, Filipe Pinhal, antigo presidente do BCP, saído da instituição bancária por causa de alguns escândalos relacionados com off-shores e manipulação de ações em bolsa, que recebe uma pensão de 70 mil euros de um banco em estado de coma, anunciou que vai criar o Movimento de Reformados Indignados. Será, pelo menos nos montantes da sua reforma, um movimento de peso. Mas o facto de fazer este anúncio diz qualquer coisa: que o senhor está completamente a leste do que a esmagadora maioria dos reformados (da banca e não só) pensará sobre ele e a sua reforma. Se juntarmos a estes dois as conhecidas e repetidas declarações de Fernando Ulrich (a quem alguns chamam ‘ultrarico’ e que queria os desempregados a trabalhar à borla para o seu banco), são três bons retratos de um certo grupo social: essa nova classe de gestores financeiros, que sugam os bancos que por sua vez sugam os clientes e os cofres dos Estados. Trata-se de gente que enriqueceu com as propostas do dinheiro fácil e criadores de um capitalismo não produtivo e economicamente inviável. No seu mundo virtual, deixaram de ser capazes de distinguir o certo do errado, o razoável do impensável. Nada os liga à sociedade. Quando comparados com os velhos capitalistas industriais (ou até com os banqueiros propriamente ditos), estes gestores são uma subespécie sem consciência política, social e moral de qualquer espécie. Nem empresários, nem assalariados, nem capatazes. São uma coisa híbrida que cresceu na lama da economia. Ao contrário do velho capitalista industrial, o grande gestor das instituições financeiras não segue uma ética política social própria. Não pode sequer defender a sua conduta usando o argumento da criação de riqueza ou de emprego. Nem sequer foi, em geral, criador das instituições que dirige. Não tem obra e não produz. Está apenas de passagem. É, resumindo, de todos os pontos de vista, um parasita. Os limites aos bónus dos gestores da banca, definidos pela União Europeia, são o primeiro sinal de uma revolta cívica contra esta nova espécie de marginal económico. E que terminará com uma pergunta que até já nos Estados Unidos se faz (e no passado se fez muitas vezes): pode toda a economia ficar refém de uma minúscula elite financeira, que põe em perigo os Estados, as economias e até a sobrevivência do próprio capitalismo? A resposta parece muito simples: não é possível permitir que um grupo que claramente, pelo excesso de poder que conquistou, já perdeu a noção da realidade, sugue todos os recursos, públicos e privados. E que se for necessário o Estado deve optar por uma posição de força. Que pode ir de uma regulação mais musculada até à nacionalização efetiva da banca intervencionada (não nacionalizando apenas os prejuízos), passando sempre por esta ideia: nos tempos que vivemos, os Estados não podem deixar de controlar a atividade financeira. Não é ideologia. É uma questão de sobrevivência. As crises fazem quase sempre estalar o verniz em que a vida em sociedade se sustenta. Com a banca completamente dependente do controlo político que mantém sobre os governos e as instituições públicas (numa verdadeira economia de mercado, grande parte dos bancos europeus já teriam falido), os homens que realmente governam o mundo e o País passaram a ter rosto e voz. Pelos seus atos recentes, percebíamos que estávamos perante sociopatas. As suas palavras tresloucadas e tontas apenas o confirmam. Nova Aliança, 20 / março / 2013

Tolerância religiosa

26 de fevereiro - Um pedaço de papiro levou uma estudiosa americana a dizer que Jesus foi casado. O papiro, provavelmente do século 4 d.C., seria parte de um evangelho apócrifo e prova substancial de que Jesus não teve vida celibatária. Verdade? Mentira? Acompanhei as notícias com curiosidade mediana. Mas o que mais me espantou nessa história sobre a alegada mulher de Jesus foi a tranquilidade com que o Ocidente lidou com o assunto. Ao contrário do que por vezes sucede, não vi mortos nem vi feridos. Não vi embaixadas atacadas e destruídas. Os cristãos não vieram para a rua pedir a morte da professora Karen King pelas suas "blasfémias" contra Jesus. A universidade de Harvard não precisou de reforço policial para evitar um massacre. A descoberta foi apresentada em Roma, discutida entre os eruditos e posteriormente desacreditada. Ou não. Terá isso algum interesse? Talvez não. É até provável que amanhã surja um novo pedaço de papiro com uma nova mulher no enquadramento. Ninguém mata ou morre por causa disso. Se, por mera hipótese, houvesse uma descoberta semelhante e igualmente polémica sobre a vida do Profeta Maomé, não é preciso descrever o cortejo de sangue que viria a seguir. Um cortejo que, admito, já foi nosso e bem nosso: há 500 anos atrás, o lugar da professora Karen King não seria na universidade de Harvard. Seria na fogueira da Inquisição. Mas passaram 500 anos. O Cristianismo teve a sua Reforma e Contra-Reforma; confrontou-se com o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. Depois de todas as guerras religiosas que devastaram a Europa moderna em nome da fé verdadeira, entendeu-se que a "fé verdadeira" é um assunto dos crentes, não do Estado. A liberdade de culto passou a ser uma liberdade inegociável na maioria das sociedades ocidentais - a promessa de que ninguém seria perseguido por professar determinado credo. Mas a liberdade de pensamento e expressão também --a promessa de que ninguém seria perseguido por criticar ou ridicularizar a fé de terceiros. Infelizmente, esta conquista secular foi esquecida pela justiça brasileira, que determinou que o Google retirasse do Youtube-Brasil o filme "A inocência dos muçulmanos", a pedido da União Nacional Islâmica. Porque o filme ofende os muçulmanos e alimentou atos de violência extrema em todo o Médio Oriente? Acredito que sim. Como acredito que milhares de outros filmes, ou livros, ou quadros, ou peças de teatro, ou anedotas de café, ou meros comportamentos quotidianos ofendam muitos muçulmanos. A questão, porém, não é essa. A questão está em saber como é possível que um tribunal de um estado laico possa exercer censura em nome de uma religião particular. O filósofo francês Pascal Bruckner ajuda a entender o gesto. Sobretudo com o seu "A Tirania da Penitência - Ensaio sobre o masoquismo ocidental" (Difel). O título e o subtítulo dizem tudo: o Ocidente vive hoje uma orgia de masoquismo que o faz ter repulsa de si próprio, dos seus valores fundamentais, das suas liberdades inegociáveis. E como explicar essa quebra de confiança, esse torpor niilista e relativista? Pelo passado. Pela forma neurótica como o Ocidente retrata o seu passado. Quem somos nós para afirmar a importância dos valores ocidentais quando o Ocidente produziu incontáveis crimes - o genocídio de populações indígenas no Novo Mundo; o tráfico de escravos; o comunismo e o nazismo; o Gulag e o Holocausto? Curiosamente, o Ocidente que gosta de se autoflagelar pelos crimes do passado é também o mesmo que se esquece da sua própria capacidade para os superar e reprimir. Como afirma Pascal Bruckner, a Inquisição existiu; mas ela está diretamente ligada ao Iluminismo. A escravatura existiu; mas ela está diretamente ligada aos movimentos abolicionistas. O comunismo e o nazismo existiram; mas ambos estão diretamente ligados ao triunfo das democracias liberais no século 20. A singularidade do Ocidente não está na criação de monstros --todas as civilizações o fizeram e fazem. A singularidade está na forma como foi capaz de gerar as armas, teóricas ou bélicas, para enfrentar e derrotar esses monstros. Essa capacidade deveria ser causa de orgulho e confiança --e um imperativo suplementar para que o Ocidente defendesse os valores positivos em que acredita: a separação de poderes; a liberdade de pensamento e expressão; a tolerância perante diferentes concepções religiosas ou de vida; e etc. etc. Fatalmente, não há orgulho nem confiança. Apenas uma vontade psicótica de alimentar um certo nojo-de-nós-próprios, ou seja, uma náusea profunda pelos direitos fundamentais que foram conquistados depois de sangue, suor e lágrimas, como dizia Churchill num discurso célebre. A pergunta, formulada por Pascal Bruckner, é inevitável: como podemos ser respeitados pelos outros se já não somos capazes de nos respeitarmos a nós próprios? Esta será a pergunta que irá definir o futuro de uma civilização. Nova Aliança, 6 / março / 2013

Os animais perigosos, Funcionários e funcionários

2 de fevereiro - Mandam as regras que um animal doméstico que se demonstre perigoso ao ponto de pôr em risco a vida humana tem de ser abatido. Ora recentemente, um cão de uma raça perigosa matou uma criança de 18 meses. Por isso, foi decidido o seu abate. Acontece que 11 mil pessoas assinaram uma petição para impedir uma decisão de evidente bom senso. Dizem os subscritores desta petição: "um cão que nunca fez mal durante oito anos e atacou é porque teve algum motivo". Vamos ver se nos entendemos: Os motivos para um animal matar uma criança são irrelevantes, porque as crianças não podem correr risco de vida, sejam lá qual forem os motivos. A decisão de abater um cão não é uma forma de fazer justiça, mas de segurança. Escrever que "a criança e o cão são os dois inocentes desta história" é pornográfico. Crianças e cães, para os humanos, não estão no mesmo nível. Nenhum animal é abatido por ser "culpado" de nada. Até porque tal conceito é inaplicável a não humanos. Um animal doméstico, se se revelar perigoso para os humanos, não pode conviver com eles. É apenas disto que se trata e não de qualquer ato de justiça. Os donos e pais foram negligentes? Isso sim, resolve-se na justiça. O abate do cão é outra coisa: um cão que mata uma criança com quem convive deixou de ser um animal doméstico. Porque o que o torna doméstico é ser controlável por humanos. Como não pode ser devolvido à vida selvagem é abatido. Não por justiça, mas por segurança. Diz a petição: "Se não se abatem pessoas por cometerem erros, por roubarem, por matarem...então também não o façam com os animais!" A comparação é de tal forma grotesca que chega a ser desumana. Resumo assim: a vida do humano mais asqueroso vale mais do que a vida do animal doméstico de que mais gostamos. Sempre. 8 de fevereiro - O senhor José trabalha há 35 anos na mesma repartição. Funcionário exemplar, uma gripe atirou-o para a cama pela primeira vez na vida. O chefe exigiu-lhe o atestado de doença, prova de como não estava a aldrabar o Estado. De nada lhe valeu a honestidade que sempre provou ao longo dos anos. Ou apresentava o papel ou era castigado no seu vencimento. A senhora Glória é deputada.Há dias foi apanhada a conduzir alcoolizada, com uma taxa bem superior ao permitido por lei. Nos dias seguintes não pôs os pés no trabalho, a Assembleia da República. Atribuiu as faltas a uma doença. O Parlamento já veio dizer que dispensa o seu atestado, visto o regime de faltas ao plenário definir que "a palavra do deputado faz fé, não carecendo por isso de comprovativos adicionais." Um exemplo de como a expressão ‘ou há democracia ou comem todos’ está longe de fazer qualquer sentido. Couto dos Santos, presidente do Conselho de Administração da Assembleia, diz não ser necessário obrigar os parlamentares a apresentar atestado, porque ( não se riam muito, por favor… )"um deputado é responsável pelos seus atos" – não o somos todos? – e, agora vêm as gargalhadas sonoras, é preciso ter "confiança em quem elegemos". 12 de fevereiro - Lembram-se de quando a democracia iluminava Portugal e um funcionário público podia ser saneado por violar os limites admissíveis da opinião? Vá lá, não se mostrem esquecidos. Não foi há muito tempo. Em 2007, por exemplo, um professor viu-se afastado do cargo na Direção Regional de Educação do Norte (DREN) apenas porque partilhara com um colega uma anedota sobre a licenciatura do Enormíssimo Chefe, ironicamente conhecido por "engenheiro" José Sócrates. A diretora da instituição, pessoa de’ respeito’ e pouco apreciadora de comédia e insubordinação, abriu um processo disciplinar ao indivíduo, e o indivíduo, Fernando Charrua de sua graça (que saiu cara), acabou na rua. Agora, um tribunal atribuiu ao prof. Charrua razão e uma indemnização de 12 mil euros, a pagar pelo Estado e não, curiosamente, pela então diretora, uma zelosa criatura chamada Margarida Moreira. O próprio prof. Charrua considera absurdo os cidadãos patrocinarem, cito, "os desmandos e ilicitudes dos agentes políticos" enquanto estes permanecem impunes. Infelizmente, o princípio não se aplica só a pequenas compensações face à prepotência exibida por uma serviçal. Também o poder a sério é causador de inúmeros desmandos e ilicitudes sem que os seus custos sejam imputados aos responsáveis diretos. Por regra, a fatura termina sempre nos nossos bolsos, é imensamente superior a uma dúzia de milhares de euros e, sob diversas perspectivas, justifica o momento que atravessamos. Na medida em que os que arruinaram isto e os que apanham com as consequências da ruína não coincidem, o "caso" Charrua e as suas derivações constituem um rigoroso símbolo da austeridade vigente. Felizmente os tempos são outros e nem tudo é mau. Segundo especialistas vários, o Governo actual é "neoliberal", reaccionário, inconstitucional, fascista e o que calhar, mas pelo menos os professores andam por aí a aliviar-se de ofensas ao primeiro-ministro sem que ninguém seja por isso demitido. E quem diz a docência, diz o povo em geral, hoje livre de insultar os senhores que mandam e, se assim lhe aprouver, de suspirar pelo curioso conceito de liberdade dos senhores que antes mandavam. Nova Aliança, 21 / fevereiro / 2013

Balanço de 2012, Votos para 2013

2 de janeiro - As coisas não mudam. No final do ano é costume formularmos votos de Bom Ano Novo. É normal que as pessoas desejem umas às outras o melhor para as suas vidas no ano que vai entrar, que tudo aconteça de acordo com as melhores expetativas, que os seus desejos se realizem e não faltam os votos de saúde, de muitas alegrias e felicidades. Todos sabemos como são especialmente importantes as palavras de alento e de esperança de mudança para as pessoas apanhadas pela famigerada ‘crise’, muitas delas sem disporem de qualquer rendimento, que procuram trabalho mas não encontram resposta positiva, e que se confrontam diariamente com dificuldades financeiras para resolver necessidades tão essenciais como a habitação ou a escola dos filhos. O agravamento dos sacrifícios em 2013 vai especialmente pesar sobre todos aqueles que estão no desemprego e que vivem com carências económicas significativas. Perante isto, o que desejar para 2013? Que o país cresça em consciência social e que, como tal, governo, políticos, empresas e cidadãos ganhem maior sensibilidade social, sejam mais responsáveis e estejam mais disponíveis para contribuir para o reforço da solidariedade social, seja no plano político, seja no plano institucional e individual. Esta esperança funda-se na observação do ano de 2012 que não deve deixar ninguém indiferente perante o sofrimento de muitos portugueses. Justamente num momento em que a taxa de desemprego atinge níveis muito graves e em que a pobreza está a crescer a partir de níveis já de si elevados esperava-se do Estado Social uma maior capacidade na protecção das pessoas e famílias atingidas por estas chagas sociais. O Estado Social falhou quando era mais necessário, para quem dele necessita. A situação é de grande emergência financeira, mas passou a ser também de grande emergência social. Desejo, pois, o maior cuidado nos cortes anunciados de 4,4 mil milhões de euros na despesa pública, que sejam procuradas e encontradas alternativas que não afectem os níveis de rendimento já de si muito baixos e precários da maioria da população e que não reduzam os níveis de protecção social já de si fragilizados. 7 de janeiro - Escolho o povo português como figura de 2012. Na verdade, quem mais poderia ser? Em 2012, a sociedade civil explodiu no espaço público e soube usar a exposição mediática. Agiu fora dos partidos, que os cidadãos sentem actuar de acordo com interesses próprios, não os seus. Em 15 de Setembro, os manifestantes renegaram o enquadramento partidário, mas não originaram movimentos sociais. O grito extinguiu-se. Mais importantes foram erupções perenes de sociedade civil. Perante um sistema irreformável, os cidadãos defendem-se no espaço público, em novas formas de acção e com novos protagonistas. Destaco Paulo Morais. É uma voz activa, sólida, factual, avessa à demagogia. Expõe processos legais e ilegais de corrupção, promiscuidades de deputados e interesses económicos. Desmonta o sistema. A TV deu espaço a outras vozes, como Tiago Caiado Guerreiro, Carlos Moreno, Domingos Azevedo e Medina Carreira. O êxito do programa em que participa deve-se precisamente à denúncia do sistema. Como neste nada muda, havia tendência à repetição, pelo que o programa acrescentou convidados anti-sistémicos, para enriquecer o debate e quebrar a monotonia. Aqueles protagonistas e outras manifestações da sociedade civil, como os estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos ou o blogue Má Despesa Pública, abrem janelas que abalam a novilíngua de políticos e seus agentes nos media. Estes, todavia, ainda dominam, pois os canais de TV também pertencem ao sistema: apenas deixam entrar um pouco de ar fresco contra a demagogia, a retórica oca e deslocada da realidade de que muitos portugueses, na rua, nos espaços de liberdade na Internet e um pouco nos media tradicionais, revelam estar saturados. Nova Aliança, 10 / janeiro / 2013