30.1.15

"Os Gatos não têm vertigens"

16 de dezembro –Se puderem não deixem de ir ao cinema ver o último filme de António Pedro Vasconcelos “Os Gatos Não Têm Vertigens”. O que mais prende no filme é a expressão explícita e dolorosamente real da crueldade que a sociedade actual dirige à velhice O filme - reconheça-se - fala de assuntos e sentimentos intelectualmente pouco elaborados. Exibe a banal, mas revoltante, miséria de uma sociedade marginal e da juventude urbana que ela gerou: uma juventude sem passado, sem presente e, provavelmente, sem futuro. Mostra, por outro lado, a atitude confiante de uma mulher mais velha, ainda militante de ideias antigas, mas hoje acintosamente incómodas: uma mulher de uma geração capaz de actos de uma generosidade transformadora e não apenas conformada e conivente com a injustiça reinante. Não falo já da situação económica da velhice mais desprotegida, que nele apenas aparece retratada em personagens laterais. Falo da velhice enquanto circunstância de vida de muita gente de todas as condições sociais. O que o filme denuncia é a atomização e a desumanidade da vida das pessoas engendrada por uma sociedade frenética, desequilibrada, doente e doentia, e muitas vezes amoral, que dificulta a comunicação dos mais velhos com os mais novos, dos filhos com os pais, enfim, das pessoas, umas com a s outras. Transmite-nos, de choque, uma certa linguagem juvenil, que rebenta direta na nossa cara - e não só por causa do magnífico som do filme - mas que só espanta quem, porventura, não usa transportes públicos. Conta-nos, na verdade, uma história com princípio, meio e fim que, em vez de nos deixar desesperados e sem rumo, contém em si mesma o fermento da esperança na humanidade. A "coisificação" das pessoas, a tentativa de as tornar descartáveis - desprovidas de alma e sentimentos - não é, sabemos, um fenómeno inteiramente recente ou original. Em todo o caso, apesar de todas as vicissitudes, a humanidade tinha vindo, nos últimos séculos, a conseguir amaciar um pouco as esquinas mais afiadas da sua maneira de viver junta, da sua convivialidade. Ora, o que hoje nos querem fazer crer é, precisamente, que esse caminho de humanização das relações sociais deve ser interrompido - e pode mesmo ter de regredir - em nome de um almejado, mas sempre distante, progresso económico. Só que, por fim, ninguém tem a amabilidade de nos dizer quem beneficiará com ele: serão os velhos, os novos, a maioria, ou apenas uma cada vez mais pequena minoria? O que constatamos é que o tal progresso económico não tende já a tornar menos agreste a vida dos muitos - designadamente a dos mais velhos - e aí reside o paradoxo atroz desse discurso. E, todavia, têm sido esses velhos que, com as suas pequenas reformas, com o pouco que lhes resta da sua estabilidade material e emocional, têm conseguido acudir aos sobressaltos diários dos mais novos, garantindo uma réstia de humanidade à vida social. Só que esses velhos têm alma, têm vida, têm aspirações e esperanças próprias e não podem ser tratados apenas como caixa de previdência dos mais novos, e só enquanto como tal puderem funcionar. A humanização da vida pode, se todos quisermos, continuar a ser um sonho e também uma realidade que construímos diariamente. Não lhe criem falsos obstáculos. Os gatos podem não ter vertigens: os homens sim, mas com coragem, podem vencê-las. Este grande filme ajuda-nos a isso. Nova Aliança, 24 / dezembro / 2014

Os culpados

Passos Coelho é suspeito de ter metido umas facturas de almoços numa ONG há vinte anos. Sócrates é acusado ser corrupto enquanto primeiro-ministro. Para os mesmos comentadores o caso tecnoforma revela “falta de carácter de Passos Coelho”. O caso Sócrates revela “um problema de regime do país”. Os mesmos comentadores. Não há conversa sobre Sócrates que não acabe com alguém a utilizar a expressão “é bem-feito”. Na taberna ou na consultora por igual. É bem-feito por tudo o que fez ao país. É bem-feito porque os políticos deviam ser todos presos. É bem-feito porque o gajo merece. O bem-feito é vingança. Não é justiça. Querem prender os verdadeiros responsáveis pelo estado miserável a que o país chegou? Prendam os dois milhões de portugueses que votaram em Sócrates. Prendam os outros oito milhões que abdicaram do seu juízo crítico e preferiram viver o conto de fadas. Prendam todos os dez milhões de portugueses que continuam a queixar-se que “isto está tudo mal” mas depois não se levantam do sofá para fazer alguma coisa. E mais os outros que se queixam que é preciso “fazer alguma coisa” mas depois não deixam que se faça nada. Votar é uma responsabilidade. Só depois é um direito. Sócrates até pode ser culpado de tudo. Mas a responsabilidade não é dele. É nossa. É que neste país extraordinário continuamos a preferir ser mandados que a fazer qualquer coisa que nos possa responsabilizar. Adoramos ser mandados. Do senhor que fala alto dizemos que é um líder carismático. Do senhor que faz sem pensar dizemos que é um lutador. Do senhor que não tem medo de tomar decisões (mesmo as más) dizemos que é um predestinado. Preferimos ser enganados a que alguém nos chateie com a verdade. Preferimos delegar a responsabilidade das nossas vidinhas ao estado e aos outros. Somos assim. Uns palermas. Centenários palermas. E quando a coisa corre mal explicamos no café que é bem-feito. É culpado. Culpado. Na melhor lógica do "rouba mas faz" Sócrates é culpado não do roubo mas de ter roubado sem fazer. É bem-feito? Bem-feito para quem? Saber que um homem está preso sem ter sido julgado ajuda em quê? Há uns anos prenderam preventivamente um primo meu que matou o pai enquanto ouvia uma canção dos The Doors. Isto alegadamente, já que ninguém conseguiu encontrar o álbum. Bem, prenderam o meu primo porque havia risco de fuga, aliás confirmado por uma das moças que trabalhava para ele no bar selecto que tinha para os lados de Quintanilha; risco de fuga associado a uma ideia fixa que ele tinha desde pequenino, que eu lembro-me bem de ele o dizer já quando incendiávamos cães vadios motivados pelo excesso de tempo livre quando a escola era só de manhã e o professor não nos escolhia para explicações individualizadas ao colo durante a tarde, que consistia em dormir com a mãe sem o pai estar ali a incomodar, visto que era um senhor muito peludo. Foi preso preventivamente e, inadvertidamente, acabou por ser acusado de matar um guarda prisional, que apesar da mania de dizer “graças a Deus” por tudo e por nada, até era boa pessoa mas desastrada, já que tropeçou no pé do meu primo e caiu na bigorna guarnecida com picos em chamas esquecida das filmagens de um filme snuff que o meu primo tinha rodado no pequeno-almoço comunal anterior. O meu primo nem nunca foi pessoa particularmente violenta, mesmo nos combates organizados entre claques de futebol, uma actividade recreativa como qualquer outra das patrocinadas pela junta de freguesia e que acabou por lhe valer a alcunha de Triturador; como dizia, não é violento, é só feitio, já que é um tipo assim para o aguerrido, combativo, mas um doce de pessoa com um sentido de humor muito corrosivo, como aquela suástica tatuada na testa demonstra a quem conhece o que lhe vai no coração. Nós bem tentamos, apelamos, escrevemos muitos artigos e até conseguimos demonstrar aos vizinhos que havia uma agenda escondida na justiça e que esta consistia em usar o caso mediático do meu primo para ocultar a bandalheira que havia no quiosque da Dona Fernanda correspondendo ao tráfico de cromos contrafeitos do Euro2004. Essa vergonha e aquele caso do Arménio que continuava presidente do rancho folclórico quando toda a gente sabia que o Arménio tinha comprado cromos no quiosque para a caderneta da filha. Isso não queriam eles que se andasse a divulgar, por isso incriminaram o meu primo, só porque ele bebeu o sangue do pai, uma prática comum em vampirismo, que, como se sabe, não é crime. E a necrofilia também não é crime, o guarda já estava morto e estava, que diferença fazia esperar mais um bocadinho para embalsamar o corpo? O meu primo foi até considerado o Nelson Mandela de Moimenta, na luta pela liberdade e justiça num país dominado pelos lóbis dos poderosos como o Arménio, que por ter três vacas já se acha mais importante do que as pessoas que têm que ganhar a vida a alugar gajas num bar. É por isso que eu não acredito na justiça e acho que o regime está podre. Nova Aliança, 11 / dezembro / 2014

A prisão

25 de novembro - “Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade.” Sócrates, o verdadeiro. Acompanhar a actualidade tem as suas vicissitudes. “Não se comenta processos judiciais em curso.” “Não se deve incorrer em juízos precipitados.” “É preciso aguardar que a Justiça siga o seu rumo. “ “Há que levar a sério a separação de poderes.” “ Esta situação é de uma gravidade tremenda.” “ Nenhum indivíduo está acima da lei.” “Todos somos inocentes até prova em contrário.” “O essencial é apurar a verdade.” “Esperemos que o caso esteja muito bem fundamentado.” “Talvez a detenção pública vise humilhar o detido.” “É possível que o DCIAP exagere nas recentes investigações.” “No fim de contas, é o Estado de direito que será julgado.” Etc. Já chega de banalidades? Disse-o aqui muitas vezes e as reacções foram diversas. Uns diziam: “Continue, não tenha medo, ele é ainda pior do que isso.” Outros pediam: “Não siga por esse caminho, o local não é o mais apropriado”. Durante muitos anos muita gente não quis ver, não quis ouvir, não quis ler, recusou tomar conhecimento. Sócrates estava acima disso. Sócrates não tolerava dúvidas. As coisas mudaram. Com algumas dúvidas e confusões. Por exemplo: receber luvas, favorecer este ou aquele, traficar influências, realizar negócios ruinosos para o contribuinte, isso é o regime. Mas ser investigado, detido ou condenado, isso é a crise do regime. Ora, se compreendermos bem tal raciocínio a ideia será: a justiça põe em causa o regime. Logo: salvem o regime: acabem com a justiça. Se essa mesma justiça conseguir provar todas as acusações de que Sócrates é alvo, então há alguns assuntos que devem ser esclarecidos. A saber: como é que a Sovenco, a Progitap, a Resin, os Magalhães, a Cova da Beira, o Siresp, a licenciatura, as casas da Covilhã, o Freeport, o Taguspark, os trinta mil exemplares comprados da sua tese, para não falar já da vida faustosa em Paris num apartamento de três milhões de euros, nunca mereceram alegadamente um total empenho dos poderes justiciários da altura? Que intervenção tiveram os Pintos Monteiros, os Noronhas do Nascimento e as Cândidas Almeidas no rápido apagamento das escutas ao cavalheiro? Convém não esquecer, nesta sociedade líquida de que fala Zygmunt Bauman, os pruridos éticos sempre tão rápidos a surgir quando se fala da Tecnoforma, de Duarte Lima, ou de qualquer outro caso em que o protagonista é de uma cor política da nossa. Agora que surgem no novelo das notícias o Grupo Lena e o alegado engenheiro ( e é bom não esquecer as suas ligações de vários ramos à cidade ), as pessoas embatucam com uma lágrima no canto do olho. Cegos na sua crença, não querem saber se Sócrates é ou não culpado. Mais preocupados com o como do que com o porquê, é a forma como o prenderam. E repetem várias vezes: “às 22h30 e até houve tempo para uma câmara captar uma imagem duvidosa de um veículo qualquer numa rua perto da uma da manhã.” É para eles que dirijo as minhas últimas palavras. Depois do que se passou nos últimos dias, do que já sabemos sobre os contornos do processo e das acusações, do que imaginamos mas ainda não sabemos, a pergunta que muitos têm de intimamente fazer é “como foi possível?”, “como é que acreditei?” Sócrates não é ainda culpado de nenhum crime de corrupção ou branqueamento de capitais. Mas mesmo que o venha a ser convém a todos que não seja apagado do seu legado aquilo que mais prejudicou o país: o conjunto de decisões políticas legais que tomou nos seus 6 anos de governo. Nova Aliança, 28 / novembro / 2014

A Milú e as gravações para uso privado

10 de outubro - Nos dias que se seguiram à sua condenação, ouvi Maria de Lurdes Rodrigues, com aquele ar indignado que certos políticos julgam passar por uma real legitimação, dizer que a decisão do tribunal que a condenou significa que, no futuro, todos os ministros e secretários de Estado podem vir a ser obrigados a justificar cada contratação que façam por ajuste directo. Sinceramente, fiquei pasmado: foi preciso consentirmos, coletivamente, na degradação da coisa pública e das funções estatais para que um político, ou alguém que teve responsabilidades no aparelho de Estado, encontrar motivos de escândalo no facto de poder ser chamado a prestar contas relativamente à forma como gere os dinheiros e os recursos públicos. Só mesmo políticos que se habituaram a tratar o Estado como uma coutada privada podem pôr um ar de donzelas ofendidas ao serem confrontados com semelhante exigência. É curioso que Maria de Lurdes Rodrigues se queixe do esforço financeiro que faz com o processo que já levou à sua condenação. Logo uma senhora que participou no governo da criatura socrática, conhecida por processar a eito jornalistas e comentadores que tinham a ousadia de não admirar a radiosa liderança socrática e se incomodarem pelos persistentes casos que não costumam atormentar pessoas honestas e rodeavam o então pm. Queixas – por vezes queixas civis, nem sequer criminais – que não levavam a nenhuma condenação ou, sequer, a acusação. Mas que obrigavam os ditos processados a terem gastos com advogados, além de perderem tempo de trabalho. Com Sócrates, era assim; criticas-me e levas com honorários de advogados para pagar. Maria de Lurdes Rodrigues não teve qualquer problema de consciência por participar num governo que desta forma sem vergonha pressionava jornalistas e comentadores a calarem as críticas a Sócrates, pois não? Desejo por isso que continue a ter um grande esforço financeiro com todo este processo. 14 de outubro - Mesmo depois de muita discussão, continua a ser apresentado por alguns o “argumento económico” para a instituição da taxa sobre os equipamentos que potencialmente possam servir para gravar para uso privado o que foi adquirido legalmente (e portanto pagou os respectivos direitos de autor). Tomemos o argumento económico a sério – o que quer dizer exactamente? Pensando em termos do que os economistas chamam “eficiência estática”, como o custo de uma reprodução adicional é zero, em termos eficientes para a sociedade, é eficiente que o “preço” venha a refletir esse custo adicional e portanto devia ser zero. Ok, não é pelos custos de reprodução da cópia privada que deve haver um preço adicional. Vamos então ao argumento de “eficiência dinâmica” – neste argumento, é necessário atribuir maior retribuição aos artistas para que estes mantenham a intenção criativa, dando-lhes o que em economia se designa por “apropriação dos ganhos da sua actividade”. Ou, numa versão mitigada, dar mais ganhos para que criem mais, o que trará benefícios para todos. Ora, aqui surge um problema básico – como há grande heterogeneidade nos artistas (e cada vez mais, para cada um de grande sucesso haverá muitos de pouco sucesso), a criação de uma taxa sobre o “processo” (o meio de guardar a cópia” e não sobre o “resultado” (o valor do que é criado), significa que uma distribuição acrítica dos fundos recolhidos recompensa todos por igual – o que será manifestamente ineficiente do ponto de vista social. Mas como esta taxa para a cópia privada pretende dar o incentivo para a criação, não é claro porque a existir não deva estar incluída no preço da “obra” vendida legalmente (relembre-se, a pirataria continua ilegal). Neste caso, quem mais sucesso tiver também tem mais “incentivo à criação”. De outro modo, resta apenas a situação de “procura de rendas” e por parte de quem vai gerir o sistema, como bem aponta André Azevedo Alves. Ainda em termos económicos, há a questão crucial de saber qual é o modelo de rentabilidade económica da criação artística. Por exemplo, a principal fonte de rendimento de músicos é a venda de CDs ou a realização de espectáculos? Se for esta última, a disseminação gratuita das suas obras, com quanto mais cópias melhor, poderá ser mais interessante como forma de depois vir a realizar espectáculos. Se estivermos a falar de filmes poderá ser diferente, mas o aspecto central é que o próprio modelo de negócio e de retribuição da actividade criativa poderá estar a mudar. Admitamos ainda que se quer esta redistribuição de rendimento ad-hoc e arbitrária. Então devemos discutir qual é a melhor forma de a realizar. E se estamos a falar de pagamentos que são realizados devido ao poder coercivo do Estado, porque não ser este a tratar dessa redistribuição? Assim, esta verba deverá ir para a Secretaria de Estado da Cultura que depois a atribuirá diretamente aos artistas registados para o efeito (registo que pode ser feito numa plataforma informática simples). Talvez mesmo ter um subdirector geral com essa competência atribuída. Ou caso esta missão seja atribuída a uma entidade externa, então os salários e as despesas praticadas nessa instituição deverão seguir as mesmas regras da administração pública, com equiparação do presidente da instituição a sub-director geral para efeitos de vencimento, e a partir daí estabelecer a cascata de remunerações. Obviamente acompanhando as regras da função pública neste campo. As receitas e despesas deverão ser auditadas regularmente por entidades públicas, tendo o Tribunal de Contas também possibilidade de intervenção. Ou podemos ainda tentar uma solução de “mercado” – colocar a concurso a gestão deste imposto (mais vale usar o nome correcto), em que as entidades externas interessadas apresentam as suas propostas de custo para essa gestão. (Depois deste impulso criativo, vou-me registar algures, para ter também acesso a qualquer coisita da lei da cópia privada, pois a partir de agora conhecidos e desconhecidos podem copiar este texto para os seus computadores e telemóveis, o que irá limitar a minha criatividade futura). Nova Aliança, 30 / outubro / 2014

As conversas à volta da fogueira

8 de outubro - Num mundo cada vez mail digital, um estudo publicado recentemente na revista ‘Proceedings of the National Academy of Sciences’ (PNAS) revela que as conversas à fogueira terão estimulado a evolução das nossas capacidades cognitivas, sociais e culturais. Sabemos que o início da noite é a altura ideal para contar histórias ou para ouvir as dos outros. Os nossos filhos reclamam-nas antes de apagar a luz e nós próprios, se um amigo nos conta uma história à luz da lareira ou das velas, esquecemos as nossas preocupações do dia, descontraímos e sonhamos acordados. A noite em redor de uma fogueira parece ser um momento universal para formar laços, difundir informação social, para se entreter e partilhar emoções. Os conflitos da vida quotidiana apaziguam-se. No passado terá sido sempre assim? Há centenas de milhares de anos, quando os nossos antepassados conseguiram controlar o fogo, terão eles sentido também essa atracção pelas conversas nocturnas à luz de uma fogueira? Não sabemos de que terão falado, que histórias terão desencantado, que mitos e lendas terão partilhado. Mas é possível ter-se uma ideia do conteúdo dessas conversas com base em dados sobre populações actuais. E a partir daí, torna-se razoável especular que o controlo do fogo não terá apenas permitido aos primeiros humanos cozinhar os seus alimentos e proteger-se dos predadores. Também terá tido um papel essencial no desenvolvimento das suas capacidades cognitivas, culturais e sociais. É precisamente essa a conclusão de um estudo publicado nesta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). 40 anos depois de ter começado a estudar os costumes e tradições dos Kung - um grupo de cerca de 4000 bosquímanos que vivem em diversas povoações no deserto do Calaári, entre o Nordeste da Namíbia e o Noroeste do Botswana, no Sul de África - Polly Wiessner, antropóloga da Universidade do Utah (EUA), comparou em grande pormenor as características das conversas diurnas e nocturnas de várias destas comunidades, fazendo assim, escreve na PNAS, uma "etnografia da noite", à procura daquilo que terá “ateado a fogueira” da cultura e da sociedade na noite dos tempos. “Não é possível descobrir o passado através dos bosquímanos”, avisa porém a cientista em comunicado da sua universidade. “Mas estas pessoas vivem da caça e da recolecção, que foi também a forma de vida dos nossos antepassados durante 99% da sua evolução.” Por isso, as conversas dos bosquímanos à noite “ajudam-nos a responder à questão de como o espaço nocturno, iluminado pelas fogueiras, contribui para a vida humana”. O certo é que, a partir do momento em que o uso do fogo se generalizou, há entre 200 mil e 100 mil anos, isso alterou os ritmos circadianos dos seres humanos. A luz permitiu ficar acordado e estendeu o dia, “criando um tempo em que as actividades sociais não interferiam com a vida produtiva e a subsistência”, escreve ainda a cientista. O seu estudo baseia-se em dois tipos de dados. Por um lado, os apontamentos que Wiessner fizera, em 1974, relativos a 174 conversas diurnas e nocturnas em dois acampamentos Kung, com uma duração de 20 a 30 minutos cada e que envolviam entre cinco e 15 pessoas. Por outro, as gravações de conversas, transcritas para inglês, de 68 histórias contadas à luz da fogueira, que a autora presenciou ao longo de várias estadias entre 2011 e 2013 em aldeias Kung. Os temas das conversas diurnas e nocturnas revelaram-se, de facto, tão diferentes como o dia e a noite. De dia, 34% das conversas eram queixas, críticas e mexericos; 31% sobre questões económicas; 16% anedotas; e 6% histórias e outras coisas. Mas à noite, depois de cada família ter jantado ao pé da sua própria fogueira, as pessoas reuniam-se frequentemente em redor de uma fogueira maior – e nessas reuniões alargadas, as histórias passavam a ocupar 81% do tempo. “À noite, as pessoas descontraem, acalmam e procuram entretenimento”, explica ainda Wiessner. Contam-se histórias, mas também se fala de pessoas conhecidas mas ausentes, que não residem na mesma aldeia, bem como do mundo sobrenatural. Canta-se, dança-se e os curandeiros entram em transe para comunicar com os espíritos dos entes queridos que morreram e proteger os vivos que eles querem levar consigo. Segundo Wiessner, os primeiros humanos terão assim construído, na sua cabeça, comunidades virtuais de seres reais e imaginários, e isso terá ampliado a sua imaginação e a sua capacidade de perceber as emoções alheias – um traço exclusivamente humano. Wiessner também pergunta, mas sem dar respostas, em que medida é que a luz eléctrica nos estará a “roubar” esse momento ao permitir-nos trabalhar dia e noite. “Agora, o trabalho estende-se pela noite dentro, em casa, em frente a um computador.” O que acontecerá às relações sociais num mundo onde “apenas tenho 15 minutos para contar uma história de adormecer aos meus filhos”? Nova Aliança, 16 / outubro / 2014

O Proença

A justiça tem, de facto, aspectos curiosos. Proença de Carvalho concedeu uma entrevista ao Diário Económico onde comenta da seguinte forma o caso BES e a detenção de Ricardo Salgado, de quem é advogado: “Até agora o que tem havido são juízos preconceituosos, precipitados. Sabe que eu, em toda a minha vida, me bati contra autos-de-fé e contra julgamentos no pelourinho. Acho que é impróprio de democracia civilizada e de um Estado de direito esta violação dos princípios de presunção de inocência.” E acrescenta: “Vi aqui resquícios do que aconteceu no PREC em 1975.” Realmente é engraçado estarmos na presença de um advogado que levou vários jornalistas a tribunal por causa de uns artigos escritos sobre José Sócrates, em nome dos mesmos princípios da democracia civilizada que agora invoca. Salgado, Sócrates, a elite angolana – não se pode dizer que Proença facilite a sua própria vida na defesa dos melhores princípios democráticos. Mas empenho não lhe faltará, até porque, segundo o próprio esclarece, “nós não escolhemos os clientes, são os clientes que nos escolhem a nós”. (Ora bem…) E tendo Ricardo Salgado escolhido Proença de Carvalho, compreende-se que este utilize o espaço dos jornais para ensaiar a defesa do seu cliente, optando por uma estratégia que já tem barbas: garantir que não se sabe tudo, pedir paciência, afirmar que “é preciso ouvir as várias narrativas de todos os protagonistas” (reparem como adoptou rapidamente o linguajar socrático), e após muito aguardarmos, “com tempo e serenidade e depois de haver um verdadeiro contraditório”, aí sim, estamos autorizados – eu, você, os portugueses, o mundo – a emitir um juízo devidamente fundamentado sobre Ricardo Salgado. Até lá, bolinha baixa, que isto não é o PREC. (Que bom que ele nos avisa…) Deixando de lado o pobre PREC, que tem as costas largas, e o facto de hoje em dia uma nacionalização à moda de 75 até dar um certo jeito a Salgado, eu gostaria de discutir a premissa da presunção da inocência e a forma como ela costuma ser invocada pelos advogados dos donos disto tudo, com esta muito ínvia intenção: querer impor à sociedade e à política um princípio que é do Direito, de forma a que não se fale, não se discuta, não se acuse, não se aponte o dedo. O raciocínio é este: se Salgado é inocente até ser considerado culpado, então façam o favor de calar a boca, que o tempo dos pelourinhos e dos autos-de-fé já lá vai. Só que, graças a Deus e a todos os santos (menos aos Espíritos) e infelizmente para o senhor Proença, não é assim que as coisas funcionam: se nós só pudéssemos emitir juízos de valor após o Supremo Tribunal se pronunciar sobre a culpabilidade de Salgado, então isto não seria uma democracia. Se eu for hoje para o meio do Rossio dar tiros à multidão, continuo a ser inocente aos olhos da lei até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Significa isso que ninguém poderá dizer que sou um criminoso até 2018? Felizmente, Ricardo Salgado não matou gente, mas a catástrofe do BES é um flagrantíssimo delito, que todos temos o direito de avaliar, criticar e culpar. Buracos de milhares de milhões não se cavam sozinhos. Esta mania de nos irem ao bolso e ainda exigirem silêncio é deveras irritante. Da próxima vez que eu estiver na mesma sala que Proença de Carvalho vou procurar roubar-lhe a carteira, e quando ele gritar “agarra que é ladrão”, colocarei o braço à volta do seu ombro e direi em tom melífluo: “Ó sotôr, autos-de-fé e julgamentos no pelourinho ficam-lhe muito mal. Aguarde pelo contraditório, se faz favor.” P.S. O esqueleto deste texto é do cronista João Miguel Tavares. Eu apenas o ‘vesti’ à minha maneira. Nov Aliança, 2 / outubeo / 2014

As redes sociais e o Zé

3 de Setembro – Não é preciso estarmos muito atentos para verificar que quem vive numa grande cidade, por vezes, é como se vivesse numa aldeia. Dá-se sempre com as mesmas pessoas, há bairros onde nunca vai, partes da cidade que nem sequer conhece. Um estudo agora realizado com base nas comunicações telefónicas de pessoas residentes em grandes e pequenas cidades no Reino Unido e em Portugal mostra que essa impressão corresponde mais à realidade do que imaginamos. Os resultados foram publicados na revista Journal of the Royal Society Interface. Em vez de se perguntar às pessoas com quem é que tinham falado ao telefone e durante quanto tempo – um método sujeito a erros de avaliação e de memória por parte dos inquiridos, a equipa do português Luis Bettencourt, do Instituto Santa Fé nos Estados Unidos, juntamente com colegas do MIT, com engenheiros informáticos e com especialistas de empresas de telecomunicações europeias, foi directamente buscar os dados quantitativos – e exactos ao pormenor – das comunicações telefónicas. Mais precisamente, os cientistas tiveram acesso aos registos da maioria das chamadas terrestres realizadas no Reino Unido durante um período de um mês, em 2005 – bem como aos de milhões de chamadas de telemóvel realizadas em Portugal durante um período de 15 meses, entre 2006 e 2007. Uma vez retirados quaisquer elementos que pudessem permitir identificar os interlocutores, os cientistas encontraram-se perante uma autêntica mina de ouro de relações interpessoais, completas com data, duração, local da chamada, etc. Os cientistas reconstruíram, a partir dessa massa de dados, redes de interacções telefónicas para cada aglomeração britânica e portuguesa, onde cada pessoa era representada por um nó da rede e as suas comunicações telefónicas por ligações com outros nós. O número de chamadas telefónicas, bem como o número de interlocutores telefónicos, aumentava com o tamanho da localidade de residência. E até aumentava mais do que proporcionalmente. Por exemplo, se uma dada cidade tivesse o dobro dos habitantes de outra, o número de telefonemas e o número de interlocutores dos habitantes da cidade maior era mais do dobro dos respectivos números associados à cidade mais pequena. Porém, a equipa obteve agora um resultado relativamente surpreendente a outro nível. Acontece que, seja qual for o tamanho da cidade onde vivemos, os cálculos mostraram que a probabilidade de que os nossos amigos se conheçam entre si não se altera. Por outras palavras, as nossas redes sociais são todas semelhantes desse ponto de vista – o que, concluem, sugere que os seres humanos se organizam instintivamente em comunidades sociais compactas. E isso se verifica tanto na Lixa, aldeia do Norte de Portugal, dizem os autores – onde 6000 pessoas vivem numa área urbana de apenas três quilómetros quadrados – como na área metropolitana de Lisboa. O que obviamente não impede, enfatizam contudo, que quem vive na Lixa tenha menos margem de manobra para escolher o seu círculo social do que quem vive em Lisboa. “Este é um dos resultados curiosos deste novo estudo”, explica-nos Luís Bettencourt. “Nas grandes cidades, há em geral maiores oportunidades de interacção com mais indivíduos e indivíduos mais diversos. Nós verificámos isso para Portugal (e para o Reino Unido). No entanto, o que vemos também é que as pessoas que conhecemos têm uma alta probabilidade de se conhecerem entre elas – o que quer dizer que, independentemente do tamanho da cidade, criamos redes sociais coesas (como nas cidades pequenas ou nas aldeias). Numa grande cidade, no entanto, essa rede social é mais o produto da nossa escolha e nesse sentido tem um carácter diferente da de uma aldeia.” 10 de Setembro – Não sei se o nome José Sá Fernandes vos diz algum coisa. Não? É natural. Foi aquele senhor que achava que fazia falta e que travou a construção do túnel do Marquês com evidentes prejuízos para todos nós, financeiros e não só. Pois agora o indivíduo teve a ideia de eliminar uns brasões florais das ex-colónias que se encontram na Praça do Império em Lisboa. Parece que estão ultrapassados, diz ele. Mas brasões e tabuletas existem também para lembrar coisas que acabaram. Se vamos acabar com tudo que acabou, a Praça do Império vai na enxurrada, aliás como o seu autor, Cottinelli Telmo, que também tem praça. Outra: a Rua Cidade de Salazar, no Bairro das Colónias. Outra: a ponte chamada de 25 de abril mas construída antes. Outra: o Estádio Nacional no Jamor. Parece um buraco negro: já não há colónias, nem Salazar. Mas se acabamos com coisas que acabaram ou que dizem coisas com que não gostamos hoje, caímos em coisas engraçadas. O Beco da Ré vira Beco da Arguida. O Beco do Carrasco parece morar em Estado Islâmico. O Beco das Beatas pode ser contestado nas duas versões, contra o tabaco e o proselitismo religioso. O Jardim das Pichas Murchas (em São Vicente de Fora) faz contrapropaganda a conhecido produto farmacêutico. A Travessa do Fala-Só é inaceitável em tempos democráticos. Talvez seja esta a democracia ‘safernandesiana’. Nova Aliança, 19 / setembro / 2014

A estação parva

26 de agosto – Com o país em férias, vive-se a ‘silly season’, a tal estação parva em que nada acontece. Bom,,, quase nada. O que dizer da tragédia do cvasal polaco que caiu de uma arriba com cerca de oitenta metros? Os filhos assistiram a tudo e não o esquecerão até ao fim dos seus dias. O que dizer da recriação histórica que trouxe ‘catraias’, redes e pregões ao areal de Caxinas, um lugar de Vila do Conde que continua a albergar uma das maiore comunidades piscatórias do país? O que dizer dos dezasseis óscares europeus de turismo ganhos por Portugal? De Lisboa à Madeira, do Porto ao Algarve, eis tudo o que um turista precisa; que o destino confirme o que ele espera. O que dizer nestes dias de um pensamento escrito num dos ‘Diários’ de Miguel Torga: “A olhar as mentiras dos salões, esquecemos a verdade das celas”? O que dizer de mais uma releitura de ‘O Leopardo’ de Lampedusa? As mesmas interrogações, as mesmas contradições, a mesma necessidade de perceber a existência. Por isso, talvez se tenha celebrizado a frase do romance imortalizado no filme de que “é preciso que mude alguma coisa para que tudo fique na mesma”. O que dizer do reencontro de Randhatul Jannah, dado como morto em 2004, por ocasião de um dos maiores tsunamis registados no Oceano Índico, com Jamaliah e Septi Rangkuti, seus pais? Encontrada a quarenta quilómetros da sua aldeia, Randhatul foi salva por um pescador e alguém notou a sua semelhança com acriança desaparecida dez anos antes. O que dizer do pedido feito pelo vice-primeiro ministro da Turquia, Bullent Arinc, para que as mulheres turcas não se riam em público? O ponto é que, se ele acha tal coisa, o mínimo que se pede é que não diga coisas engraçadas como “as mulheres não se devem rir em público”. Se ele acha tal coisa é, muito provavelmente, porque ele próprio não se ri em privado, o que advém do facto de ter uma figura risível. O que dizer da última decisão do Tribunal Constitucional? Os cortes são aprovados durante o período claramente identificado como de emergência, e apenas no caso em que se vislumbra alguma justiça dentro da injustiça geral qu écortar direitos adquiridos. Depois, os governos que se organizem. Os juízes, tantas vezes acusados de fazerem política por caminhos ínvios, desta vez fizeram-na efetivamente dando uma lição aos políticos. Ao imporem o limite temporal para os cortes nos salários, contribuem ainda para dar um sentido aos sacrifícios, algo que competia ao governo. O acordo do Tribunal Constitucional mostra que o equilíbrio de poderes está bem e recomenda-se. O que dizer da deputada do PS, Maria João Rodrigues? Não se conforma por não ter sido nomeada comissária, mesmo depois de Jean-Claude Juncker ter afirmado que ele nunca fez parte da ‘lista de desejados’. A senhora diz agora que aquilo que lhe custa”não é não ter sido selecionada, é não ter sido submetida à seleção pelo Presidente da Comissão”. Ou seja, queria que ao menos o senhor juncker tivesse olhado para ela, mas o raio do homem nem isso fez. O que dizer ainda das PPP? Ao fim de todo este tempo, a única poupança que se conseguiu foi pelo cancelamento de novos projetos e pela anulação de contratos para manutenção futura das autoestradas. Mas as taxas de rentabilidade obscenas de vinte e tal por cento que o Estado pagou, essas estão inalteradas. Não houve por isso nenhuma renegociação das rendas dos contratos de PPP. Nova Aliança, 5 / setembro / 2014