31.12.06

O Ensino Superior, o Charquinho e Pinto da Costa

2 de Dezembro - O Ministro do Ensino Superior anda preocupado com o estado da educação. Daí não virá mal ao mundo. Só que, num destes dias, sugeriu que os alunos do ensino superior devem trabalhar enquanto estudam, adiantando que está a preparar legislação para beneficiar financeiramente aqueles que o façam. Esta medida vai, obviamente, gerar agitação estudantil e situações de injustiça objectiva. Com facilidade imaginamos a enorme quantidade de declarações de prestação de serviços em empresas familiares que, com tanta facilidade abrem actividade nas Finanças, declarando-se terminadas pouco tempo depois.
Por isso, sugeria-se ao senhor a aplicação de outro tipo de medidas. Por exemplo, uma muito simples, em vigor no Brasil, da responsabilidade do governo Lula. Chama-se «ProUni - Universidade para Todos», e consiste num programa federal de concessão de bolsas aos alunos sem recursos, após seriação e exame prévios, cujo valor - que pode ir (e vai frequentemente) até à isenção completa, é integralmente deduzido à matéria colectável da sociedade proprietária da Universidade escolhida pelo aluno. Trata-se, por conseguinte, de uma espécie de cheque educação negativo, porque não há verdadeiramente dinheiro vivo em cima da mesa, mas uma sucessão de operações contabilísticas. Descoberta da pólvora? Nada disso, só que com este programa, simples de executar, as Universidades têm alunos, os alunos com dificuldades financeiras têm a possibilidade de frequentar Universidades, e o Estado não precisa de gastar dinheiro nem na sua formação nem a subsidiar as escolas.


6 de Dezembro - «Façam-na no bairro dos ricos!» - foi assim que reagiram os habitantes do bairro social do Charquinho à decisão da Câmara Municipal de Lisboa de instalar uma sala de chuto naquele bairro.
Duvido mas duvido mesmo que os habitantes do Charquinho venham a ser bem sucedidos na sua reivindicação. Eles deveriam ter seguido o exemplo dos habitantes de um bairro rico como Alvalade aquando da sua bem sucedida contestação à instalação dumas capelas mortuárias que a CML licenciara naquele bairro. Como se sabe as ditas capelas acabaram atiradas para a periferia ou seja para uma zona de pobres.

Não sei avaliar com rigor o impacto que tem na vizinhaça uma sala de chuto mas parece-me que não será certamente menor que o dumas capelas mortuárias.
Tenho a certeza que quem mais condena a reacção dos habitantes do bairro do Charquinho não vive lá. Tal como também não colocam os seus filhos nas escolas públicas muitos daqueles que produzem as mais belas teorias sobre o espaço de ensino-aprendizagem e muito menos frequentam os transportes públicos em determinadas áreas ou horários aqueles que discursam em seminários sobre multiculturalismo.
Estes são os cidadãos que conseguiram organizar a sua vida sob o um modelo que se pode classificar como modelo do 'condomínio fechado'. Este caracteriza-se por os seus membros defenderem para os outros tudo aquilo de que se conseguiram preservar a eles mesmos. Tudo está previsto para os outros. Até onde devem fazer as compras!
A mesma pessoa que é considerada muito corajosa e empenhada quando denuncia a violência doméstica passa ao estatuto de reaccionária e populista quando denuncia a violência nos transportes públicos. É uma destas forma de violência menos importante do que a outra? Não. O que é diferente é o discurso que sobre elas existe.
Por isso aquele inconveniente «Façam-na no bairro dos ricos!» pronunciado a propósito da criação da sala de chuto no Charquinho é uma das frases que melhor retratam as novas formas de segregação. Essas de que não se quer falar.

10 de Dezembro - Jorge Nuno Pinto da Costa gosta de mulheres. Tendo em conta os tempos que correm, aquilo que vai para aí e a sua já razoável idade, é um facto assinalável e merecedor de respeito.
Como os anos já não ajudam, tem, eventualmente, de visitar com mais assiduidade do que desejaria os cabarés da cidade do Porto. Lá as coisas parecem mais fáceis e o encanto é imediato: uma dança mais apertada, uma conversa mais íntima, uma troca de olhares, tudo isto, e mais a avançada técnica e conversa das profissionais de serviço, contribui para resultados rápidos. O homem apaixonou-se. Passeia-se em público com os frutos da sua paixão, leva-os ao «Dragão» ver a bola, apresenta-os a Primeiros-Ministros e a Presidentes da República, deixa-se fotografar na sua companhia para revistas de sociedade, escreve bilhetes amorosos, proclama juras de amor eterno. Enfim, a “primeira-dama” é credível.

Um dia, pelo excesso de evidências, apercebe-se que, afinal, aquele amor não era «sincero». Temperamental, põe a moça na rua com os trapos que trazia no corpo quando a conheceu, e ela não aprecia o tratamento. Daí até deixar de ser credível foi um pequeno passo. Diz-me com quem andas, dir-te-ei se és credível…
O resto da história já todos conhecemos. Resta apurar se ela tem alguma moral que valha a pena enunciar, e é evidente que tem. Mas… não coloquemos a carroça à frente dos bois. Atentemos na Justiça portuguesa e tenhamos esperança que ela ainda existe.


Nova Aliança, 22 / Dezambro / 2006

13.12.06

A RTP, os salários dos privados e o preço das drogas

12 de Novembro - Para quem tem dúvidas sobre a governamentalização da RTP, o telejornal de hoje deve ser visto muito atentamente e deve motivar muitos estudos. Hoje foi o dia do debate parlamentar sobre o OE. Até aos primeiros minutos tudo esteve bem: o debate foi animado e permitiu uma peça dinâmica de contraditório. À saída o primeiro-ministro é questionado sobre declarações de Jardim. O problema é que, depois dos 15 segundos que são aceitáveis para a resposta, seguiu-se uma longa exposição de vários minutos, uma imensidade de televisão que desequilibra totalmente a reportagem, em que, num discurso limpo, se repetem pela enésima vez argumentos conhecidos das teses governamentais sobre o OE.

Ao contrário do que sucede muitas vezes, em que os próprios jornalistas, “ávidos” de informação, não deixam falar os convidados, o primeiro-ministro acaba por nunca ser interrompido por uma corte de jornalistas silenciosos ( pelo menos da RTP ) e por repetir, sem contraditório, o que acabara de dizer dentro da sala, reforçando nessa fala límpida tudo o que o governo queria dizer. Do ponto de vista jornalístico não há aí nada de novo, e é isso que é favorecer a propaganda do governo.

16 de Novembro - Nos últimos dois anos fez-se passar a ideia de que os funcionários públicos são mais bem pagos do que os trabalhadores do sector privado. E, desde a tomada de posse do actual governo, com a revelação em série de vários regimes de excepção ( os subsistemas de saúde de magistrados e polícias, as bonificações na contagem do tempo de serviço dos enfermeiros, a generosidade do fundo de pensões dos administradores do Banco de Portugal, etc ), os funcionários públicos tendem a ser vistos pela opinião pública como profissionais remunerados acima da média. Sucede que o actual governo encomendou um estudo à Capgemini Portugal sobre o perfil de salários no sector público versus sector privado. Esse estudo, elaborado em parceria com a Mercer Human Resource Consulting, contradiz as conclusões de um trabalho idêntico, da responsabilidade do Banco de Portugal, feito em 2001. De acordo com esta instituição bancária, há cinco anos, «os salários dos funcionários públicos, em especial no caso das mulheres, são significativamente superiores aos salários dos trabalhadores do sector privado [com] iguais qualificações.» Por seu lado, a Capgemini, num relatório de quase 300 páginas entregue há cinco meses ( em Junho ), e que contém «centenas de tabelas comparativas», prova o contrário. Consta que o ministério das Finanças não gostou do que leu ( isso explicará o atraso na sua divulgação? ). Na impossibilidade de transcrever tudo, ficam dez exemplos: director-geral ( + 114,10% no privado ), engenheiro ( + 76,50% no privado ), director de serviços ( + 73,70% no privado ), mecânico ( + 65,00% no privado ), gestor financeiro ( + 64,52% no privado ), assistente administrativo ( + 57,30% no privado ), electricista ( + 44,30% no privado ), enfermeiro ( + 36,80% no privado ), telefonista ( + 12,00% no privado ), investigador científico ( + 5,21% no privado ). Em contrapartida, os contabilistas (- 6,40% no privado ), os economistas ( - 5,40% no privado ), os educadores de infância e os professores do ensino básico ( - 3,28% no privado em ambos os casos ) e os arquitectos ( - 2,00% no privado ), são melhor remunerados ao serviço do Estado. A favor dos funcionários públicos têm jogado alguns factores não despiciendos: estabilidade no emprego, acesso à ADSE ( mediante desconto próprio ), carga horária de 35 horas semanais, e pensões de aposentação em regra superiores às da Segurança Social ( o cálculo é diferente ). Quanto ao dinheirinho, estamos conversados.
24 de Novembro - A capa do Público de hoje é um enigma: “Aeroporto da Ota vai ficar mais caro do que o previsto”. Fará sentido para um jornal diário de grande informação, um verdadeiro jornal de referência, comunicar no século XXI a descoberta do Caminho Marítimo para a Índia? Ou publicar em tipo grande na capa "Os elefantes têm uma tromba"? Ou "A Serra da Estrela é mais alta que o Outeiro de S. Pedro"? Alguém imagina um título como "A Terra Gira em Torno do Sol"? Títulos incompreensíveis, de tão óbvios que são. Espera-se sempre que uma notícia informe, ensine, traga algo de novo. Escolher como parangona o que já toda a gente sabia? Ora…

25 de Novembro - «Os grupos privados [do sector da saúde] têm a sua política e pagam aos senhores jornalistas para porem notícias nos jornais e nas televisões.» O autor desta pérola é o ministro da Saúde. O que dizer de uma afirmação desta gravidade? No mínimo, que Correia de Campos deve - ou melhor, tem de - apresentar provas que sustentem as suas afirmações?
26 de Novembro - Ainda segundo o Público, o haxixe e o LSD são mais baratos em Portugal do que no resto da Europa. Fiquei preocupado, devem ser os únicos produtos e serviços que são mais baratos "cá" do que "lá". Imagino que tudo o resto é "cá" mais caro: a água, a luz, o gás, a gasolina, os telefones, a tv cabo, a couve, a alface, o iva, enfim: tudo aquilo onde o estado pode pôr a mão e taxar convenientemente é mais caro "cá" do que "lá".
Um conselho aos toxicodependentes: não abram muito a boca. Ou este governo decide aproveitar-se da situação e a coisa vai ficar bem mais cara. E com iva a 21 %...

Nova Aliança, 8 / 12 / 2006

29.11.06

Matemática, a greve dos professores e a Eurodisney

4 de Novembro – Foi hoje lançado ( com coordenação de ) Nuno Crato um livro interessante. “Desastre no Ensino da Matemática: Como recuperar o tempo perdido” ( Sociedade Portuguesa de Matemática / Gradiva, Lisboa, 2006 ).
É reconhecido por toda a gente o desastre no ensino da matemática no nosso país. A extrema gravidade da coisa não suscita qualquer dúvida. Estamos ainda longe de saber como resolver o problema, mas pelo menos já se reconhece a existência de alguns problemas. Aqui há poucos anos, quando a evidência do colapso era já tão cristalina como hoje, governantes e especialistas com responsabilidades juravam a pés juntos que não havia problema algum. Jorge Sampaio chamava-lhes “diagnósticos catastrofistas” e António Teodoro preocupações “da classe média”.
Recordemos que o problema não foi detectado (e muito menos denunciado) pelo Ministério da Educação, nem por nenhum Grupo de Trabalho ou Comissão de Estudo dependente ou nomeada por esse Ministério. O problema não foi denunciado por nenhuma associação de especialistas em Ciências da Educação. Também não foi por nenhum Sindicato de Professores. E também não por nenhuma Associação de Pais, e muito menos por qualquer Associação de Estudantes.
Se hoje em dia sabemos a situação confrangedora em que nos encontramos isso deve-se a meia-dúzia de pessoas, de formação, personalidades, e preferências políticas muito diversas que, sem apoios nem subsídios, decidiram tocar a rebate. ( Estão praticamente todas no livro).
Coloca-se então a questão: é razoável esperar que as instituições que sempre se recusaram ver o problema possam agora dar a solução?

7 de Novembro – Na blogosfera surgiu um texto de Margarida Ribeiro, publicado no Abrupto sobre a greve dos professores. “A verdadeira greve dos professores seria, não estar ausente, mas cumprir as regras que o Ministério exige “stricto senso”.
Assim, os professores estariam na escola as horas semanais exigidas.
Claro que não poderiam trabalhar a preparar aulas, corrigir testes ou estudar, porque não têm gabinetes disponíveis e ninguém consegue concentrar-se numa sala de professores onde os sucessivos intervalos são 15 minutos de imperiosa e barulhenta descontracção, ou corridas esbaforidas de 5 minutos de fecha porta, desce escadarias, atravessa o pátio, sobe escadarias, troca o livro de ponto e despacha as pernas para atravessar de novo o pátio e trepar novas escadarias de um outro bloco do edifício, isto enquanto consulta rapidamente e em equilíbrio precário as suas notas sobre o que deve ser a aula seguinte..
Também seria impossível usar os computadores, numa média de 5 para setenta professores (com sorte). Quando se acaba de reformatar o programa que antes tinha sido usado por um colega e se começa um trabalho, descobre-se que estão dois professores em pé, à porta do cubículo, à espera de que acabemos. Impossível a concentração.
Claro que também que sucederiam cenas como esta:
- Setôra, arranja um bocadinho para falar comigo!!! Os meus pais nunca têm tempo!
- Setôra, o meu dente está a cair!
- Setôra, o Zé bateu-me…
E a resposta seria – “Meu filho, não posso fazer nada. Tenho muita pena mas o meu horário acaba dentro de 25 segundos.”

Depois iríamos para casa e olharíamos sem stress os materiais e instrumentos que durante anos pagámos do nosso bolso, desde computadores e impressoras (esses, valha a verdade, com alguma redução no IRS) os dossiers, as rimas de papel, os livros, dezenas e dezenas de livros, os Cds, as canetas, os acetatos, etc, etc (todos estes sem qualquer desconto no IRS). Nada para ali fazer, o nosso horário estaria cumprido. Poderíamos até despachar toda aquela tralha que durante tantos anos nos obrigou a pagar uma casa maior.
………………………
É no entanto impossível fazer esta greve. Nenhum verdadeiro professor seria capaz disso. Nenhum verdadeiro professor quereria dar aos seus alunos o exemplo de incumprimento de tarefas, nenhum verdadeiro professor deixa de consolar e ajudar um aluno aflito, sejam quais forem as horas para que será obrigado a atrasar a sua saída do local de trabalho.”

Portanto, tendo-lhe sido impossível fazer uma parte importante do seu trabalho na escola durante as horas obrigatórias de presença, enfrenta em casa mais 2, 3 ou 4 horas de papéis, computador o caneta vermelha. Se, de estafado, não consegue, olhará o fim-de-semana como a salvação. Os fins-de-semana já eram a salvação dos professores, em muitos casos. Temo é que agora deixem de ser tempo suficiente antes de se ir para o hospital.”


8 de Novembro – Dificilmente encontraremos, em alguns sectores, uma Câmara Municipal mais benemérita do que a de Abrantes. Depois das festinhas para as crianças, as escolinhas, os escuteiros, a cultura da cidade tem agora as feiras de doçaria que servem, alegadamente, para pagar viagens à Eurodisney. Pessoalmente, preferia organizações cujo lucro revertesse para as obras de canalização que a população merece. Quantas feiras da doçaria será necessário organizar? Não seria possível patrocinar uma equipa de basebol ? A publicidade nas camisolas poderia ostentar: “Novas Canalizações” ou “Água, a Vergonha da Cidade?

15.11.06

Scuts, Rivoli e TLEBS

19 de Outubro – O Governo vai colocar portagens nas scuts.Em 11 de Dezembro de 2004, numa das poucas questões respondidas aos jornalistas sobre a região, Sócrates disse que "caso seja eleito – primeiro-ministro, como veio a ser - , as auto-estradas sem custo para o utilizador, SCUT's, vão permanecer sem custos". Na óptica do candidato, "não faz qualquer sentido estar a colocar portagens neste tipo de vias". O ex-ministro do Ambiente recordou ainda que estas vias foram "obras socialistas" e se nessa altura foram projectadas para não terem portagens "não seria agora, que pela mão do PS, as portagens se tornassem realidade para os utilizadores".» Foi apenas mais um momento “húngaro” de Sócrates.

20 de Outubro – O senhor Amaral Tomás, dos Assuntos Fiscais, veio "garantir" que a retirada de benefícios fiscais a deficientes só vai afectar uns cento e tal. Parece que isto se mede assim, às dezenas ou às centenas.

21 de Outubro – A propósito do Rivoli apetece perguntar se subsídio à cultura" e "cultura" são sinónimos? Lendo-se o que alguns críticos do liberalismo escrevem parece que sim. Ao que parece quem é contra o "subsídio à cultura" só pode ser contra a "cultura". Ora esta tese só é defensável se se pensar que "cultura e "subsídio à cultura" são a mesma coisa. Esta identidade entre a "cultura" e "subsídio à cultura" é curiosa sobretudo quando vinda de quem acusa os liberais de economicismo.a definição de cultura defendida por determinados artistas foi concebida para que se torne impossível qualquer avaliação dos resultados. A cultura é definida como aquilo que os artistas fazem, aquilo que os artistas consideram que tem valor, algo de intangível que não se pode pôr em causa e algo de que o grande público não gosta. Desta forma, o que um artista fizer está sempre bem porque é cultura, só os artistas é que podem criticar a cultura porque só eles a entendem e se o público gosta já não é cultura, é enlatado. Desta forma, os artistas, façam o que fizerem, são inimputáveis.

22 de Outubro - Um dos critérios definidos pelo Governo para introduzir portagens nas SCUT prende-se com o facto de os automobilistas disporem de uma alternativa que permita fazer o mesmo percurso num tempo máximo de até 1,3 vezes. Quer o Governo dizer com isto que o tempo a levar numa alternativa pode ir até mais 130% do que numa SCUT, e não 30%. Questionada pelo JN sobre a questão dos 1,3 vezes e dos 30%, e garantindo que tudo foi devidamente explicado na conferência de imprensa, fonte oficial do Ministério das Obras Públicas frisou que o acréscimo será de até 130% (e não 30%). Por exemplo, se na SCUT que nos leva até Viana do Castelo demoramos 60 minutos, quer com isto dizer que na alternativa poderemos demorar até 138 minutos, ou seja, até 2 horas e 18 minutos. Isto é, 60 minutos a multiplicar por 2,3 vezes. O documento disponibilizado pelo Ministério aos jornalistas refere "Foi assumido um índice de referência de 1,3 vezes (...)".

24 de Outubro - Se bem percebi o estado português propõe-se dar seringas aos detidos mas não só não cria salas de chuto - porque isso seria tornar lícito o consumo de drogas nas cadeias - como também não fornece a droga. Coloca-se então a questão: fornece as seringas para quê? Será para estimular o tráfico nas cadeias? E se não se define um local onde os detidos de podem injectar – dado que isso seria tornar lícito o consumo de drogas nas cadeias - quer isso dizer que alguns detidos vão andar a passear com seringas que injectam em quem e nos locais que lhes apetecer?

1 de Novembro – Dez mil escoceses meteram-se em vários aviões e vieram a Lisboa conhecer a Catedral e ver jogar o Benfica. Houve tempo até para homenagear o malogrado Féher. Pelo meio não destruíram nenhuma estação de serviço, não provocaram desacatos na Baixa, nem trouxeram nenhum guarda Abel. Por uma vez, ficaram muito bem as camisolas verdes e brancas na Luz.

3 de Novembro – Estou ainda a tentar perceber a "Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário" ( a já célebre TLEBS ). Questiono-me, desde logo, pela oportunidade e utilidade do exercício. Vejamos alguns exemplos, encontrados por Vasco Graça Moura:

«Entre outros, há pronomes indefinidos que dão agora pelos nomes sorumbáticos de “quantificadores indefinidos”, “quantificadores universais” e “quantificadores relativos”. Nos advérbios, encontramos coisas alucinantes como “advérbios disjuntos avaliativos”, “advérbios disjuntos modais”, “advérbios disjuntos reforçadores da verdade da asserção” e “advérbios disjuntos restritivos da verdade da asserção”. O sujeito indefinido passa a ser o luminoso “sujeito nulo expletivo”. O “aposto ou continuado” chama-se bombasticamente “modificador do nome apositivo”, podendo ser do tipo “nominal”, “adjectival”, “proposicional” ou “frásico”...»

Não sei se reparam no barroco das expressões, na complexidade dos arranjos vocabulares e na fabulosa orgia sonora. Parece que alguém anda a tomar umas substâncias estranhas…

Nova Aliança, 10 / 11 / 2006

2.11.06

Taxa moderadora, Prémio Nobel da Paz, Prós e... Prós

11 de Outubro – A explicação de que “existem nove países na Europa que têm taxa moderadora no internamento” dada pelo ministro da Saúde é ridícula. Quantos países constituem a Europa? E quantos são mais ricos que Portugal? Pode um português pagar tanto como um alemão? Já agora, lembra-se o leitor qual a opinião de Sócrates sobre este tema em 2004? ( Na altura, o primeiro-ministro chamava-se Pedro Santana Lopes e
o objectivo da medida que agora se discute era garantir a sustentabilidade do SNS, permitindo aos mais pobres não pagar pelo acesso à saúde. “Quem não pode pagar, não paga. Quem pode mais, paga”, afirmava então Santana.) Em declarações à TSF, o então candidato à liderança socialista José Sócrates afirmou que a intenção do Governo não é a de promover a justiça social mas “criar um novo imposto sobre a saúde”. “Se o primeiro-ministro quer aumentar as receitas tem uma forma fácil de o fazer que é combater a fraude e evasão fiscal”, afirmou. Que exemplo de seriedade... ou como nos dá jeito a memória...

13 de Outubro – Sexta-feira, dia de peregrinação a Fátima. O ministro da Economia afirma que a crise acabou. Que bom!!! Terá sido resultado da gigantesca manifestação? Ficamos todos mais descansados: sobrará menos mês no fim do ordenado, nenhuma fábrica fechará, todos teremos emprego, não existirão mais manifestações nas ruas nem motivo para greves. O ministro estampou-se? Não, digamos apenas que não economiza no disparate.

14 de Outubro - O Prémio Nobel da Paz não poderia ser mais bem atribuído. Muhammad Yunus poderia ter permanecido nos Estados Unidos, onde estudou, poderia estar a trabalhar no Banco Mundial em Washington produzindo quilos de papel sobre estratégias de combate à pobreza, poderia escrever artigos de investigação matematicamente sofisticados sobre crescimento e desenvolvimento económico. Contudo, optou por regressar ao Bangladesh e ensinar economia fora da sala de aula observando, como um verdadeiro cientista, o pulsar da actividade diária na luta pela mais básica das necessidades, a alimentação. E, através do microcrédito, encontrou uma solução para o problema da pobreza de muitas pessoas sem sofisticados papéis de investigação.

A solução de Yunus é também um desafio para aceitar repensar o funcionamento dos bancos. A ortodoxia diz que as taxas de juro devem ser mais elevadas para quem tem menos hipótese de pagar o crédito. É este o modo de funcionamento assim dos bancos funcionam. Por isso é conhecida a imagem: "emprestar um guarda-chuva quando está sol e pedir que o devolvam quando começa a chover".

15 de Outubro - Os pais de uma escola pública em Sete Rios, Lisboa fecharam a cadeado a escola pois, para 300 alunos, existem apenas duas auxiliares de acção educativa. A DREL classificou o facto de "terrorista" e mandou a polícia repor a ordem. Também hoje, no Porto, um grupo de gente ligada ao teatro ocupou o Teatro Rivoli que é tutelado pelo município. A Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, afirmou tratar-se de uma "original e inovadora forma de luta" e até ofereceu os seus bons ofícios para "mediar" o conflito com a Câmara do Porto. É óbvio que se a Câmara do Porto fosse gerida pelo PS este último acto também seria "terrorismo", todavia, a ministra, que por acaso também é do Porto, prefere falar em originalidade e inovação das formas de luta. Será que se eu juntar quarenta pessoas para protestar contra a qualidade da água abrantina ( e garanto que não preciso sequer de um partido ) e ocupar os Serviços Municipalizados o evento passa em todos os telejornais com tanto tempo como os protestantes junto do Rivoli, com directos e entrevistas, tenho o ministro do Ambiente logo disposto a receber-me, sou tratado com benevolência como "povo" genuíno e ninguém me tira de dentro do edifício? Duvido.

16 de Outubro – Ao contrário do Prós e Prós onde se discutiu o novo Estatuto da Carreira Docente e onde apenas se ouviram vozes pró-ministra, o Prós e Contras de hoje sobre os dinheiros das autarquias foi um programa notável. Registe-se o facto de se terem convidado, desta vez, algumas vozes críticas, neste caso os autarcas que mostraram um grande domínio da realidade, um muito bom conhecimento dos mecanismos perversos da nova legislação e uma grande capacidade argumentativa. Ao contrário, António Costa foi de uma agressividade malcriada, roçando o insulto, autoritário e demagógico até ao limite. Fernando Ruas comportou-se com uma enorme delicadeza de trato e necessitou de muita paciência e sangue frio para não responder aos golpes baixos do Ministro, aos quais não era alheio um desprezo intelectual pelos seus interlocutores.

17 de Outubro – Dois fóruns televisivos sensivelmente à mesma hora sobre a greve dos professores: o da SIC Notícias recebe opiniões a favor e contra a greve, o da RTPN tem 99% de opiniões contra a greve. Um telespectador do canal público telefona, refere isso mesmo e pergunta as razões. A pivô gagueja e o telefonema é cortado. Serviço público, Portugal, 2006.

Nova Aliança, 27 / 10 / 2006

16.10.06

Pinho, a Ópera de Berlim e as agressões a professores

23 de Setembro - Iniciativas como o Compromisso Portugal, desde que na dose certa, podem ser úteis. Mas só por si não servem de muito. Esses senhores defendem o encerramento de postos de trabalho, o apertar do cinto nas famílias mas os seus lucros continuam a subir vertiginosamente. Ou seja, os apertos são para os outros, a riqueza vem para nós. Seria bom que, aproveitando a boa vontade demonstrada, os promotores do Compromisso Portugal começassem a dar mais o dinheiro e menos a cara.

24 de Setembro – Segundo os jornais, Portugal é um dos países da União Europeia com maior número de automóveis por habitante, ocupando o terceiro lugar de uma tabela liderada pelo Luxemburgo, segundo dados divulgados, em Bruxelas, pelo Eurostat. Portugal tinha, em 2004, 572 automóveis por mil habitantes, sendo a média dos 25 de 472 carros por mil habitantes. Percebemos agora a razão da entrada todas as manhãs em Lisboa de milhares de veículos que transportam apenas o seu condutor. Definitivamente, não gostamos dos nossos vizinhos.

25 de Setembro – Quando, no dia 27 de Outubro de 2003, Gilles de Robien, ministro francês dos Transportes, foi apanhado em excesso de velocidade por um radar não oficial de uma revista, a caminho de um evento público com escolta motorizada, prontamente pediu desculpas, apesar de todas as atenuantes. Referiu que a escolta “não é desculpa” e que “ninguém está acima das leis de trânsito”. No sábado, dia 9 de Setembro, o ministro da Economia português, Manuel Pinho, foi apanhado a 212 km/h na auto-estrada do Norte, quando ia para uma reunião sem escolta policial nem qualquer medida excepcional de segurança rodoviária. Ao contrário do francês, o português calou-se. Mandou dizer que tinha saído atrasado de casa e que não fazia comentários porque o assunto era “muito desagradável”. Sim, é verdade, os países são muito diferentes…

26 de Setembro – A notícia “A descida efectiva das despesas do Estado com salários deve-se quase exclusivamente à diminuição destes encargos com os professores” percorreu a imprensa dos últimos dias. É verdade, sim senhor. Mas também é verdade que, no meu caso pessoal, e devido ao bloqueio nas subidas de escalão, o Estado está a roubar-me 12 meses X cento e tal euros por mês. Quantos professores estarão na mesma situação? Bastantes e desta forma é fácil subir as receitas. É só fazer as contas. E os políticos, também ficarão sem subir de escalão?

27 de Setembro – A Ópera de Berlim cancelou a produção de "Idomeneo", de Mozart, com medo do ofender os muçulmanos, radicais ou moderados. No programa «Bom dia Portugal» noticia-se a substituição pela ópera de Berlim do «Idomeneo». Ora, se bem entendo, o censurado e perseguido passa a provocador. A censura passa a acto de respeito.O medo é travestido em sinal de tolerância. A capitulação passa gesto de boa vontade. A intolerância chama-se susceptibilidade. Os intolerantes já nem precisam de ameaçar. Primeiro horrorizaram-nos os seus actos. Agora já pensamos como eles. Pomo-nos no lugar deles. Vasculhamos o que escrevemos, dizemos e fazemos em busca do menor sinal, som ou traço que os possa ofender. Rasuramos o que possa suscitar aquilo que antigamente se designava como fúria e ódio e que agora, na novilíngua, se designa como reacção duma susceptibilidade ofendida


28 de Setembro – Sete alunos de uma escola secundária de Alcobaça foram agredidos no interior da escola por dois jovens do sexo masculino que não frequentam o estabelecimento de ensino. O facto de não existir portaria terá facilitado a entrada dos agressores. À escola não chegam os seguranças que proliferam em organismos públicos como centros de saúde, hospitais, arquivos, bibliotecas e instituições militares. Infelizmente...

29 de Setembro – Os jornais dizem que temos um presidente da câmara vaidoso e egocêntrico q.b. Não há publicação municipal, fontanário, ruela, praça, varanda, jardim, travessa, casa do povo, junta de freguesia, urbanização, melhoramento, que não leve logo uma placa com o seu nome e/ou com a sua fotografia. De quem falo? Do Presidente da Câmara de Elvas, naturalmente.

30 de Setembro – Definitivamente o caso Apito Dourado não tem qualquer importância. Até o ouro das prendas era falsificado e tinham por isso um simples valor simbólico. Ou a corrupção levada às últimas consequências…

Conselho da quinzena: evitem cruzar-se na estrada com o ministro Pinho.

2.10.06

Bento XVI, a Hungria e o novo Procurador

15 de Setembro - A generalidade dos comentários à intervenção de Bento XVI oscila entre dizer que o texto "foi mal entendido", "treslido" ou nem sequer "lido"; outros, no entanto, preferem salientar a "imprudência", tratando-o sobranceiramente por "incauto"; há até quem o acuse de "atirar achas para a fogueira" e mesmo quem vislumbre uma sinistra conspiração destinada a tornar o Vaticano na sede universal da luta contra o fanatismo religioso, embusteando, pelo caminho, todos os patinhos cujo intelecto não consegue atingir tais dimensões labirínticas. Muitos dos comentadores nem sequer leram o texto…

Queria, no entanto, colocar a seguinte questão: e se o Papa quisesse mesmo dizer aquilo que tantos pensam, i.e. que o Islão tem na sua génese e na sua essência elementos de intolerância e de violência de tal modo potenciadores do fanatismo que o tornam incompatível com a modernidade e a razão?

Nesse caso, teria de pedir desculpas? E onde estão as desculpas dos líderes religiosos islâmicos pelos incontáveis crimes que nos últimos anos se têm cometido em nome do seu credo? Algum responsável muçulmano se lamentou pela utilização permanente de princípios religiosos nos massacres perpetrados em toda a parte durante a nossa geração? Desde logo, alguma vez um teólogo, intelectual, dirigente político ou líder religioso do mundo muçulmano pediu desculpas por tantos responsáveis estarem constante e publicamente a vilipendiarem outros credos, outras culturas e a demonizarem todas as formas distintas de entender o mundo em relação àquela que o profeta terá decretado há cerca de 1386 anos?

Algum de entre eles lamentou que o Corão seja utilizado como pretexto sagrado para, por exemplo, perpetuar a obscena menorização das mulheres?

17 de Setembro – “Solidariedade intergeracional” é o termo pomposo que agora se utiliza quando se referem benefícios presentes a serem pagos pelas gerações futuras. Fala-se muito disto a propósito das SCUTs e da Segurança Social. Evidentemente que as gerações futuras não são ouvidas nem achadas...

18 de Setembro – Lá como cá. Na Hungria, o primeiro-ministro confessou ter sonegado informação na campanha eleitoral, omitindo a verdadeira situação económica do país. Isso fez com que tivesse ganho as eleições. Comparando com o que se passou em Portugal, conclui-se que não é grave que o Primeiro-Ministro minta mas é grave que ele se gabe disso.

19 de Setembro - Nem a França escapa a isto: em certas escolas, há WC para “franceses” e WC para “muçulmanos”. Em tempos, na África do Sul, esta segregação tinha um nome e bem feio.
Os mesmos que defendem esta simpática divisão de crianças na hora do xixi são os mesmos que ainda hoje, passados 40 anos, relembram que na América havia WC para "brancos" e WC para "negros". A isto chamamos coerência…

20 de Setembro - Um bioquímico ligado ao Hezbollah (Hussein Haj Hassan) apresenta-nos um raciocínio bastante científico e arrojado. Diz-nos que não é anti-semita ( era só que o faltava ). Mas Hassan notou, repare-se, que os judeus são um "grupo pan-nacional que funciona duma maneira que permite aos judeus actuarem como parasitas das nações que lhes dão abrigo”.

21 de Setembro – No momento em que Oriana Fallaci nos deixa, vale a pena lembrar as suas palavras numa entrevista ao The Wall Street Journal: “O servilismo com os invasores envenenou a democracia, com consequências óbvias para a liberdade de pensamento e para o conceito de liberdade”.


22 de Setembro - Leio no Público que já há fumo branco na Justiça, com um novo Procurador-Geral da República, o magistrado Pinto Monteiro, até agora juiz conselheiro. Não conhecendo o novo PGR, lembro porém declarações proferidas em Agosto e que só o dignificam. Numa entrevista, precisamente ao Público, Pinto Monteiro dizia que os juízes novos não têm "humildade", o que "gera falta de cortesia", e que o acesso ao Supremo "é um sistema viciado". Afirmava ainda que "o Conselho Superior de Magistratura não controla rigorosamente nada quando devia ser implacável" e "não pode actuar como associação sindical". Mais, ainda, "só pode ser juiz quem deve e não quem quer". Espera-se, por isso, um PGR reformador. O que, a confirmar-se, só pode ser uma boa notícia.


Nova Aliança, 29 / 9 / 2006

20.9.06

Gunter Grass, o "caso Mateus" e George Steiner

22 de Agosto – Gunter Grass é um dos ícones da esquerda europeia. Habituou-nos a reconhecê-lo como alguém que corta a direito e que gosta de dar lições aos outros. A verdade é que não passa de um hipócrita. Aos 78 anos revelou ter pertencido a um corpo de elite das tropas SS alemãs. Em 1985 foi um dos que protestaram por Reegan e Kohl terem visitado um cemitério militar porque nele havia… soldados SS. Onde pára a ética?
O ministro Costa continua a enaltecer o facto de existir este ano menos área ardida. Esquece-se que o que ardeu nos anos anteriores não volta a arder este ano. Entretanto, Sócrates está de férias pelo segundo ano consecutivo na altura dos fogos, pelo que se presume que não perca muitas horas no resto do ano a tentar arranjar uma solução. Aproveitando a época estival, o ministro da Agricultura, Jaime Silva, responsável pela manutenção e limpeza das florestas, teve a brilhante ideia de pôr as meninas dos Morangos com Açúcar a comer maçãs de forma a ajudar a Associação dos Produtores de Maçã de Alcobaça. Em pleno Agosto, o grave não é ele ter-se lembrado disso, é gabar-se…
Os não fumadores pertencem a uma minoria. Por isso não têm direitos. Ao contrário, os fumadores estão do lado da força, podem entrar em qualquer lugar público e exigir um espaço para poder exercer o seu direito. Por momentos, o mundo tremeu, o governo preparava-se para legislar contra esse direito e determinava que em espaços públicos o tabaco ficava à porta. Calma, não se entusiasmem. Se o governo governa para a maioria pensou, pensou e afinal decidiu que caberá aos gestores dos espaços públicos decidir se devem ou não proibir os fumadores. Quem é amigo, quem é?

24 de Agosto – Dinheiro, dinheiro e mais dinheiro. O jornal anuncia:”O Hospital Distrital de Évora anunciou ontem o arranque das obras de instalação do sistema de ar condicionado, abrangendo a totalidade das 238 camas do edifício do Espírito Santo…”.Em Portugal ainda há hospitais sem ar condicionado? A instalação deste equipamento merece comunicado da administração do hospital? As obras vão demorar um ano? E tudo isto é notícia de jornal? O “sim” às três questões é o mais terrível dos sinais da nossa miséria.
Um filme português que teve 488 espectadores recebeu do Estado 135 mil contos, 518 mil euros. Façam lá as contas, dou-vos algum tempo…, …, …exactamente, são 277 contos, mais de mil euros por espectador que todos nós pagámos…
Apesar de todos as perseguições feitas aos funcionários públicos, a despesa pública cresce a olhos vistos. Como é possível? Inaptidão ou incompetência? Por certo as duas. Quem serão os próximos perseguidos?

26 de Agosto – Numa notável peça jurídica, um Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, falando do “caso Mateus” e do Gil Vicente, concluiu: “pelo exposto, indefere-se o decretamento provisório das medidas cautelares requeridas. A linguagem parece-me curda e, confesso, eu não a domino. Como cidadão médio, o meu objectivo é querer saber se vivo num país com uma língua oficial que um cidadão médio entenda. Tenho dúvidas.

3 de Setembro – Nas primeiras vezes que atravessei a Espanha, admirei-me com a quantidade de campos e tabelas de basquetebol nos jardins, praças e outros espaços verdes. Lembrei-me da história hoje quando assisti em directo ao jogo da final do Campeonato do Mundo da modalidade que se realizou no Japão. A Espanha ganhou.

5 de Setembro – Na nossa sociedade, o silêncio deixou de ter qualquer importância. Em todo o lado nos dão música, seja ao telefone ou em S. Lourenço. O simples gesto de pegar na chávena e beber o café tem de ser acompanhado, por vezes, com um som estridente e, na maior parte das vezes, desajustado. É também sobre isto que fala George Steiner, provavelmente o maior pensador ocidental vivo, em “Os Logocratas” ( Relógio D’Água, Lisboa, 2006, 198 pp. ). As reflexões de Steiner conduzem-nos ao dado central nos últimos anos que tem sido o fim da relação entre o indivíduo e o livro. Não se lê. Não se memoriza. Não se pensa. Não se escreve. Os nossos adolescentes não conseguem ler em silêncio e necessitam do apoio da música como pano de fundo. A frase de Steiner “o mundo da web é a oralidade colectiva” ( p.149 ) significa que esta Internet de uso colectivo em rede representa uma ruptura com a individualidade e com os hábitos clássicos de leitura e escrita. Hoje, desenvolvem-se hábitos que apenas sobrevivem ao ruído e na constante agitação, que necessitam de uma esfera colectiva e que dependem da substituição do livro por imagens, ícones e links.

Pergunta da quinzena: até quando vão ter os moradores do centro histórico a água castanha mais cara do mundo?



Nova Aliança, 15 / 09 / 2006

Rothschild, os incêndios e o Líbano

1.Existirão limites para a interpretação? Uma boa informação será tudo o que importa? Deixem-me contar-vos a história do banqueiro Rothschild. Ao fim do dia 18 de Junho de 1815, alguém lançou um pombo-correio de Waterloo. A ave levava a primeira notícia entretanto chegada a Londres sobre o destino da Europa e aterrou nas mãos do dono, Nathan Rothschild, banqueiro e jogador na Bolsa. E foi para lá que ele entretanto se dirigiu. Encostado a uma coluna, enviou pequenos gestos tácitos aos seus empregados: “Vendam”. Eles puseram-se a vender títulos a uma velocidade tal que rapidamente a Bolsa inteira suspeitou: “Rothschild sabe!”, “Rothschild sabe!”. A notícia propagou-se como um rastilho, Napoleão tinha ganho e Wellington tinha perdido. Por isso, toda a gente se pôs a vender. Nesta confusão, ninguém reparou num “pequeno” gesto e numa mudança de ordem. “Comprem”, disse Rothschild aos empregados. Em poucos minutos, multiplicou por vinte vezes a sua fortuna e a economia da Grã-Bretanha passaria a estar nas mãos da sua família.
Lembrei-me desta história ao ouvir o ministro dos fogos, António Costa, todo ufano na televisão, que este ano é que era, o total da área de terreno entretanto ardida era a menor dos últimos anos, tinham sido feitos estudos, havia mais dinheiro, os bombeiros estavam melhor equipados, a consciência cívica era diferente, tinha havido “uma boa detecção e intervenção no controlo das ignições”, etc, etc. “Rothschild sabe!”, lembram-se? Esta atitude assemelhava-se à de um treinador de uma equipa de futebol que se congratula por não ter sofrido ainda qualquer golo aos dez minutos de jogo. Lançar foguetes antes da festa nunca dá bons resultados. Afinal de contas, estávamos a 5 de Julho. Esse estado ufano e prazenteiro durou pouco. Poucos dias depois, o avião russo Beriev quase se estatelava e, ironicamente, causou incêndios na subsequente operação de emergência, cinco bombeiros chilenos e um português morriam, as temperaturas subiam, os bombeiros queixavam-se da falta de meios, não havia meio de chegar novo material prometido desde Maio, etc, etc. O ministro mudou então de discurso: pois as temperaturas não se podiam controlar ( como se 40 graus fosse estranho em Agosto ), pois os fornecedores não tinham cumprido os prazos, pois os portugueses são uns malandros porque não limpam as matas, pois os populares são uns desleixados, pois… Sinceramente, senti pena do sujeito. Quando a jornalista da TVI lhe perguntou no meio de um incêndio de um matagal do Estado em Oliveira de Frades por que razão esse mesmo Estado não limpa as matas de que é proprietário, nem autoriza as autarquias a fazê-lo, ele respondeu que não estava ali para responder a isso. “Rothschild sabe!” Uma pergunta feita no momento oportuno deitou por terra várias horas de propaganda.

2. Existirão limites para a interpretação? Como se viu atrás, a guerra tem muitos defeitos mas sempre deu, além de excelentes romances, bons negócios. O do petróleo, por exemplo. Sabendo que no conflito em questão ninguém está isento de culpas, o primeiro-ministro libanês chorou numa reunião da Liga Árabe ao condenar um novo “massacre” de 40 civis por um bombardeamento israelita em Houala. Veja-se o vocabulário utilizado: 40 ( número redondo ), civis ( e não terroristas ), em Houala ( e não numa qualquer aldeia vizinha ). Quando acabou os soluços, o líder libanês reconheceu que, afinal, só tinha morrido uma pessoa no ataque.
Há poucos dias, a agência de notícias Reuters teve de denunciar um fotógrafo seu que tinha manipulado imagens das consequências de bombardeamentos israelitas, para as tornar mais chocantes. Outro funcionário da agência tornou-se notícia por enviar mails ameaçadores ao responsável de um site pró-israelita. “Anseio pelo dia em que vos cortem as gargantas”, era a “delicada” e “agradável” mensagem.
Nos nossos jornais, são relatados todos os dias os mortos do conflito. Os israelitas, de um lado, são divididos entre militares e civis. Os do Líbano, do outro lado, são simplesmente civis. Procurando limites para a interpretação, somos levados a concluir uma de duas coisas: ou os soldados de Israel são tão incompetentes que não conseguiram acertar num único terrorista ou então que o Hezbollah não distingue entre civis e combatentes.

Nova Aliança, 31 / 7 2006

24.7.06

Exames, D.Afonso Henriques e a Nova Arquitectura

1.Não sei se os leitores saberão como funciona o processo dos exames nacionais. Ao longo do ano, uma equipa de sábios das várias disciplinas elabora as respectivas provas de exame. Há a esperança de elas respeitarem os conteúdos leccionados ao longo do ano e, por isso, era hábito os alunos conhecerem uma prova modelo, até para se familiarizarem com a estrutura da prova. Este ano, isso não aconteceu. Quando surgiram as primeiras reacções de protesto às provas de Física e Química, a responsável pelo gabinete de avaliação dos exames declarou não existir motivo para queixas, que tudo tinha decorrido dentro da normalidade, que as queixas eram próprias dos que não estavam preparados, etc. Quando um professor não consegue resolver uma prova de exame num terço do tempo de que os alunos dispunham, algo de grave se passa; que dizer então dos que continuam a afirmar não serem capazes de resolver um problema, tal a sua formulação e a impossibilidade de resolução?
Respondendo aos apelos vindos de todos os lados e tendo em conta as médias vergonhosas, lá veio a situação milagrosa: repetir os exames de Física e Química na segunda fase, apurar a melhor nota e concorrer com ela ao ensino superior. Acontece que em praticamente todas as provas houve problemas, o que deixa antever uma profunda injustiça para os alunos envolvidos. E quem deixou as duas disciplinas para a segunda fase tem só uma possibilidade, ao contrário dos que a vão agora repetir.
A um outro nível, por valer apenas trinta por cento da nota final e por se tratar do nono ano, é preciso dizer que a prova de exame de Língua Portuguesa está mal feita porque contraria tudo aquilo que em anos e anos de formação se ensina aos professores. Sobre este ponto, serei mais específico se for necessário. Quando confrontados com esta reacção dos professores correctores de todo o país, a reacção foi: “as regras são estas, os critérios de correcção são estes, os relatórios das anomalias serão discutidos em Setembro”.

2. Foi, no mínimo, hilariante a história do túmulo de D. Afonso Henriques. Na era do simplex, eis que vencei o … complex. Quando se aposta em incentivar a investigação e em atrair investigadores para trabalhar no país, este episódio foi particularmente elucidativo. Um ano inteiro de pedidos de autorização que iam sendo atendidos e merecendo a respectiva anuência esbarrou no último minuto ( tudo estava a postos e a campa aberta ) no capricho burocrático da senhora ministra. Considerando que Afonso Henriques foi um homem essencialmente prático e capaz de criar um país, o que sentiria ele ao observar que, mais de oitocentos anos depois do nascimento de Portugal, o país pouco ter mudado?
Convém lembrar que existe um vasto aparelho público de institutos, direcções-gerais, gabinetes de estudo e secretarias de Estado que custam anualmente uma soma muito avultada ao povo português. Eles têm poderes delegados para tomarem decisões e cumprirem as responsabilidades que lhes foram confiadas nos termos da lei. Sabendo isso, a “pouco avisada” investigadora subiu todos os degraus, conseguiu todas as autorizações mas terá cometido o assinalável erro de não pedir uma audiência à senhora ministra.
Mesmo que esta tenha decidido solicitar mais informação sobre a investigação, isso seria passar um atestado de incompetência e de falta de confiança nas estruturas que estão na sua dependência. Em Portugal, parece que os ministros têm de meter o bedelho em tudo. Lembram-se do simplex?...
3. Com as famosas e demoradas obras do Aquapolis ( que terão o teste final nas próximas cheias ) pensava que um dos objectivos fosse o aprofundar dos laços que nos ligam ao Tejo. Erro meu. Se o leitor entrar pela margem norte e aproveitar para beber um simples café numa das instalações existentes, verificará que, sentado à mesa, fica com uma excelente perspectiva do Rossio mas o rio está tapado. Está tapado porque em vez de vidros altos que dariam uma visão magnífica do conjunto envolvente, a parede foi dividida ao meio ficando a barra divisória ao nível dos nossos olhos. Depois da construção da Pousada da Juventude sem uma janela ou uma varanda de frente para o rio, eis que surge outra opção insólita. Como em algumas rotundas que por aí pululam, o grave não é que estas coisas existam, o grave é que os seus autores tenham recebido dinheiro por elas.

Nova Aliança, 21 / Julho / 2006

13.7.06

Palavras, Os futuros patrões portugueses e o preço da vida humana

1. Poderão as palavras significar aquilo que não são? Poderão elas transmitir o ininteligível? Quando recentemente o ministro da Saúde refutou algumas críticas em plena Assembleia da República e que lhe eram dirigidas por deputados da oposição, salientou que “o facto de poder haver mais doentes em lista de espera pode ser bom” por indiciar que a “disponibilidade dos serviços aumenta”. Parece assim existir vantagens numa lista de espera que cresce a olhos vistos, basta ouvir o ministro que, pasme-se, diz estas coisas sem se rir. Mais à frente, questionado sobre a criança portuguesa que morreu em Badajoz depois de ter para ali sido transportada desde Elvas, o mesmo ministro afirmou que não se tratava de uma criança, “mas de um feto inviável”. Um “feto inviável”? E ninguém reage?? E na Finlândia, as palavras também se usarão assim?

2. Uma análise cuidadosa da recente proposta de alteração do Estatuto da Carreira Docente revela que a palavra “ensinar” não aparece uma única vez no documento que tem 55 páginas. Mesmo a palavra “ensino” aparece apenas como qualificativo oficial ( “estabelecimento de ensino”, “ensino básico” ). Já a palavra “aprendizagens” aparece 13 vezes, no singular e no plural. O ponto 2 do Art. 36º, referindo-se às funções dos professores, não fala em ensinar, mas sim em “identificar saberes e competências-chave dos programas”, “desenvolver situações didácticas” e criar”situações de aprendizagem”. Entre outros, são deveres dos docentes: “Trabalhar em equipa”, “Colaborar com as famílias” e “Conceber respostas inovadoras às novas necessidades da sociedade do conhecimento”. O leitor tem todo o direito de não acreditar, por isso lhe peço que procure em www.min-edu.pt. E na Finlândia, também será assim?


3. O anúncio passa todas as noites em nossa casa. Serve para promover o TMN Mail, um serviço que permite consultar o correio electrónico a partir do telemóvel. A coisa passa-se assim: um jovem executivo chega ao seu trabalho e, depois de cumprimentar a chefe, volta a sair à socapa pala porta por onde entrou. Encontramo-lo então numa espécie de esplanada solarenta, rodeado de belas mulheres bronzeadas e em bikini. É aqui que entra o TMN Mail: o telemóvel é suficiente para estar ligado à sua empresa e, quando a chefe o convoca para uma reunião daí a 20 minutos, o nosso executivo acompanhado por outros sai disparado da esplanada e ainda chega a tempo da reunião. No nosso sofá compreendemos bem a motivação que a TMN apresenta aos seus clientes para a assinatura do novo serviço. E ela é o jeito que dá para enganar o patrão. No fundo não nos devemos surpreender, o trabalho afasta-nos das esplanadas, leia-se, dos prazeres desta vida. Considerando que este jovem executivo de hoje será o patrão de meia-idade de amanhã, deveremos ainda ter esperança. E na Finlândia também foi assim? Continuamos prazenteiramente na cauda da Europa mas atenção, temos mail no telemóvel…

4. Pedrito de Portugal foi multado em 100.000 euros por ter morto um touro na arena. Quando nos recordamos que por cada vítima do acidente de Entre-os Rios o Estado pagou 50.000 euros, que deveremos concluir?...Isso mesmo, caro leitor. Lembro o caso ao ler que um grupo de activistas portugueses se propõe ir a Pamplona protestar contra as tradicionais largadas de touros que, por esta altura, ocorrem naquela cidade de Navarra. Como já protestam há algum tempo e ninguém lhes liga, decidiram agora ser mais criativos e prometem correr nus pelas ruas ao lado dos bois, só com chifres de plástico na cabeça. Tenho uma sugestão a fazer: como em Abrantes a água que sai das torneiras na parte alta da cidade é castanha embora custe o mesmo da cristalina ( já agora, só deixaremos de ter água castanha quando o próximo presidente da câmara habitar na zona? ) seria interessante ter uma largada humana de activistas em pelota pelas ruelas abrantinas. Afinal de contas são ambientalistas. Que tal? Na Finlândia, de certeza que as coisas não se passam assim… Um último pormenor: podiam substituir os cornos por duas garrafas de água. Cristalina, claro…
Nova Aliança, 08 / 07 / 2006

A Ética de José Luandino Vieira

O nome do escritor angolano Luandino Vieira, galardoado com o Prémio Camões, deve ter deixado muita gente perplexa. O autor de “Luanda”, afinal de contas, não publica nada de novo desde o início dos anos 70. Como entender então a justeza do prémio?

Luandino Vieira ( aliás, José Vieira Mateus da Graça ) nasceu em Vila Nova de Ourém ( Portugal ) em 4 de Maio de 1935, contando, pois, 71 anos. Com três anos foi com os pais para Angola, onde, por envolvimento em movimentos nacionalistas, seria preso pela Pide, em 1959. Já nessa altura, em homenagem a Luanda, adoptara o pseudónimo de Luandino. Libertado, voltaria dois anos depois à prisão, sendo em 1964 transferido para o terrível campo de concentração do Tarrafal, por onde, desde os anos 30, tinham passado inúmeros antifascistas portugueses. Aí descobre Guimarães Rosa, o escritor que mais o influenciou, e aí escreve a maioria da sua obra. Com destaque para Luuanda ( 1963 ), que, distinguido em 1965 com o Prémio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores, levaria ao encerramento daquela instituição, acusada de «traição à Pátria», após o saque e a destruição pela Pide da sua sede. É a história de um Domingos Xavier que morre lentamente, depois de passar pela mão dos cipaios: “Nunca fizera mal a ninguém. Só queria o bem do seu povo e da sua terra. E por lhes querer bem não falou os assuntos do seu povo nem se vendeu. E por querer lhes bem o mataram”. Há aquele gosto de uma escrita em português com a marca indelével do angolano, tal qual se fala, mais os seus termos específicos para uma realidade diferente que, afinal, teve, tem e terá de conquistar a sua expressão. É um gosto. E há um glossário, ideia de louvar sempre que nos textos surgem termos que escapam aos regionais ou que são de difícil esclarecimento, mesmo nos dicionários. Cumpridos mais de dez dos 14 anos a que fora condenado, durante os quais escreveu oito dos dez livros até agora publicados, Luandino Vieira é libertado e transferido, com residência fixa e vigiada, para Lisboa. Regressa a Angola após o 25 de Abril de 1974, mantendo uma militância activa no MPLA até pelo menos 1979. Em 1992 volta a Portugal, passando a viver primeiro no Convento de São Payo (Vila Nova de Cerveira), propriedade do seu amigo, o escultor José Rodrigues, e mais recentemente nas suas imediações. Entretanto, planta árvores, trabalha na agricultura, chega a levar as ovelhas a pastar pelos montes.

O escritor é o segundo angolano a ser distinguido com o Prémio Camões que distinguiu ainda oito portugueses, sete brasileiros, e um moçambicano. O júri foi constituído pelos brasileiros Ivan Junqueira e Evanildo Bechara , as portuguesas Agustina Bessa-Luís e Paula Morão , o moçambicano Francisco Noa e o angolano José Eduardo Agualusa . E foi este último que apresentou a proposta da atribuição do prémio a Luandino. Tal proposta circulava há muito nos bastidores mas este manifestara a intenção de, enquanto não tivesse um novo livro, não o aceitar, caso lhe fosse atribuído.

A verdade é que, de uma forma natural, Luandino recusou mesmo o prémio pecuniário de cinquenta mil euros. Houve quem tivesse falado do seu horror à celebridade, elogiando ao mesmo tempo o seu desapego material. Julgo que a decisão do escritor ultrapassa esta questão. No fundo, penso que tal atitude é “só” a ilustração da alta noção que Luandino tem da sua responsabilidade perante a escrita. Se há dez anos o escritor disse e escreveu que recusaria o Prémio se este lhe fosse atribuído, “dado não publicar nenhum novo livro há muito tempo”, estava-se mesmo a ver que, com toda a sua coerência, também agora ele recusaria o Prémio.

Fica claro que Luandino recusa o Prémio não por falsa modéstia mas por lhe parecer despropositado que, enquanto surgem novos escritores e literaturas africanas, lhe seja atribuído o mais alto galardão que distingue escritores actuais de língua portuguesa, nas suas diversas variantes, estando ele silencioso há décadas.

Luandino invoca “razões pessoais e íntimas” para a posição que tomou e fechou-se na sua “concha”. Calmamente aguardará que seja o tempo – e os seus leitores - a fazer-lhe a justiça de um reconhecimento maior.

Embora ainda não publicado, esse seu novo livro já existe, de facto. Está no prelo, chama-se O Livro dos Rios, primeiro tomo de uma trilogia intitulada De Rios Velhos e Guerrilheiros, e os seus editores projectam lançá-lo, em Luanda, no próximo dia 11 de Novembro, data da independência de Angola.



Nova Aliança, 24 / 06 / 2006

Futebol e Parlamento, Portugueses do Hino e Fecho de Maternidades

1. Se os deputados da Nação serviram de exemplo, então o país deve ter parado anteontem, dia 21 de Junho. Esquecidos já do “mau exemplo” que ofereceram ao país no dia em que faltou quórum lá no sítio para votar umas leis, atiraram para longe as promessas de “repensar” a imagem que os portugueses têm dos seus políticos. Aquelas cabeças não fizeram por menos: no dia do jogo entre Portugal e o México, os senhores deputados não apareceram à hora marcada para o trabalho habitual. Sem hesitações, decidiram antecipar os trabalhos e adiar as comissões parlamentares para horas mais apropriadas. Depois das benesses a vários títulos ( o caso das multas perdoadas é significativo ), este é mais um exemplo de seriedade e rigor que o país regista e que deve ter seguido por qualquer profissional. Embora escreva alguns dias antes, espero que os juízes tenham estado fora dos tribunais, os médicos fora dos hospitais, os professores fora das escolas, os operários fora das fábricas e os trabalhadores dos serviços fora dos respectivos locais de trabalho. Espero ainda que os loucos tenham saído dos hospitais e os criminosos das prisões.
Tal situação não foi bem pensada. Havia uma solução mista que certamente agradaria a muitos e que ia ao encontro dos que têm uma grande capacidade de trabalho e conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Bastaria que se montasse um ecrã gigante em plena Assembleia da República. O próprio espaço físico adaptar-se-ia à famosa “onda” mexicana. O senhor presidente da Assembleia trataria de servir as imperiais e se o primeiro-ministro estivesse presente, encarregar-se-ia dos tremoços e dos amendoins. Digam lá que não era bem pensado…

2. Quando ainda está fresca na memória de todos a história das bandeiras nacionais com publicidade à mistura, seja a bancos ou a estabelecimentos de electrodomésticos, soube-se que foi negada a nacionalidade portuguesa a uma mulher indiana, casada com um português e com filhos nascidos e educados em Portugal.
O facto de falar fluentemente a nossa língua e de viver há mais de dez anos em Portugal foram insuficientes para que o Tribunal da Relação de Lisboa considerasse a existência de uma ligação efectiva à nossa comunidade. Falhas? A cidadã não demonstrou conhecimentos de História de Portugal, não foi capaz de nomear figuras públicas da cultura portuguesa e mostrou ignorar o hino nacional.
Assim de repente fico a pensar se estes parâmetros levariam uma grande percentagem de portugueses a conseguir a nacionalidade lusa. Parece-me que não. E não posso deixar de lembrar a prontidão com que se atribui a nacionalidade em alguns casos ( como o do futebolista Deco ) que ignorarão os vultos da cultura, as batalhas mais célebres e que do hino apenas se lembram das “armas”. Não falando já da sua ligação matrimonial nem nos descendentes portugueses, dez anos é realmente muito tempo. Tempo suficiente para conseguir a nacionalidade portuguesa. Se a senhora gostasse de futebol e colocasse uma bandeira na janela, isso convenceria o Tribunal?

3. Em Elvas, no primeiro dia do encerramento dos respectivos serviços de obstetrícia, uma mulher enviada para Portalegre perdeu o filho. A utente em causa foi transportada durante cinquenta quilómetros numa ambulância sem quaisquer condições e não foi acompanhada por um profissional devidamente habilitado para lidar com a situação. Num país decente e sério o primeiro-ministro e o ministro da pasta já se teriam demitido e aguardariam calmamente o processo judicial. Assim…


Nova Aliança, 10 / 06 / 2006

6.6.06

Tribunal de Menores, 14º Mês e Carrilho

1. Expliquem-nos, se faz favor, como se fôssemos muito burros: uma menina, Mónica, de 12 anos, foi retirada à mãe devido a desleixo, especialmente na higiene, por decisão do Tribunal, e a Comissão de Menores da sua área de residência não sabia sequer da existência do caso?

Respondam-nos: outra criança da mesma progenitora ficou à sua guarda alegadamente por ter apenas três anos – piolhos, pulgas e tudo o que esses parasitas indiciam só causam dano a partir de que idade?

Depois, a instituição onde a criança estava interna: então a Mónica tinha uma consulta no hospital, na manhã de uma quinta-feira, e a instituição autorizou-a a permanecer, de quarta para quinta-feira, na casa materna, de onde fora retirada? Mais: o seu cadáver só foi descoberto na madrugada de sexta-feira – alguém, responsável pela dita casa de acolhimento, se inquietou com a sua ausência injustificada?

Já agora, que iniciativa tomou para procurar uma menor que estava à sua guarda? Mais e muito pior: a criança faltou à escola na quinta-feira – esse facto desencadeou algum sistema de alerta? E se tivesse desencadeado, poderia Mónica ainda ser salva?

De cada vez que mais uma criança em risco morre no nosso país, a reacção da Imprensa tende a esbater-se perante o ‘déjà vu’. Nada há de mais errado: cada caso dramático grita ainda mais alto que a responsabilidade é do sistema e, em cada caso, de pessoas concretas que o deveriam servir.

2. Discretamente, na coluna da esquerda da primeira página do “Expresso”, surge a notícia: “O secretário de Estado do Orçamento, Emanuel dos Santos, alertou ontem em Coimbra para a possibilidade de os pensionistas deixarem de receber o subsídio de férias, para ajudar a equilibrar o Orçamento de Estado. Uma decisão que não será fácil, mas poderá ser inevitável, disse”. Mais tarde, o senhor veio desmentir que tenha dito o que disse ou, pelo menos, que estivesse a pensar no curto-prazo, embora repetisse que, “em teoria”, a medida deve ser pensada.

Não sei se estão a compreender esta forma de fazer política. Atira-se uma ideia, por mais espatafúrdia que pareça, para o ar com o objectivo de avaliar a sua recepção. Uma espécie de deitar barro à parede, a ver se pega. Algo que é feito à sucapa, clandestino e silencioso. Não há explicações nem especiais cuidados na sua divulgação. Falamos de que pensionistas?

Daqueles que recebem duzentos e trezentos euros por mês, normalmente trabalhadores agrícolas que habitam no Portugal profundo e não só e que vivem com o mínimo possível? Estes contam com o subsídio de férias para equilibrarem as despesas e pagarem as suas dívidas. É a estes que o Governo, preocupado com o equilíbrio das contas públicas ( embora não se compreenda como, apesar de tantas medidas, a situação económica estar cada vez pior de acordo com todos os relatórios, nacionais e internacionais ) quer cortar o subsídio de férias?

Ou falamos dos pensionistas que recebem milhares de euros mensalmente, que beneficiaram muitos deles de regimes especiais que possibilitaram a reforma aos quarenta e poucos anos? Aqueles que, como os deputados e os autarcas, atingem valores inimagináveis e conseguem a reforma com alguns anos de serviço?

Então agora “as pessoas ( já não ) têm de estar em primeiro lugar”? Então agora “todos os sacrifícios pedidos ( não ) precisam de ter em conta a dignidade mínima do modo de vida da população”?

Ficarei atento para ver se os membros do Governo serão os primeiros a dar o exemplo, prescindindo do 14º mês e trocando as férias no Quénia, na Suiça, em Cancun ou na Tailândia por um destino mais nacional como a praia do Meco.

3. Pensei que me estavam a gozar mas parece que é mesmo verdade. Pedi a duas pessoas que compraram o livro de Manuel Maria Carrilho que me dissessem que nomes ele me chamou. Garantiram-me que o analisaram à lupa, procurando em cada parágrafo um pequeno impropério, um adjectivo violento, um comentário agressivo sobre a minha pessoa. Nada! Apetece-me perguntar: onde é que eu falhei?

Por estas e por outras é que me passou pela cabeça acabar com esta coluna: uma pessoa esforça-se, escreve artigos violentos, utilizamos expressões como “egocêntrico”, “pavão”, “nariz empinado”, “projecto político”, e o que recebo em troca? O silêncio. Dizem-me que trinta e sete jornalistas e onze comentadores são nomeados no livro, vítimas de traulitada, má-língua e acerto de contas.

Ninguém me acusa de ter sido comprado por Cunha Vaz, de ser movido por uma sanha persecutória, de estar movido pela inveja que nos impede de ver a luz que se liberta do seu cerebelo. Por favor, Manuel Maria, bem sei que este é um jornal regional e o meu nome não é conhecido mas não se poderá arranjar um insulto só para mim?

Onde é que eu falhei?...


Nova Aliança, 26 / 05 / 2006

16.5.06

Uma imagem mil vezes repetida e o mau-perder dos fumadores

1.Existem diversas formas de intoxicação. Se preferir ler algumas linhas sobre o tabaco, fumadores activos e passivos deve o leitor dirigir o seu olhar e a sua atenção directamente para o ponto 2) deste texto. Todavia, se quiser sorrir por uns momentos e conhecer outra forma de intoxicação, continue a ler.
De vez em quando surgem erros informáticos que abalam temporariamente alguns sites da Internet. Confesso que a princípio julguei estar na presença de um caso desses mas rapidamente dei conta que não havia engano nenhum. Quem se deslocar a www.sejd.gov.pt – Portal da Secretaria de Estado da Juventude – e aceder a uma área chamada “Em Foco”, encontrará mais de cinquenta fotografias ( não são cinco, são cinquenta ) fotografias de Laurentino Dias, o próprio Secretário de Estado. Nessas admiráveis fotos encontramo-lo a discursar, a descerrar, a conviver, a ouvir, a premiar, a apreciar, a exclamar, a reclamar, a inaugurar, a responder, a criticar, a lamentar, a festejar. Títulos como “Laurentino e a lei de bases” ou “Laurentino Dias na Argélia para aprofundar a cooperação são bem exemplo do ridículo a que se chega.
Parece que o referido portal foi feito para um desfile de poses propositadamente para confirmar a tendência propagandística. O facto de não existirem duas fotografias iguais pressupõe já alguma atenção na escolha e um bom domínio do programa informático. Por outro lado, este episódio mostra que o projecto “Simplex” está realmente a funcionar: é verdade ou não que não existe nada mais simples do que encher um site sempre com o mesmo protagonista?
Se repetir mil vezes a mesma mentira faz dela uma verdade, neste caso repetir cinquenta vezes o mesmo rosto não faz dele um bom governante.

2.Se o leitor veio directamente para este ponto não sabe o que perdeu em cima mas, tudo bem, a escolha foi sua… Estávamos então a falar de intoxicações. Ora andam aí uns fumadores militantes a protestarem desesperadamente contra as medidas de protecção dos não-fumadores. Eles confundem propositadamente o inquestionável direito que tem o cidadão a não inalar involuntariamenteo fumo dos outros com uma pretensa guerra do “politicamente correcto” contra o coitado do fumador.
Se se seguisse o ridículo argumento de que o não-fumador poderia evitar os sítios com fumo, então bastar-lhe-ia evitar as entradas dos cinemas, dos teatros e dos hotéis, os restaurantes, as discotecas, os bares, os centros comerciais, as salas dos professores e grande parte dos locais de trabalho.
Por ser verdade, é preciso dizer que o “fumo público” é cancerígeno e indutor de crises respiratórias. Ele é constituído pelo fumo que sai directamente do cigarro em combustão e pelo fumo exalado pelo fumador activo. Actualmente, a evidência científica diz-nos que é possível medir o fumo ambiente e as suas consequências na saúde de duas maneiras: a primeira é através da detecção dos componentes do fumo do tabaco na atmosfera ( estudos realizados em bares com espaços dedicados a fumadores e não-fumadores detectavam as pequenas partículas de fumo do tabaco em todo o recinto por igual, provando assim a inutilidade prática da divisão dos espaços ); a segunda é através da detecção de biomarcadores no sangue, na urina e na saliva dos não-fumadores ( está provado que um bebé de colo exposto a mãe fumadora de um maço de cigarros por dia inala fumo equivalente a 3-4 cigarros inteiros ).
Não faltam estudos desde 1981 sobre a história dos fumadores passivos. Todos eles mostram à evidência uma associação entre o fumo passivo e o cancro do pulmão em dezenas de milhares de sujeitos. Para além disso, investigação clínica veio a determinar que o fumo passivo causava outras doenças em adultos. Os estudos relacionando a doença coronária com o fumo do tabaco são muito claros nas suas conclusões do efeito prejudicial do tabagismo.
O que aqui se defende não é proibir o uso do tabaco mas proteger apenas quem não fuma. Se é difícil para um fumador não fumar num restaurante, também é difícil pagar os impostos cada vez mais altos ou respeitar os 120 km/h na auto-estrada. A verdade é que vivemos em sociedade e nela existem as restrições da liberdade. Chamamos-lhe civilização!

Alfornelos, Centro Comercial de Belém e o falecido notificado

1.Em Alfornelos os moradores constituíram uma associação cívica. O problema é que com a articulação de três vias de tráfego muito intenso ( IC17-CRIL, IC16-Radial da Pontinha e Radial de Lisboa ) e a conclusão da CRIL, entre a Buraca e a Pontinha. Aquela localidade, onde vivem umas quinze mil pessoas, transformar-se-á numa autêntica ilha cercada por auto-estradas por todos os lados. Está prevista a passagem diária de duzentos mil automóveis e a referida associação cívica tem feito tudo o que está ao seu alcance para evitar este autêntico “encurralamento”, um claro gueto de poluição ambiental, sonora e visual, de graves riscos permanentes de vida e de deterioração total da dessa qualidade num local onde vivem também jovens e idosos.
Defende esta associação uma solução que, para além de ser a de menor custo, a melhor e a mais segura, é “a única que respeita as regras mínimas de segurança rodoviária e possui um traçado de fácil execução técnica”. Repare-se que na procura de uma solução, esta associação não corta estradas, não chama as televisões, não provoca desacatos, não oferece espectáculos em frente da Assembleia da República. Pelo contrário, os habitantes criaram uma associação cívica, encomendaram um projecto alternativo, fizeram exposições, contactaram as entidades responsáveis, invocaram o direito aplicável nestes casos. O que ganharam com isso?
Depois de vermos o dinheiro gasto com uma passagem de sapos por debaixo da CRE; as “pegadas dos dinossauros” em Carenque, também na CREL; a interrupção na construção da estrada em Bragança devido ao aparecimento de uma colónia de ratos e outra de morcegos, concluímos que o problema de Alfornelos é precisamente a ausência de uma colónia de formigas raras. Existisse ela e tudo seria feito para se agir de outra maneira.
Assim, fácil se torna verificar que os habitantes de Alfornelos não contam para nada nem para ninguém. Ao contrário das formigas…

2.O Centro Cultural de Belém acabou de ser oferecido ao comendador Berardo. Não, a frase está correcta e não está invertida. Das quatro mil obras de arte da colecção do empresário, apenas 862 fazem parte do protocolo e passarão a ocupar o centro de exposições do Centro Cultural de Belém ( CCB ), totalmente cedido a uma nova fundação privada.
Tal fundação terá como presidente honorário e vitalício o comendador Berardo, que fica com o poder exclusivo de nomear ou destituir o director do futuro museu, que terá o seu nome. Os dois membros do Conselho de Administração, designados por Berardo, serão os únicos que podem deliberar a fusão, cisão, dissolução ou transformação da fundação. Esta mesma fundação será subsidiada pelo Estado, bem como os custos logísticos, manutenção e recuperação assim como os custos inerentes ao funcionamento do museu que serão suportados pelo CCB. Este vende os bilhetes, mas o dinheiro é para a fundação.
O protocolo prevê o investimento anual de 500mil euros para aquisição de novas obras mas, embora assinado, não se sabe como será o museu, quem o vai dirigir e qual o valor do reportório artístico. Ao fim de dez anos, a colecção pode ou não ficar em Portugal. Se o Estado a quiser comprar, terá de ser, pelo menos, pelo valor a ser determinado por uma leiloeira. Mas o comendador não fica obrigado a vender.
Desta forma, Lisboa fica sem um local capaz de acolher certames internacionais e sem acesso ao circuito internacional de exposições. Berardo teve tudo o que queria e pode continuar a expor pelo mundo fora.
Nós pagamos para ver o CCB transformar-se em Centro Comercial Berardo. Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte. O comendador é um espertalhão. Vocês sabem do que eu estou a falar…

3. Num acto verdadeiramente inqualificável dos Serviços do Ministério Público de Lagos, foi enviada uma notificação que chegou, via postal, no dia 29 de Março deste ano. O destinatário já tinha morrido mas este é um “simples” detalhe. A carta é bem explícita: “Notifica-se V. Exª, na qualidade de Falecido, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados: Para no prazo de 10 dias, vir aos presentes autos, levantar a certidão requerida.” O que irá acontecer aos autores? Evidentemente, nada…

26.4.06

Onde se fala de bancos, escravatura e ilhas citadinas

1. Num daqueles exercícios recorrentes na imprensa portuguesa, surge mais um inquérito sobre a vida pessoal dos nossos governantes. Desta vez, uma revista económica ( a “Dia D” do Público ) questiona os nossos ministros sobre as aplicações que fazem do seu dinheiro pessoal. Depósitos a prazo e certificados de aforro são a prova exemplar da poupança e de aversão ao risco. Todos eles dão mostras de serem muito certinhos, sem ideias megalómanas de investimentos “malucos”, leia-se “agressivos”. Tais evidências mostram que, no meio da onda reformista e do choque tecnológico, está um português rural e medroso, capaz de enfiar o seu dinheiro no colchão.

Repare-se que estamos a falar do dinheiro pessoal porque se passamos para os dinheiros públicos, aqueles que nos pertencem, a coisa muda de figura. Aí existe uma coragem que nos deixa a todos surpreendidos. Aí já pode existir “risco”, “choque”, “inovação” e “ambição”. Como estão à porta mais dois elefantes brancos – a Ota e o TGV – espera-se que a maioria na Assembleia da República faça mais uma adenda constitucional de modo a que se possa ir aos colchões ministeriais buscar os dinheiros das derrapagens que aí chegarão. Vamos nessa?

2. A leitura de jornais em Portugal é inversamente proporcional ao tempo gasto frente à televisão. O jornal dá-nos as boas e as más notícias, a televisão oferece-nos os “circos das celebridades” e os programas de anedotas. Neste campo sabemos tudo e somos tudo menos ignorantes.

Os jornais ainda conseguem surpreender e ensinar-nos alguma coisa. Como esta, que li há dias em letras pequeninas: “O Governo brasileiro libertou os mais de quatro mil homens que foram encontrados, em 2005, a trabalhar como escravos em fazendas da Amazónia. No entanto, organizações humanitárias receiam que haja 250 mil brasileiros nessa situação.”

Estão a ver? Breves linhas esquecidas numa página interior informam-nos que num país que fala a nossa língua existem quatro mil homens a trabalhar como escravos. Mas o número pode aumentar e aumentar para um quarto de milhão, seja lá o que isso for...

Na televisão, mais uma anedota e mais uma acrobacia. Mas a notícia fica cá dentro, faz-nos abrir a boca de espanto, talvez indignarmo-nos mas não poderemos dizer que não sabemos.

Misérias, desgraças, tristezas. Os jornais vivem também dos “jackpots” e dos totolotos, das vitórias no futebol e dos colunáveis mas vejamos novamente o que surge noutro canto escondido do jornal: “Precisa de um canalizador ou simplesmente de um arranjo de bricolage? Os moradores do município de Sintra que necessitem destes serviços e não os possam realizar têm ao seu dispor a Oficina do Idoso, um projecto que visa prestar apoio domiciliário para a realização de pequenas reparações. O melhor de tudo: é um serviço gratuito, realizado por funcionários da câmara.”

Esta notícia ensinou-nos um pouco mais sobre o mundo, o “nosso” mundo. E mostra que no século XXI não há apenas escravos. Ainda bem.

3. A Estrada Nacional 128 entre Miranda e Bragança está velha, gasta e ultrapassada. Por isso, foi escolhido e iniciado um novo traçado que oferece mais segurança e qualidade de vida aos utilizadores. Contudo, as obras pararam porque foi descoberta no percurso uma espécie rara de morcegos. Novos acidentes na velha estrada e as obras recomeçaram. Por pouco tempo porque as associações ambientalistas verificaram que um rato ficaria com o habitat destruído. Nova interrupção e os responsáveis afirmam que um eventual novo traçado que passe ao lado dos territórios dos morcegos e dos ratos fará atrasar a obra para “nunca menos de 2011”.

Significa isto que estamos em presença de uma forma de fundamentalismo que urge combater. Com toda a atenção dada às espécies em vias de extinção corremos o risco de qualquer dia ninguém se preocupar com as necessidades básicas dessa verdadeira “espécie em vias de extinção” que é o Homem, se é que ele “merece” ser preservado...

4.4.06

Fumadores e Banqueiros

1. O combate contra o tabagismo está na ordem do dia e devemos meditar bem no exemplo que nos chega da Califórnia. Assim, a pequena localidade de Calabasas pode orgulhar-se, desde a passada semana, de ter uma das leis mais «avançadas» do planeta contra tal problema.
Aprovada por unanimidade no Conselho Municipal da pequena localidade de 25 mil habitantes, a lei proíbe o fumo em todos os espaços públicos, interiores e exteriores, incluindo esplanadas, campos de futebol, paragens de autocarro, parques, jardins e piscinas em condomínios privados. Por enquanto, os cidadãos de Calabasas ainda podem fumar dentro dos respectivos automóveis, mas só se os vidros estiverem fechados, de forma a não incomodarem eventuais passantes.
Tais medidas não são propriamente uma surpresa e não causará particular espanto a ninguém quando a interdição atingir residências privadas. Já há casos de apartamentos que não são alugados a fumadores e também já aconteceu um processo judicial colocado por um norte-americano que se sentia prejudicado pelo vizinho que fumava no jardim. Alegava o queixoso que o vento transportava o «veneno» até à sua residência... Nos tempos que correm, nos Estados Unidos, os fumadores juntam-se em pequenos grupos de pessoas nas esquinas enquanto são olhados com desconfiança pelos transeuntes.
Sem entrar em situações de pura paranóia, era bom que em Portugal se defendessem os direitos dos não fumadores. Basta que prevaleça o bom senso e se encontrem soluções equilibradas.
Registe-se, a finalizar, que os habitantes de Calabasas que infringirem a lei poderão incorrer em multas até 500 dólares – mas só se forem reincidentes. À primeira, levam apenas uma «repreensão amigável» e uma caixa de pastilhas de mentol...

2. Atenta à actualidade, a maioria dos portugueses não sabe o que é uma OPA. Ouve falar destas manobras bolsistas e financeiras com a mesma estranheza com que ouve falar da descoberta de novas estrelas a muitos anos-luz de distância. É através dos jornalistas e analistas, e em particular dos jornalistas e analistas económicos, detentores dos códigos de acesso e do vocabulário técnico, que os portugueses vão sabendo destas movimentações e operações bancárias de grande envergadura, e vão sabendo que de um dia para o outro podem ter um seguro ou ser clientes de um banco que passou ser refém de outro banco, ou que se transformou noutro banco, sem chegarem a perceber as diferenças implícitas, vantagens ou desvantagens da mudança até para si próprios. Passou-se isto com a venda dos seguros do Banco Comercial Português à Caixa Geral de Depósitos. Na maioria dos casos, os detentores desses seguros apenas viram mudar a tutela institucional das companhias, sem chegarem a perceber o que mudou no clausulado dos contratos e aplicação desse clausulado pelas seguradoras.
O consumidor português, incluindo o consumidor de produtos financeiros, é passivo e obediente embora, lá bem no seu íntimo, tenha os economistas em boa conta Agora que a economia e as movimentações micro e macroeconómicas começam a destronar a política (há muito destronaram a cultura, por exemplo) e que todas estas OPAS seguidas, as da Sonae e outras à PT, a do BCP ao BPI invadem o espaço noticioso diário, chegou a altura de os portugueses começarem a exigir mais informação e não contarem apenas com os jornalistas e comentadores. Não é suficiente ouvir os velhos “chavões”, que a economia portuguesa está a dar «sinais» de agitação, e que essa agitação parece ou pode ser benéfica para a banca, a Bolsa, a crise ou o consumo. Mas, entre a Bolsa de valores, com B grande, onde estas transacções são feitas, e a emagrecida bolsa dos consumidores, existe pelo menos uma diferença de escala.
Colocam-se então várias perguntas: todas estas OPAS reflectir-se-ão num acréscimo de qualidade de serviços para o consumidor? Numa poupança de meios? Num mercado mais competitivo e com maior concorrência e menos monopólio lesivo dos interesses dos particulares? Ou estamos apenas e sempre a falar de mais benefícios para os accionistas e mais lucros para a Banca que engorda a olhos vistos, mesmo em tempos conturbados de crise?

Nova Aliança, 31 / 03 / 2006

23.3.06

Exercício de Memória

Para todos aqueles que têm memória curta, proponho uma pequena viagem no tempo. Pequena porque a viagem é curta. Lembram-se do caso Marcelo? Eu lembro. Era o tempo em que o professor entrava pelo serão nos lares portugueses com as suas conversas dominicais. Criticava toda a gente e foi chamado ao gabinete da administração. Não terá gostado e preferiu sair. Levantaram-se logo todas as vozes: perseguição, falta de liberdade de expressão, fascismo nunca mais, a liberdade de imprensa é sagrada, etc, etc. O Presidente da República, com uma lágrima no canto do olho, concedeu-lhe logo uma audiência, que aquilo não podia ser, que era uma injustiça, onde é que já se viu querer calar uma voz livre.

Lembram-se do GIC? Eu lembro. O GIC, que oficialmente nunca existiu, era nem mais nem menos do que o Gabinete de Informação e Comunicação que o governo de Santana Lopes se propões criar e que Jorge Sampaio vetou, a 21 de Novembro de 2004, não tanto pelos sete coordenadores que o gabinete teria mas sobretudo por considerar que “não há défice, antes excesso de presença estatal e governamental nos meios de comunicação”. Sócrates, na oposição, congratulou-se com esta decisão porque “o Governo estava a passar das marcas na tentativa de pressão e controlo da comunicação social”. Opiniões patéticas quando se assiste hoje à cuidadosa gestão da mesma informação. O que antes era desinvestimento, pressão, fascismo, burocracia, agora é progresso, democracia, investimento, o futuro que “amanhã cantará”.

Lembram-se do caso 24 Horas? Eu lembro. A polícia judiciária, a mando do procurador-geral da República, invadiu as instalações do jornal naquele que constitui um verdadeiro atentado à liberdade de imprensa. Frustrado por nada conseguir descobrir, o procurador virou-se contra os próprios jornalistas mostrando que há quem possa fazer tudo o que lhe apetece, até mesmo violar o sigilo profissional dos jornalistas. O senhor juiz do Tribunal de Instrução criminal de Lisboa encarregue da investigação do caso autorizou o acesso aos computadores dos jornalistas, considerando que “a possibilidade de devassa do sigilo profissional é inferior ao crime que está em discussão”. Ora, como é que se pode dizer uma coisa destas? A partir de agora, poderá um jornalista continuar o seu legítimo trabalho de investigação? E o presidente da República? Ficou agora tão preocupado como há uns tempos atrás? Alguém o ouviu?

Lembram-se do que se propõe fazer-se? Eu lembro. Propõe-se mexer no Código Penal e punir todos os jornalistas que coloquem “em perigo” investigações criminais. Mas mais do que isso, a lei que estabelece a inefável Entidade Reguladora para a Comunicação Social equipara os funcionários deste organismo a “agentes da autoridade”, que terão poderes praticamente ilimitados para, sem mandato de captura, enfiarem o nariz nas redacções dos jornais. Noutra altura, qualquer espirro será encarado como uma ameaça democrática a que o regime respondia com vigor. Hoje…

Lembram-se dos terrenos do IPO? Eu lembro. Desta vez, vá lá saber-se porquê, a venda dos terrenos do IPO e a transferência dum hospital com estas características para outro local ainda a determinar não motivou a mais pequena inquietação nas habitualmente enérgicas comissões de utentes e de trabalhadores. Neste caso, tudo parece resumir-se a uns trocados sobre o valor dos terrenos. Outros tempos…

Lembram-se da co-incineração? Eu lembro. O anúncio do início dos testes para a co-
-incineração dos resíduos industriais perigosos foi recebido abulicamente pelas associações e movimentos que, com outros governos, se mostraram especialmente contundentes. Um exemplo. Em Março de 2004, o aeroporto da Ota era para a Quercus “um elefante branco”, em Julho de 2005 era “a única solução viável”. Outro exemplo. A Liga para a Protecção da Natureza (LPN) apresentou em 2003 uma queixa em Bruxelas que levou à suspensão das obras da barragem de Odelouca. O projecto foi remodelado mas em Janeiro de 2005 o presidente da LPN declarava que dificilmente Odelouca poderia ser construída porque a barragem continha “graves distorções ambientais”. Em Junho de 2005, dirigentes da LPN assistiam ao lado do ministro do Ambiente ao anúncio do reinício das obras de Odelouca.

Então que tal a viagem? O sudoku arrastou consigo a moda dos exercícios de memória, convém fazê-los regularmente.

8.3.06

As reformas autárquicas

Queixamo-nos anos e anos que a justiça portuguesa é lenta e depois apanhamos com histórias destas que nos desmentem com todas as letras. Prestem pois atenção.
Era uma vez um funcionário exemplar de uma Câmara Municipal portuguesa. Em dez anos de carreira, nunca faltou ao trabalho. Eis que, num belo dia, sem ninguém esperar, ele dá uma falta injustificada. E logo a seguir outra, e mais uma… Cinco, cinco faltas injustificadas ao exemplar funcionário. Todos se admiraram, onde é que já se viu tal coisa, patati, patatá, houve mesmo um processo disciplinar e, como o funcionário não apresentou recurso, curiosamente, ao fim de duas semanas havia já um relatório final. O assunto foi discutido em reunião de câmara e o funcionário recebeu a adequada punição ( de acordo com o jornal, a segunda mais grave da função pública ): compulsivamente mandado para a reforma. Qual foi o castigo: uma reformazita de mais de três mil euros, nada má para dez anos de serviço…
Duas semanas depois de estar em casa a gozar os rendimentos, este funcionário, prematuramente aposentado mas ainda cheio de força para trabalhar, foi convidado para uma nova função: administrador de uma empresa municipal. O leitor estará confuso e perguntará: de qual câmara? Ora, da mesma, evidentemente. E lá ficou o nosso jovem aposentado a acumular a reforma antecipada de seiscentos e tal contos mensais com mais alguns centos do novo cargo na administração. Digam lá se não existem mesmo momentos felizes…
( Entrementes, continuam a tentar convencer-nos que o país está numa situação difícil, que os funcionários públicos são uns malandros e os únicos culpados da crise e até o governador do Banco de Portugal aproveitou a “crise” para renovar a luxuosa frota automóvel da instituição. Fim do entrementes. )
Esta história não terminou aqui e acabou por ir parar ao tribunal. Existiam alguns pontos obscuros que deviam ser esclarecidos. Então um funcionário tão cumpridor dá repentinamente cinco faltas injustificadas, sofre um processo disciplinar, não esboça qualquer contestação, há uma decisão rapidíssima de passagem à reforma, logo a seguir o convite do mesmo patrão que o “castigara” para um cargo de responsabilidade. Quantas coincidências por aqui vão…
Em tribunal, constatou-se a falta de vergonha. Tudo tinha sido bem pensado e mais ou menos combinado e o juiz condenou o homem por abuso de poder. A pena foi só uma multa de 4650 euros, uma verba que um dos seus dois vencimentos pode pagar. Na sala de tribunal, o juiz afirmou que aquele era um procedimento relativamente vulgar na autarquia e eram conhecidos diversos casos semelhantes de “passagens compulsivas à reforma” por faltas injustificadas… É um “esquema” típico da malandrice portuguesa e pomo-nos apensar com os nossos botões quantos funcionários naquela câmara municipal, ou noutras, estão hoje tranquilamente a gozar as suas reformas devido a um qualquer “castigo” por não terem cumprido alguns deveres profissionais. Alguém desdenha um castigo destes?
A parte boa desta história é que, por vezes, a administração pública deste país é rápida: em pouco mais de um mês instaurou-se um processo disciplinar, houve a respectiva instrução e deu-se o veredicto. Coisa rara e eficiente… Para além disto, a justiça funcionou neste caso às mil maravilhas e muito rapidamente: o funcionário foi rapidamente “punido” com a tal reforma e, descoberto o truque, voltou a ser “punido” com uma elevada multa de 4650 euros. Digam lá agora se o crime compensa… ah, um último pormenor, o caso passou-se na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim.

Nova Aliança, 3 / Março / 2006

22.2.06

Bill Gates e Medrões: semelhanças e diferenças

Escrever quinzenalmente tem a vantagem de deixar assentar a poeira dos dias e de se obter um distanciamento que pode ser benéfico ou não. Falemos de Gates, Bill Gates. Ele ficará ligado inconscientemente à aldeia de Medrões, concelho de Santa Marta de Penaguião, distrito de Vila Real. Já lá vamos…
A imagem televisiva, convenhamos, tinha o seu quê de esquisito. Ao centro, metade do Governo, acotovelando-se em pé, diante de uma mesa exígua, fazia em simultâneo uma vénia de 90 graus e sorria para a plateia, enquanto assinava protocolos com a Microsoft. A seu lado, mas ainda assim a uma razoável distância, num canto do palco, o primeiro-ministro sorria também, sentado ao pé do Bill e feliz por poder um dia contar aos netos que tinha estado numa ocasião ao lado do "homem mais rico do mundo". Quem olhasse de repente julgaria que a vénia dos ministros lhes era dirigida a eles, e que tudo aquilo não passava do ritual de vassalagem a um imperador visitante. Tratava-se, contudo e apenas, de um empresário, por maior que fosse a felicidade que ele vinha trazer – leia-se, vender os seus produtos - ao País e que o sorriso estampado na cara dos ministros, durante aquela cerimónia, garantia ser a rodos. Se existirem, como se espera e deseja, mais investimentos parecidos, o protocolo de Estado vai ter de ser revisto, de modo a graduar as ordens de mérito e as consequentes honrarias e salamaleques, consoante o volume de empregos e exportações prometido.
O que choca no meio deste turbilhão é a falta de vergonha nesta obsessão pela propaganda. Existe realmente um departamento de publicidade a funcionar: uma empresa que vai construir, um grupo que pensa fazer, uma multinacional que pensa fixar-se, pessoas que “querem fazer coisas”, acordos de princípio, intenções, ideias que ainda não são projectos, projectos que ainda não são programas, propósitos, promessas de investimento. O famoso “choque tecnológico” tem energia, ciência, computadores, imobiliário, vacinas, móveis. Como não se sabe quanto investimento vem e quanto o governo oferece, será possível assistirmos a duas ou três inaugurações para cada projecto. O que a propaganda não aceita são interpelações em público ao senhor Sócrates como a que foi feita pelo primeiro responsável do dito “choque” a propósito do programa MIT.
Entretanto, coincidindo com a presença de senhor Gates, um canal de televisão decidiu fazer uma breve reportagem em Medrões. Visitaram a escola primária que recebe duas a três dezenas de crianças da localidade e de localidades vizinhas. Trata-se de uma escola tipicamente rural e sem muros. Uma senhora informa que a escola já tem banda larga. Todavia, os alunos têm de se deslocar a pé, alguns a dois ou três quilómetros, porque não existe transporte público, nem mesmo municipal. No Inverno, por aquelas bandas, o frio é mesmo… frio! Como a escola não serve refeições, as crianças têm de ir a casa almoçar e voltar para as aulas da tarde. Quatro percursos, dez quilómetros por dia. O abastecimento de água faz-se a partir de um poço, pelo que os alunos levam de casa umas garrafas de água.
O Presidente da Câmara Municipal de Santa Marta de Penaguião, de forma arrogante ( terá aprendido com quem? ), não via riscos nenhuns na ausência de vedação e, quanto à água, nunca tinha havido problema e se esse era motivo de reivindicação, ele “ia trazer água da companhia”. Garantiu ainda que não haveria transportes camarários, pois a lei “só obriga a assegurar transportes em distâncias superiores a três quilómetros”. Sobre a possibilidade de organização de uma cantina ou sala de refeições, garantiu, incomodado, que “havia planos”. Este senhor, feliz por estar a falar para a televisão pela primeira vez, não escondeu a sua satisfação por ter banda larga.
Enquanto não fecha ( porque neste país as escolas se vêm transformando em unidades lucrativas de produção) a escola de Medrões não justifica o estado em que se encontra. E ela é o exemplo perfeito desta propaganda actual que nos mostra a volúpia e o exibicionismo, que prefere o vistoso e o investimento no que parece moderno. Que orgulho tem o país nas suas escolas aquecidas no Inverno, nos seus transportes escolares, na água potável nas escolas, nas cantinas para estudantes?
As lantejoulas e o pechisbeque encandeiam o país. Bastaria apenas que cada um cumprisse o seu dever.

Nova Aliança, 17 / 02 / 2006

8.2.06

A Gripe das Aves

Num relatório divulgado recentemente sobre os riscos à escala global, visando os anos de 2005 e 2006, o Fórum Económico Mundial recomenda uma compreensão mais sofisticada do problema. Assim, terrorismo e pandemias são os riscos que lideram uma lista de 25 identificados no relatório.
O risco que mais problemas colocará é a mudança climática, enquanto se salienta que os destaques de 2005 como o terrorismo, subida do preço do petróleo, crises orçamentais, pandemia de gripe, doenças como sida / HIV, tuberculose e malária e crises humanitárias, resultantes da vulnerabilidade de muitas partes do mundo a desastres naturais continuarão a verificar-se em 2006. A crescer de importância estão riscos como a mudança climática, a litigação contra empresas, a contrafacção e as expectativas sobre os campos magnéticos. No que diz respeito a este último risco, precisa-se que se se provasse que estes campos tinham efeitos perniciosos para a saúde , mesmo com baixos níveis de exposição, isto poderia ter um “impacto imenso, tanto em termos económicos como sociais”, dada a difusão crescente de aparelhos electrónicos.
Deveremos levar ainda em linha de conta outros riscos como o impacto do comportamento do sol na meteorologia espacial, ou a perda de biodiversidade, “invisíveis e desconhecidos para o grande público”. Os autores do relatório seleccionam quatro cenários de risco: aumentos do preço do barril de petróleo para um nível entre os 80 e os 100 dólares, pandemia de gripe aviária, terrorismo e mudança climática.
Centremos a nossa atenção na gripe das aves. Alguma coisa que tomou o avião na Ásia, fez escala na Médio Oriente e mudou-se de armas e bagagens para o Leste da Europa. Em breve estará nas nossas casas. Deveremos ficar assustados? A resposta é afirmativa. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, 7 milhões de pessoas podem morrer em atroz agonia. As Nações Unidas falam em 150 milhões. Michael Osterholm, epidemiologista americano, fala em 360 milhões.
A ideia de uma pandemia trágica dá que pensar. Primeiro, que o vírus responsável pela morte das aves se propaga para a espécie humana. E, além disso, que a espécie humana é capaz de se contaminar, como aconteceu em 1918 com a famosa gripe espanhola. Cenário improvável. Até ao momento, morreram 60 pessoas em 117 casos de gripe do frango conhecidos. Repito: 60. Na Ásia, onde as populações rurais praticamente vivem no meio das aves e os cuidados de saúde não são os melhores, explica dessa maneira a mortandade - uma mortandade residual, é certo - e, tendo em conta a expressão demográfica da zona, absolutamente ridícula. E entre nós?
Bom, por cá, existe e persiste o nosso hábito mediático que todos os anos inventa uma nova catástrofe para liquidar a Humanidade. Há uns anos, a doença das vacas loucas, pronta para arruinar milhares de vidas, praticamente arruinou os criadores de gado da Europa. Os preços bateram mínimos históricos. Muita gente se converteu ao vegetarianismo. Afinal, a loucura das vacas foi como veio.
A verdade, a cruel verdade, é que nunca se esteve tão bem como agora. Vivemos mais e melhor. A medicina alcançou progressos que seriam impensáveis para os nossos antepassados. Claro que existem situações de miséria, sobretudo em África, onde a fome persiste. Mas até em África o mundo avança: de acordo com as Nações Unidas, a percentagem de povos do Terceiro Mundo que passam fome desceu de 35% em 1970 para 18% nos dias de hoje. Apesar da explosão demográfica.
Sobram as guerras, claro. Mas se pensa que o mundo está menos pacífico, está enganado. A percepção dos conflitos através da comunicação social não significa que os conflitos aumentaram. Pelo contrário: o mundo está mais pacífico e a guerra --a guerra entre Estados e a guerra dentro dos Estados-- foi gradualmente diminuindo nas últimas décadas. Segundo o historiador britânico Niall Ferguson, só nos últimos três anos terminaram 11 conflitos maiores: de Angola ao Ruanda, do Sri Lanka à Indonésia. E nunca, como hoje, existiram tantas democracias na face da Terra.
Não admira que a Humanidade esteja perdida de tédio, criando, recriando e até filmando a sua própria aniquilação física. O clima. As vacas loucas. A gripe do frango. Tudo serve para aliviar o sentimento de culpa que sentimos no meio de tanto conforto.
São horas de jantar e uma voz informa-me que o frango já está assado. Até já. E se o vírus do bicho bater entretanto, por favor, digam que eu estou ocupado.

Nova Aliança, 3 / Fevereiro / 2006

25.1.06

O Mundo da Informação

1. Nunca como hoje circulou no mundo inteiro tanta informação. Serge Proulx, sociólogo e especialista em ciências da comunicação que esteve recentemente em Lisboa para proferir uma conferência sobre a Cibernética, considera ser necessário refundar a educação para enfrentar a overdose de informação. Existirá uma relação directa e automática entre sobrecarga de informação e crescimento de comunicação? Proulx tem dúvidas e evoca o fundador da cibernética, o matemático Norbert Wiener, que aplicou às sociedades um dos princípios da termodinâmica e acreditava que a circulação da informação era a única hipótese de a humanidade sobreviver ao caos. Wiener opõe informação e entropia, pela aproximação ao segundo princípio da termodinâmica: a informação é o que dá forma à organização do real e a entropia é a desorganização. Proulx explica numa das suas obras que a cibernética colocava as máquinas e os seres humanos num plano de igualdade, uma vez que ambos gerem a informação que existe no meio ambiente. Foi quando desenhou um sistema de defesa anti-aérea que disparava antecipando o ponto para onde o alvo iria escapar que Wiener começou a desenvolver o seu conceito de máquina inteligente. Essa máquina era uma máquina retroactiva, ou seja, que tinha um mecanismo de feedback. Proulx, num livro do qual é co-autor com Philippe Breton ( A Explosão da Comunicação, Bizâncio, 1989 ) explica como a crença na informação é, para Wiener, uma resposta à violência da II Guerra Mundial e ao totalitarismo, mas também uma reacção à investigação científica dominada pelos militares, como aconteceu durante o conflito de 39-45 e nos anos da guerra fria. A Internet ajuda-nos a perceber que o problema da comunicação é omnipresente. Hoje em dia, tudo é comunicação. Depois da máquina energética e da máquina mecânica, este é o tempo da máquina informacional. Sinal dos tempos.

2. Uma leitura atenta dos jornais é uma óptima lição para nos actualizarmos sobre um discurso rico em lugares-comuns de mau gosto, em chavões falsamente tecnocráticos e em tiques ideológicos baratos. Políticos, economistas, jornalistas têm-se especializado numa “gíria” de pendor “novo-rico”. Aí vão alguns exemplos: “priorizar”, “calendarizar”, “implementar”, “derrapagem”, “tabu”, “incontornáveis”, “elencar”. “Enumerar” e “enunciar” são hoje expressões quase jurássicas que um candidato a político definitivamente não usa. “Atempadamente” é um vocábulo da moda, por oposição a “oportunamente”, “no prazo”, “a seu tempo”, “a tempo”, “em tempo” ou “em tempo útil” infelizmente esquecidas.
É impressionante a contribuição dada à língua portuguesa por todo o tipo de criaturas com acesso aos meios de comunicação social. Quando existe um microfone por perto, já sabemos de antemão estar a chegar uma catrefada
( vocábulo giro que se deve poder utilizar aqui ) de “prontos” e outras palavras inventadas para compensar o desconhecimento. “Descontinuar” é uma palavra que está na moda por oposição a “interromper” caído no esquecimento. Alguém dizia que quando um político substitui a palavra “subsídio” por “subvenção”, apenas pretende inovar no plano vocabular o que não sabe mudar na política. Obviamente não se coloca em causa o número de leituras em francês, nem sequer o profundo conhecimento que os portugueses têm da palavra “subsídio”. Trata-se apenas de um desejo de “dar ares”. Ensina-se na escola que o discurso técnico é usado em certas profissões e em certos meios para transmitir certos conceitos ou noções. Facilmente se conclui ser necessária a sua utilização e quem o conhece não deve ser impedido de o usar. O problema reside no facto de alguns utilizarem palavras sem saber bem o que significam e apenas nos quererem impressionar com a sua utilização. Ao fim de tantos anos a utilizar expressões em inglês, os nossos economistas continuam a mostrar-se incapazes de as traduzir para português. Até porque não estando a falar uns para os outros mas para todos nós, através dos media, exigir-se-ia um maior esforço no sentido de uma maior precisão dos termos aplicados. Politiquês, economês e jornalês? Talvez, mas na dose certa. Aquilo que em culinária se apelida de de q.b.

Nova Aliança, 20 / Janeiro / 2006