3.1.06

As presidenciais, a literatura e as frases feitas

1. Medeiros Ferreira teve esse dom analítico e premonitório de ter percebido os sinais da candidatura de Mário Soares à Presidência da República muito antes do comum dos mortais. Isso aconteceu ao reler Os Poemas da Minha Vida seleccionados pelo fundador do PS para o jornal Público. Na sua opinião, todas as peças se encaixam: os traços fundamentais da personalidade, o seu posicionamento perante a vida, as suas amizades e as coisas da política, o seu universo de gostos pessoais.
Atento, Ferreira interpretou o “Basta!” de política, proferido solenemente por Soares no aniversário dos 80 anos, como um gesto de delicadeza circunstancial e gestão de expectativas para com as centenas de participantes no lauto jantar. Nem o próprio Manuel Alegre, companheiro de tantas jornadas há mais de 40 anos e poeta incluído na referida selecção de poemas, conseguiu interpretar em tempo útil tais palavras.
E teria sido tão, tão fácil. Bastaria recordar os nossos poetas Luís de Camões
( “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” ), Bulhão Pato ( “Ó crenças infantis, talvez agora, volteis a mim, ardentes como outrora: Diz-se que um velho volta a ser criança!...” ), Fernando Pessoa ( “O poeta é um fingidor” ), Álvaro de Campos ( “Serei velho quando o for. Mais nada” ), Armindo Rodrigues ( “Ser livre é querer ir, e ter um rumo, e ir sem medo, mesmo que sejam vãos os passos” ). Ironicamente, até se poderia ler o próprio Manuel Alegra ( “Conspiradores do impossível: onde estais? Dai-me de novo a rosa iniciática. O sonho que passou não volta mais.” ).
Foi precisamente à porta de Fernando Pessoa que Mário Soares foi bater para desligar o candidato Cavaco Silva da sua aura de “homem-providência das finanças”. Para tal, invocou o poema “Liberdade”. Esqueceu apenas um detalhe que deveria ser lembrado por Cavaco: é que o dito poema começa com “Ai que prazer / não cumprir um dever / ter um livro para ler / e não o fazer / Ler é maçada / Estudar é nada”. E a segunda estrofe vem já a caminho: “Livros são papéis pintados com tinta / Estudar é uma coisa que está indistinta / a distinção entre o nada e o coisa nenhuma / Quanto melhor é quando há mais bruma / Esperar por D. Sebastião / Quer venha ou não!”.

2. Continuando a vaguear no reino das palavras, deixemos a linguagem poética e passemos para um discurso mais utilitário, mais próximo da realidade. Antigamente, as fábulas inundavam os livros da instrução primária. O texto “As Vozes dos Animais” dizia assim: “Palram pega e papagaio / e cacareja a galinha / os ternos pombos arrulham / geme a rola inocentinha”. Obviamente, nenhum Medeiros Ferreira pode adivinhar que existe aqui alguma insinuação aos sinais evidentes que nos são dados pelos nossos candidatos.
Nesses tempos, falavam os animais e calavam-se as pessoas. Hoje em dia, a palavra anda à solta e difícil é encontrar alguém que se mantenha calado. Provavelmente, foi por se reconhecer que as palavras relaxam que os seres humanos inventaram as palavras cruzadas. Trata-se de uma actividade completamente inútil – raramente se consegue puxar tanto pela cabeça em função de algo tão desnecessário – mas óptima para os tempos livres. Existem por aí certas frases, perfeitamente vulgares e pronunciadas sem premeditação que ficaram cravadas na memória de todos sem que mesmo o seu desprevenido autor saiba porquê. Não são grandes frases, mas tiveram alguma sorte e passaram à posteridade. Eis alguns exemplos: “é só fumaça” ( Pinheiro de Azevedo ); “olhe que não, olhe que não!” ( Álvaro Cunhal ); “Deixem-me trabalhar!” ( Cavaco Silva ); “É só fazer as contas...” ( António Guterres ); “Prognósticos só no fim do jogo” ( João Pinto ); “Vamos fazer coisas bonitas”
( Artur Jorge ).
Como a vida é injusta! Tantos intelectuais que procuram afanosamente o reconhecimento e de repente surge um político qualquer a proferir inadvertidamente uma frase que acaba por ficar para a história. Existe algo de espantoso na frase “O meu reino por um cavalo”? E na resposta “Ninguém!”, célebre no Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett? E em “Também tu,
Brutus?”? Que tem de tão especial “Penso, logo existo”?
Enfim. Tratou-se de um simples exercício que serve para nos pôr a pensar em coisas que não dão que pensar, o que não significa que deixemos de pensar nelas. Boas Festas e um Santo Natal!!

Nova Aliança, 23 / 12 / 2005

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