22.2.06

Bill Gates e Medrões: semelhanças e diferenças

Escrever quinzenalmente tem a vantagem de deixar assentar a poeira dos dias e de se obter um distanciamento que pode ser benéfico ou não. Falemos de Gates, Bill Gates. Ele ficará ligado inconscientemente à aldeia de Medrões, concelho de Santa Marta de Penaguião, distrito de Vila Real. Já lá vamos…
A imagem televisiva, convenhamos, tinha o seu quê de esquisito. Ao centro, metade do Governo, acotovelando-se em pé, diante de uma mesa exígua, fazia em simultâneo uma vénia de 90 graus e sorria para a plateia, enquanto assinava protocolos com a Microsoft. A seu lado, mas ainda assim a uma razoável distância, num canto do palco, o primeiro-ministro sorria também, sentado ao pé do Bill e feliz por poder um dia contar aos netos que tinha estado numa ocasião ao lado do "homem mais rico do mundo". Quem olhasse de repente julgaria que a vénia dos ministros lhes era dirigida a eles, e que tudo aquilo não passava do ritual de vassalagem a um imperador visitante. Tratava-se, contudo e apenas, de um empresário, por maior que fosse a felicidade que ele vinha trazer – leia-se, vender os seus produtos - ao País e que o sorriso estampado na cara dos ministros, durante aquela cerimónia, garantia ser a rodos. Se existirem, como se espera e deseja, mais investimentos parecidos, o protocolo de Estado vai ter de ser revisto, de modo a graduar as ordens de mérito e as consequentes honrarias e salamaleques, consoante o volume de empregos e exportações prometido.
O que choca no meio deste turbilhão é a falta de vergonha nesta obsessão pela propaganda. Existe realmente um departamento de publicidade a funcionar: uma empresa que vai construir, um grupo que pensa fazer, uma multinacional que pensa fixar-se, pessoas que “querem fazer coisas”, acordos de princípio, intenções, ideias que ainda não são projectos, projectos que ainda não são programas, propósitos, promessas de investimento. O famoso “choque tecnológico” tem energia, ciência, computadores, imobiliário, vacinas, móveis. Como não se sabe quanto investimento vem e quanto o governo oferece, será possível assistirmos a duas ou três inaugurações para cada projecto. O que a propaganda não aceita são interpelações em público ao senhor Sócrates como a que foi feita pelo primeiro responsável do dito “choque” a propósito do programa MIT.
Entretanto, coincidindo com a presença de senhor Gates, um canal de televisão decidiu fazer uma breve reportagem em Medrões. Visitaram a escola primária que recebe duas a três dezenas de crianças da localidade e de localidades vizinhas. Trata-se de uma escola tipicamente rural e sem muros. Uma senhora informa que a escola já tem banda larga. Todavia, os alunos têm de se deslocar a pé, alguns a dois ou três quilómetros, porque não existe transporte público, nem mesmo municipal. No Inverno, por aquelas bandas, o frio é mesmo… frio! Como a escola não serve refeições, as crianças têm de ir a casa almoçar e voltar para as aulas da tarde. Quatro percursos, dez quilómetros por dia. O abastecimento de água faz-se a partir de um poço, pelo que os alunos levam de casa umas garrafas de água.
O Presidente da Câmara Municipal de Santa Marta de Penaguião, de forma arrogante ( terá aprendido com quem? ), não via riscos nenhuns na ausência de vedação e, quanto à água, nunca tinha havido problema e se esse era motivo de reivindicação, ele “ia trazer água da companhia”. Garantiu ainda que não haveria transportes camarários, pois a lei “só obriga a assegurar transportes em distâncias superiores a três quilómetros”. Sobre a possibilidade de organização de uma cantina ou sala de refeições, garantiu, incomodado, que “havia planos”. Este senhor, feliz por estar a falar para a televisão pela primeira vez, não escondeu a sua satisfação por ter banda larga.
Enquanto não fecha ( porque neste país as escolas se vêm transformando em unidades lucrativas de produção) a escola de Medrões não justifica o estado em que se encontra. E ela é o exemplo perfeito desta propaganda actual que nos mostra a volúpia e o exibicionismo, que prefere o vistoso e o investimento no que parece moderno. Que orgulho tem o país nas suas escolas aquecidas no Inverno, nos seus transportes escolares, na água potável nas escolas, nas cantinas para estudantes?
As lantejoulas e o pechisbeque encandeiam o país. Bastaria apenas que cada um cumprisse o seu dever.

Nova Aliança, 17 / 02 / 2006

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