2.7.08

A noiva devolvida e o Europeu de futebol

26 de Maio – “Longa cobardia”
Ferreira Fernandes no Diário de Notícias: “Antigamente - um pouco depois dos tempos em que ele, de moca e de osso atravessado no nariz, a arrastava pelo cabelo até à caverna - o lençol nupcial era exposto no bairro. Se havia sangue, a noiva era virgem e o casamento podia seguir em frente. Antigamente..., iludo- -me eu, como se as coisas não pudessem voltar para trás. Em Lille (Norte de França), um tribunal anulou um casamento porque a noiva - muçulmana como o noivo - mentiu sobre a sua virgindade. Na madrugada do casamento, o noivo, engenheiro, levou a noiva a casa dos pais dela porque lhe faltava uma peça (assunto privado). E um tribunal, no ano de 2008!, deu-lhe razão (assunto público). Deixo para os advogados e juízes o valor jurídico do ela ter mentido, como se a lealdade pudesse existir entre desiguais (o engenheiro não teve de jurar a sua virgindade, nem tinha como a provar). A nossa cobardia está a atirar estas novas europeias para o passado. Assim, o passado virá ter com todos nós, não tarda."

28 de Maio – Talvez resquícios.
Uma destas noites ouvi parte de uma interessante conversa entre Constança Cunha e Sá e Silva Lopes, na TVI. Silva Lopes é uma daquelas figuras que apetece ouvir, mesmo quando se discorda: exibe liberdade, sinceridade e autoridade. Estas coisas, quando são verdadeiras, percebem-se até pela linguagem corporal. Silva Lopes estava descontraído e gesticulava livremente conferindo ao seu discurso uma autenticidade que os «certinhos» do costume não conseguem imitar – porque são falsos.
A conversa ia longa. Eis senão quando o professor deixou cair um comentário lateral que me deixou a pensar: para salientar o espírito algo volúvel dos portugueses utilizou o velho exemplo dos sinais de luzes que os condutores utilizam para avisar os outros da presença de forças policiais na estrada. Esse hábito português tem sido muitas vezes referido como sintoma de atraso civilizacional. Permitam-me discordar. Nesta crítica detecto um resquício invisível da herança cultural salazarista. A ideia de que o Estado através dos seus inúmeros agentes deve estar em cada esquina a vigiar-nos, pronto para mais uma multa, é tão absurda como culturalmente obsoleta. Em Espanha, por exemplo, a localização de todos os radares de controlo de velocidade está disponível em diferentes sites. Não é função do Estado garantir a nossa segurança na estrada pela via da repressão. É mais eficaz para garantir o cumprimento das velocidades autorizadas, numa auto-estrada, um carro caracterizado da BT do que um anónimo. Esse carro anónimo é uma expressão de visão repressiva do Estado e própria de sociedades que prezam mais a força do que a liberdade e a responsabilidade. E o tal sinal de luzes é mais eficaz no aconselhamento à moderação do que uma brigada escondida num arbusto. Evita a multa e obriga a travar. É isso que se espera do nosso Estado: mais do que existir para punir, deve estar presente antes do arbusto e enviar todos os sinais de luzes.



30 de Maio – Vem aí o cansaço.
A vida cansa. O Verão está quase aí e a selecção Scolari prepara-se para mais um mês de paciência moída, esperas a jogadores, desvario de jornalistas em reportagem, peregrinações de autocarro e outras deambulações pelo lado mais negro da alma humana.
Avanço pelo cinismo dentro, claro, admitindo que talvez, reafirmo, talvez, passe este mês colado ao ecrã, de jogo em jogo, adequando horário laboral às melhores partidas e aos jogos da selecção. Eu sei que assim será, mas bem que me poderiam poupar os preliminares. Vamos falar claro: não quero telejornais infindáveis sobre a dieta dos jogadores, os treinos dos jogadores, as mulheres dos jogadores, a ausência de vida sexual dos jogadores, as fãs dos jogadores, os velhos da aldeia que vêem a banda passar sem que a banda se digne a parar por eles (mas um microfone, esse, pára por qualquer coisa); aceito um pouco de comentário do Luís Freitas Lobo ou do António Tadeia, mas por favor não convidem o Oliveira do alho no balneário ou o Artur "olho negro" Jorge para dissertar sobre o trabalho do seleccionador ou as vicissitudes do apoio de um país à selecção; transmitam na televisão as grandes partidas de campeonatos de outros tempos, mas evitem os vislumbres dos toques do Ronaldo (apesar de andarem pelo You Tube umas imagens fantásticas de Ronaldinho e outros jogadores da selecção brasileira a curtirem com a bola num treino); podem mostrar entrevistas do Eusébio a falar do Mundial de 66, mas recusem o facilitismo da conversa com o emplastro sobre as decisões tácticas do seleccionador nacional.
Eu sei que posso escolher: mudar de canal, desligar o televisor, sentar-me a ler um livro - ou até voltar a ligar o aparelho e aproveitar para ver na Eurosport as retransmissões de partidas clássicas de antigos campeonatos. Mas, por defeito cultural ( a minha portugalidade ), queixo-me. Um mês de paz e sossego (relativos), de comemorações na rua, alegria para esquecer o cansaço da vida, uma dieta contida de transmissões sem gordura, sem refegos e enchidos para dar cabo do colesterol e da paciência.
A maior conquista de Scolari? Pôr um país inteiro um mês de quarentena. Portugal prepara-se para se exilar de si próprio.

Nova Aliança, 13 / Junho / 2008

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