6.10.10

Os incêndios e os casamentos gay

15 de Agosto – Os tempos vão estranhos. No ano passado, o mérito pela escassez de incêndios cabia ao Governo e não a um Verão particularmente fresco e húmido. Este ano, a culpa pela devastação em curso é do calor tórrido, dos criminosos, dos negligentes e do "aquecimento global": não é do Governo. Aparentemente, como em tantos outros aspectos, a acção preventiva do poder reflecte-se nos sucessos, não nos fracassos.
Mistérios à parte, a verdade é que o País voltou a arder e as cabeças encarregadas de o pensar também. Em países normais, impedir a calamidade discute-se antes da calamidade acontecer. Aqui discute-se durante a dita, embora não se trate do típico "casa roubada, trancas na porta", não senhor: em Portugal, debate-se o tipo de tranca enquanto a casa está a ser roubada. Depois de consumado o roubo, a porta continua aberta.
As trancas, corrijo, as medidas de prevenção sugeridas são inúmeras. A minha preferida é a do ministro da Agricultura, que deseja nacionalizar os terrenos abandonados. No universo peculiar do senhor António Serrano, obviamente habilitadíssimo para a pasta que carrega, as matas e florestas do Estado encontram-se limpas, vigiadas e pura e simplesmente não ardem. Eis o contributo mais original desde que um ministro do PSD – recordam-se? - atribuiu a origem dos fogos às granadas que os ex-combatentes trouxeram do Ultramar.
Ainda que sem o talento natural do dr. António Serrano, que ponderadamente pediu a 6 deste mês uma avaliação do Plano Nacional de Defesa da Floresta aprovado em 2006, as luminárias restantes fazem o que podem em matéria de desnorte. O ministro da Administração Interna compara, todo contente, a quantidade de área queimada com a equivalente de 2003 e declara-se preocupado com "a segurança das pessoas", uma evidência se por "pessoas" entendermos ele próprio, e por "segurança" a sua manutenção no cargo. Um secretário de Estado do Ambiente ciranda a anunciar "meios aéreos". O Presidente da República e o primeiro-ministro interrompem com pompa as respectivas férias mas, desrespeitosamente, as labaredas não interrompem o respectivo trabalho. E a ministra da Educação prossegue o encerramento em massa das escolas rurais e deixa cada aldeia entregue a três (ou quatro) velhinhas, assunto que nada tem a ver com os incêndios e por cuja invocação peço desculpa.
22 de Agosto – Sinal dos tempos, o casamento recente de um escritor português com o companheiro motivou uma ou outra notícia de jornal, uma ou outra coluna de opinião e uma razoável quantidade de sentimentalismo na Internet. Ora, como não se tratou do primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo, que sempre tinha o efeito da novidade, estranhei que tantos órgãos de comunicação e tantos comunicadores individuais imitassem a imprensa dos mexericos. E estranhei sobretudo que a comoção orientasse quase todos os desabafos.
A questão reside no facto de, ao contrário do que sucede no jornalismo dito "social", os autores dos desabafos em questão serem, ou parecem ser, esquerdistas convictos, daquela esquerda que gastou décadas a ridicularizar o matrimónio "burguês". Verifico divertido que, pelos vistos, bastou alterar a orientação sexual para que o que antes era ridículo se transformasse numa celebração do amor puro e irredutível. Num ápice, o formalismo opressor do "papel" passou a atestado indispensável de maioridade cívica e a motivo para lágrimas de alegria.
Será agora isto a igualdade? A igualdade que esteve no centro das reivindicações do casamento gay implicaria, agora que este se consumou em sentido lato, que se alargasse o enxovalho aos gays que cederam às "convenções" e à moralidade "tradicional".
Nova Aliança, 2 / 9 / 2010

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