17.11.10

A lição do Chile

14 de Outubro – A lição que recebemos
Podemos dizer que se trata de uma frase feita. Podemos dizer que nem sempre se verifica mas a ‘tal’ frase impossível - o Natal é quando o homem quiser - calhou ontem, 13 de Outubro. O cântico foi da velha chilena Violeta Parra: ‘Gracias a la vida’. Os presentes vinham num embrulho em forma de cápsula que ia e vinha e trazia sempre as mesmas letras e sempre certas: Fénix.
Quem tira os minerais do fundo da terra? Quem passa lá uma vida inteira? Quem destrói o corpo em busca do salário mensal? E esses presentes eram tão raros que muitos os deu como desaparecidos. Quem levantou os grandes monumentos? Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta a Muralha da China? A grande Roma está cheia de arcos de triunfo - quem os levantou?
Perguntas antigas, que ontem tiveram resposta, tiveram nomes. Florencio Ávalos, Carlos Mamani, Jimmy Sánchez, Victor Zamora, Esteban Rojas e mais vinte e oito iguais. Ontem, chorávamos todos, o filho do Florencio, a loira da Sky News, o solitário no café da aldeia.
Ontem, um dos danados da terra e desapossados de nome, mal ganhou nome, Mário Sepúlveda, o segundo da dinastia dos 33, falou por ele e por todos - cumprindo as palavras de Violeta Parra: ‘El canto de todos que es mi proprio canto’. Pousou o bornal e tirou dele pedaços de rocha que arrancou à mina, que distribuiu. E depois disse isso em palavras: "Não me tratem como artista, sou Mário, o trabalhador mineiro." Só…
15 de Outubro – Ainda o Chile
Todos seguimos a transmissão televisiva com maior audiência da história: 33 mineiros soterrados a 700 metros de profundidade regressaram, 69 dias depois, à luz e à vida. Como escreve Hernán Letelier, a história do deserto de Atacama está coroada de tragédias como um largo muro coroado de vidros quebrados: greves, marchas da fome, acidentes fatais, mineiros mortos em inconcebíveis massacres. Mas no passado dia 13 o que se viu foi o triunfo da vida, da resistência humana, a recusa da rendição a um desfecho que parecia inevitável, o engenho científico e tecnológico ao serviço de 33 mineiros pobres e desconhecidos e o mundo inteiro suspenso por esse arrojo em que se lançaram o presidente chileno, os poderosos detentores da tecnologia de ponta e os 33 homens soterrados vivos e que, rapidamente, contagiou o mundo inteiro.
Esta operação, sumamente complexa e teoricamente nunca pensada, foi posta em prática com a precisão de um cronómetro, sem precipitações, sem erros, sem falhas. Tornou-se um ponto de honra comum à humanidade, sobrepondo-se à secura dos corações, ao conformismo e à indiferença fruto dos atributos da cultura utilitarista dos nossos dias, assente no individualismo, na ganância, no desprezo pelos mais pobres e mais fracos e no desvalor da vida humana. A história da mina de San José é, também por isso, uma revolução cultural.
Não foi apenas um resgate - o que por si já seria muito - mas um cuidar activo e eficaz conseguido com muita tecnologia, engenho e arte, criando em escassos 800 metros simulações da luz do dia para controlar os biorritmos, a temperatura e o grau de humidade, introduzindo sondas para enviar provisões, rádios e material de primeiros socorros e até pastilhas elástica com nicotina para aliviar os fumadores, para além de livros e um projector para verem filmes e futebol. O resto, um enorme resto, chama--se resistência humana, liderança activa e disciplina espiritual. Mario Sepúlveda, o mineiro que fez a vezes de jornalista nas gravações de vídeo filmadas a 700 metros de profundidade, disse quando chegou ao mundo dos vivos "Estive com Deus e estive com o Diabo, e ganhou Deus. Agarrei-me à melhor mão." Os 33 homens apareceram com uma T-shirt onde se lia "gracias, Señor".
Este final feliz, arrancado à sua própria improbabilidade, culmina um tempo sobre o qual os mineiros estabeleceram um pacto de silêncio entre si: nenhum falará sobre os outros. Ainda que seja provável que um dia se escreva um best-seller ou se realize um filme sobre esta história, boa de mais para ser verdadeira, eles não querem ser os protagonistas. Tudo ficou 700 metros abaixo do solo, e percebemos porquê. Nenhuma história pode ser tão íntima na trama com que foi tecida como a de esta extraordinária convivência. Nada pode operar transformações tão profundas no interior de cada homem como o fio do tempo - 69 dias - no qual se penduraram as fraquezas e as forças, a fé e o desespero, o medo e a coragem, o pior e o melhor de cada um daqueles seres humanas que a tragédia desnudou até ao tutano da alma.
Alberto Urzúa Iribarren, "Don Lucho" como lhe chamaram dentro e fora da mina, foi o último a sair como compete a quem assumiu ser o chefe natural daquele grupo logo após a primeira avalanche. Organizou grupos e rações: "Duas colherinhas de atum por dia, para cada um", disse. Enquanto, cá fora, Piñera fazia esta afirmação lapidar: "Procurámo-los como filhos. Encontrámo-los com a ajuda de Deus. Resgatámo-los como chilenos."



Nova Aliança, 28 de Outubro de 2010

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