7.1.11

Monteiro Lobato e os relatórios escolares

27 de Dezembro - A minha infância foi televisivamente pobre. E nem poderia ser de outra forma. Os dois únicos canais “obrigavam” a uma programação, no mínimo, incipiente.
Mas havia excepções. Uma delas era "O Sítio do Picapau Amarelo", uma produção da TV Globo baseada na obra de Monteiro Lobato (1882 - 1948). Lembro-me das aventuras de Pedrinho e Narizinho com a mesma gratidão com que me lembro das aventuras de Lucy ou Edward nas crónicas de Nárnia de C.S. Lewis, que li na mesma idade. Sem falar da boneca Emília, de Dona Benta e da Tia Nastácia. Puro encantamento.
Por causa de Monteiro Lobato, conheci melhor o folclore brasileiro; e, claro, a própria literatura brasileira. Depois da série, li Monteiro Lobato "lui même". E, por causa do autor, fui entrando no cânone.
Primeiro, "O Meu Pé de Laranja Lima", de José Mauro de Vasconcelos, desde logo porque havia um "portuga" na trama. O livro fez um sucesso em Portugal, digno de J.K. Rowling. E depois passei a “dietas” mais pesadas, com Lima Barreto, Nelson Rodrigues. E o notabilíssimo Rubem Fonseca.
O racismo de Monteiro Lobato incomodou-me? Nem pensei nisso. Não penso nisso agora. O que não significa que Monteiro Lobato não o fosse: as suas referências a "pretos" podem ser desconfortáveis para uma audiência moderna. Mas se as audiências modernas apenas lessem o que se ajusta ao cânone politicamente correcto do momento, que obras ficariam nas nossas bibliotecas? Precisamente. Poucas. Quase nenhumas. Todas as épocas têm as suas fogueiras.
Por isso pasmo com a decisão, vinda do Brasil, do Conselho Nacional de Educação de sinalizar com pânico radioactivo e instintos censórios a obra "Caçadas de Pedrinho", publicada por Monteiro Lobato em 1933. O caso já chegou à imprensa portuguesa, que tem dedicado alguma atenção ao assunto. Deveria dedicar mais porque estamos na presença de um exemplo clássico de ignorância cultural. E, ironicamente, de preconceito ideológico.
Segundo leio, o livro "Caçadas de Pedrinho" tem referências que não são agradáveis à população negra. Uma princesa, por exemplo, aconselha Emília a não beber café. Para não ficar "morena". E a Tia Nastácia, que cozinhava os melhores petiscos da minha infância, é referida como "pobre preta".
Isso, para o Conselho de Educação, é intolerável. A função do ensino, para o nobre órgão, é inculcar os valores certos na cabeça das crianças, afastando qualquer ofensa às minorias.
Sou capaz de entender a generosidade do Conselho de Educação. Mas se a função do ensino é afastar do currículo tudo aquilo que ofende a sensibilidade moderna, repito, não fica nada para mostrar.
Apagar o passado que nos interpela com seu rol de ofensas e preconceitos é apagar Platão ou Aristóteles, dois conhecidos esclavagistas com intoleráveis tendências misóginas. É apagar os versos de Dante na sua "Comédia" com passagens islamofóbicas. É apagar Voltaire pelas mesmas razões, a começar pela sua peça "Maomé". É apagar Mark Twain pelos mesmos motivos que nos levam a censurar Monteiro Lobato. É não permitir que Shakespeare nos contamine com seu esporádico anti-semitismo. E, por falar em anti-semitismo, é jogar no lixo a poesia de T.S. Eliot, o maior de todos os modernistas. E etc. etc. etc. A lista não tem fim.
Avaliar a cultura passada com as lentes ideológicas do nosso tempo não é apenas um grosseiro erro de anacronismo. É vandalizar esse passado pela destruição do mundo que ele expressa; é, no limite, uma privação cultural.
E esse crime não é apenas um crime que cometemos sobre o passado. É também uma porta que abrimos para crimes futuros: para que as gerações vindouras, dominadas por seus próprios valores ou preconceitos, possam usar a guilhotina sobre os nossos valores ou preconceitos; sobre a nossa voz singular e presente; sobre nossos vícios e virtudes; sobre nós. Uma inquisição permanente que não tem descanso.
O caso Monteiro Lobato é mais um exemplo de como o objectivo do pensamento politicamente correcto não é "corrigir" o pensamento politicamente incorrecto. É criar um mundo de silêncio, transformando o passado num imenso cemitério.
31 de Dezembro – Depois de uma euforia balofa e totalmente desonesta com os mais recentes resultados do PISA, o Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE) do Ministério da Educação veio agora confirmar que os nossos alunos estão menos burros mas continuam burros. Depois de uma análise exaustiva a 1700 escolas, parece que os alunos do 8º ao 12º ano não sabem raciocinar nem escrever. Segundo o GAVE, as nossas ‘crianças’ são incapazes de estruturar um texto; explicar um raciocínio com lógica; utilizar linguagem rigorosa; e, Deus meu, utilizar diferentes conceitos da mesma disciplina. Por outras palavras: as nossas ‘crianças’ são capazes de exercícios elementares, como acontece com alguns símios de laboratório; mas o passo final para o conhecimento humano está-lhes interdito.
Obviamente que isto, ao contrário do que sucedeu com o PISA, não mereceu do governo um comentário. O que se compreende: os nossos governantes, a começar pelo líder da banda, são também um produto do analfabetismo e da lassidão que reinam no sistema de ensino. Confrontados com o relatório do GAVE, o mais certo é não saberem lê-lo ou interpretá-lo.

Nova Aliança, 6 / 1 / 2011

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