16.10.12

A intolerância religiosa

A coisa começa a ser frequente. Desta vez, foi um filme amador sobre a vida do profeta Maomé que incendiou o sempre ‘pacífico’ mundo árabe. O embaixador americano na Líbia foi morto. Embaixadas americanas no Oriente Médio foram atacadas. E as instalações da ‘Kentucky Fried Chicken’ tiveram a sua dose de violência e destruição. Ouvi muita gente e a opinião é unânime: o filme é nojento, ofensivo, ignorante; mas nada disso justifica a violência que ele provocou. É indiferente saber se o filme é bom ou mau, nojento ou refinado, ofensivo ou altamente elogioso para o islão. Não é função de nenhum chefe político tecer comentários sobre a qualidade do que se diz, faz ou pensa em países ocidentais, onde a liberdade de expressão é um valor sacramental. E a liberdade de expressão comporta tudo: o repelente, o ofensivo, o ignorante, o sacrílego. Se existem fanáticos que não gostam desse modo de vida, o problema não é do Ocidente. O problema é dos fanáticos. Claro que, para além da violência superficial que se espalhou pelo Médio Oriente, existem questões mais perversas: e se os atos dos fanáticos não estiverem apenas relacionados com o filme? E se o ódio ao Ocidente for a verdadeira gasolina que faz arder esses atos? E se a Primavera Árabe, afinal, foi apenas uma forma de trocar velhos tiranos por novos? Os meios de comunicação ocidentais, que defendem romanticamente a Primavera Árabe, consideram que só podem florescer aí democracias civilizadas, respeitadoras dos direitos humanos e onde a liberdade individual não tem preço. Eis a suprema falácia do pensamento progressista, que o filósofo John Gray, em artigo recente para a BBC, destruiu sem piedade: o facto de derrubarmos um ditador não significa necessariamente que as alternativas serão melhores. E porquê? Isaiah Berlin (1909 - 1997). já tinha avisado que os valores mais importantes em política não podem ser confundidos uns com os outros: liberdade é liberdade, não é igualdade; igualdade é igualdade, não é liberdade; democracia é democracia, não é justiça. Por outras palavras: o voto da maioria pode ser uma condição para a existência de regimes livres. Mas pode também ser o contrário: uma forma de liquidar a liberdade individual. Basta que a maioria, por exemplo, opte por um regime baseado na sharia islâmica, e não pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. E essa perversão nem sequer é uma exclusividade do islão. Será preciso recordar que Hitler é o exemplo mais eloquente de alguém que usou a democracia para liquidar a democracia? Hoje, no mundo islâmico, sabemos que ditaduras criminosas foram derrubadas. Mas também sabemos que islamitas tomaram o poder no Egipto ou na Tunísia. E que várias facções, com vários graus de radicalismo fundamentalista, lutam pelo poder dentro de cada um desses países. O que não sabemos nem escutamos são vozes liberais dentro do Egipto ou da Tunísia defendendo regimes democráticos respeitadores dos direitos humanos e da liberdade individual. Na década de 1960, perguntaram ao primeiro ministro chinês Zhou Enlai o que ele pensava sobre a Revolução Francesa de 1789. Resposta: "Ainda é muito cedo para dizer". Também aqui podemos dizer o mesmo. Nova Aliança, 4 / outubro / 2012

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