13.7.06

A Ética de José Luandino Vieira

O nome do escritor angolano Luandino Vieira, galardoado com o Prémio Camões, deve ter deixado muita gente perplexa. O autor de “Luanda”, afinal de contas, não publica nada de novo desde o início dos anos 70. Como entender então a justeza do prémio?

Luandino Vieira ( aliás, José Vieira Mateus da Graça ) nasceu em Vila Nova de Ourém ( Portugal ) em 4 de Maio de 1935, contando, pois, 71 anos. Com três anos foi com os pais para Angola, onde, por envolvimento em movimentos nacionalistas, seria preso pela Pide, em 1959. Já nessa altura, em homenagem a Luanda, adoptara o pseudónimo de Luandino. Libertado, voltaria dois anos depois à prisão, sendo em 1964 transferido para o terrível campo de concentração do Tarrafal, por onde, desde os anos 30, tinham passado inúmeros antifascistas portugueses. Aí descobre Guimarães Rosa, o escritor que mais o influenciou, e aí escreve a maioria da sua obra. Com destaque para Luuanda ( 1963 ), que, distinguido em 1965 com o Prémio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores, levaria ao encerramento daquela instituição, acusada de «traição à Pátria», após o saque e a destruição pela Pide da sua sede. É a história de um Domingos Xavier que morre lentamente, depois de passar pela mão dos cipaios: “Nunca fizera mal a ninguém. Só queria o bem do seu povo e da sua terra. E por lhes querer bem não falou os assuntos do seu povo nem se vendeu. E por querer lhes bem o mataram”. Há aquele gosto de uma escrita em português com a marca indelével do angolano, tal qual se fala, mais os seus termos específicos para uma realidade diferente que, afinal, teve, tem e terá de conquistar a sua expressão. É um gosto. E há um glossário, ideia de louvar sempre que nos textos surgem termos que escapam aos regionais ou que são de difícil esclarecimento, mesmo nos dicionários. Cumpridos mais de dez dos 14 anos a que fora condenado, durante os quais escreveu oito dos dez livros até agora publicados, Luandino Vieira é libertado e transferido, com residência fixa e vigiada, para Lisboa. Regressa a Angola após o 25 de Abril de 1974, mantendo uma militância activa no MPLA até pelo menos 1979. Em 1992 volta a Portugal, passando a viver primeiro no Convento de São Payo (Vila Nova de Cerveira), propriedade do seu amigo, o escultor José Rodrigues, e mais recentemente nas suas imediações. Entretanto, planta árvores, trabalha na agricultura, chega a levar as ovelhas a pastar pelos montes.

O escritor é o segundo angolano a ser distinguido com o Prémio Camões que distinguiu ainda oito portugueses, sete brasileiros, e um moçambicano. O júri foi constituído pelos brasileiros Ivan Junqueira e Evanildo Bechara , as portuguesas Agustina Bessa-Luís e Paula Morão , o moçambicano Francisco Noa e o angolano José Eduardo Agualusa . E foi este último que apresentou a proposta da atribuição do prémio a Luandino. Tal proposta circulava há muito nos bastidores mas este manifestara a intenção de, enquanto não tivesse um novo livro, não o aceitar, caso lhe fosse atribuído.

A verdade é que, de uma forma natural, Luandino recusou mesmo o prémio pecuniário de cinquenta mil euros. Houve quem tivesse falado do seu horror à celebridade, elogiando ao mesmo tempo o seu desapego material. Julgo que a decisão do escritor ultrapassa esta questão. No fundo, penso que tal atitude é “só” a ilustração da alta noção que Luandino tem da sua responsabilidade perante a escrita. Se há dez anos o escritor disse e escreveu que recusaria o Prémio se este lhe fosse atribuído, “dado não publicar nenhum novo livro há muito tempo”, estava-se mesmo a ver que, com toda a sua coerência, também agora ele recusaria o Prémio.

Fica claro que Luandino recusa o Prémio não por falsa modéstia mas por lhe parecer despropositado que, enquanto surgem novos escritores e literaturas africanas, lhe seja atribuído o mais alto galardão que distingue escritores actuais de língua portuguesa, nas suas diversas variantes, estando ele silencioso há décadas.

Luandino invoca “razões pessoais e íntimas” para a posição que tomou e fechou-se na sua “concha”. Calmamente aguardará que seja o tempo – e os seus leitores - a fazer-lhe a justiça de um reconhecimento maior.

Embora ainda não publicado, esse seu novo livro já existe, de facto. Está no prelo, chama-se O Livro dos Rios, primeiro tomo de uma trilogia intitulada De Rios Velhos e Guerrilheiros, e os seus editores projectam lançá-lo, em Luanda, no próximo dia 11 de Novembro, data da independência de Angola.



Nova Aliança, 24 / 06 / 2006

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