28.11.05

Os números das guerras e o Direito nos Estados Unidos

1. Ao longo dos tempos, o senso comum diz-nos que temos vindo a piorar em diferentes domínios. Expressões como “no meu tempo” ou “antigamente” surgem normalmente associadas a épocas de sonho, ao mesmo tempo que pretendem ser o contraponto com tudo aquilo que o presente transporta consigo. Assim, “antes” tudo era melhor: mais respeito, menos inflação, mais tempo, menos criminalidade, melhor qualidade de vida, menor descontentamento. Se este fenómeno se generaliza em termos pessoais, mais se verifica ao nível da ideia que temos do mundo. Um inquérito virtual à população portuguesa e / ou europeia reforçaria a visão altamente negativa, concluindo que a fome, a guerra e a violência aumentaram relativamente ao passado. Como se costuma dizer, o mundo está perigoso, bem mais perigoso.
Ora o relatório Guerra e Paz no Século XXI do Human Security Center da Universidade British Columbia, em Vancôver, no Canadá, revela precisamente o contrário. Resultado de três anos de estudos, o relatório dá-nos conta que, desde o início da década de 90, se verifica uma redução drástica do número de guerras, de genocídios e de violações aos direitos humanos. O número de conflitos armados desceu, desde 1992, 40 por cento e o número de massacres e de genocídios diminuiu 80 por cento depois do fim da guerra fria. É verdade que pelo meio houve a Bósnia e o Ruanda mas os números são claros. Desde 1988, terminaram cerca de uma centena de conflitos e está a diminuir o número de violações graves dos direitos humanos e o número de refugiados. Os golpes de estado passaram de 25 em 1963 para 10 em 2004, todos eles fracassados. Em 1950, uma guerra causava, em média, cerca de 38 mil mortos; em 2002, causou uma média de 600, uma vez que raramente os exércitos pesados se opõem no campo de batalha.
Qual a explicação de tudo isto? Os factores decisivos terão sido o fim das guerras coloniais, o final da guerra fria, a democratização crescente do planeta e a intensa actividade diplomática. Estará então o mundo bem mais perigoso? Se sim por razão sentimos que esses dados contrariam a nossa visão empírica? Será tudo explicado pelo facto de não se noticiarem o final das guerras e de os media reforçarem os episódios sangrentos?
Algumas respostas talvez sejam as seguintes: 90 por cento dos mortos são civis inocentes; o recurso às armas químicas, biológicas e nucleares torna-se perigosamente real; o inimigo ataca como, quando e onde quer, deixou de ter um rosto, um tempo e um espaço previsíveis; existe uma ameaça permanente e um sentimento de instabilidade e de insegurança. Todos sentimos a necessidade de combater tal ameaça mas já temos muitas dificuldades em definir com clareza o fenómeno terrorista.. Repare-se que depois de Nova Iorque, Bali, Moscovo, Riade, Casablanca, Istambul, Madrid, Cairo, Londres e Israel, as Nações Unidas têm sido incapazes de chegar a uma definição evidente sobre o fenómeno terrorista. Desta forma, o assassínio de civis inocentes é considerado acto de resistência e, calcule-se, de legítima defesa. A diplomacia prefere seguir a avestruz para contentar aqueles Estados que continuam a apoiar o terrorismo.
Em França, os manuais escolares ( por exemplo, Élèves sous influence, B. Lefebvre e E. Bonnivard, ed. Audibert ) apresentam o terrorismo como uma forma extrema de antiamericanismo, “arma dos fracos que, na impossibilidade de atacar frontalmente uma grande potência, procuram instabilizá-la…”. Se não existir um debate profundo, a vários níveis, sobre o fenómeno do terrorismo, o seu combate perderá eficácia e apenas servirá para uma total perversão de análises, de valores e de prioridades. A quem servirá tudo isto? A nós não, obviamente.

2. Entrevistado pelo jornalista Adelino Gomes para a revista Pública ( 13 / 11 / 2005 ), Rodrigues Maximiano, magistrado jubilado e antigo inspector-geral da Administração Interna, solicitado a comparar o processo da Enrom, nos Estados Unidos, com o que se passa em Portugal em matéria de crime económico, quase nos tira do sério quando diz: “Os EUA não são exemplo para ninguém: não respeitam os direitos humanos; não dão direitos de defesa; a investigação criminal é feita pela polícia (veja-se aquele processo de O. J. Simpson — era todo policializado, nem sequer há garantias nas cadeias); não sei como obtêm a prova; legitimam a tortura. [...] Chegam a gente poderosa mas numa justiça espectáculo, negociada. E nem sequer sei se essa gente poderosa que é presa tem o direito de se defender como aqui. Aqui pode-se num processo interpor 400 ou 500 recursos.” Em que mundo viverá a criatura?

Nova Aliança, 25 / 11 / 2005

Sem comentários: