10.2.10

A escolha para a Cinemateca e a propaganda

27 de Dezembro - Sobretudo na respeitável área da "cultura", qualquer recém-nomeado para um cargo público lança os jornalistas na busca de opiniões de "personalidades" acerca do feliz contemplado. Por regra, não há surpresas: as opiniões são na maioria positivas, embora irrompam ocasionais manifestações de antipatia. Independentemente da sua orientação, porém, o teor "intimista" dos testemunhos revela o tamanho do meio, tão pequeno que não se encontra quem não tenha já roçado, metafórica ou literalmente, a criatura em questão.
Se a constatação da nossa dimensão paroquial deprime, pelo menos os argumentos das "personalidades" divertem. Recentemente, as reacções à designação de Maria João Seixas para directora da Cinemateca Nacional divertiram-me. Noto que, excepto por umas variedades televisivas, não conheço a senhora de lado nenhum, logo naturalmente não compreendo as razões da nomeação. O engraçado é que os que a conhecem também não parecem compreender, mas em nome da amizade elaboram imaginativas explicações.
O realizador João Botelho acha a dra. Maria João "culta, simpática e fora dos lóbis", duas razões etéreas e uma discutível. A realizadora Margarida Gil vê nela "uma pessoa do cinema", presumivelmente por ter sido casada com Fernando Lopes e recebido subsídios para publicitar fitas nacionais no estrangeiro. O produtor Paulo Branco elogia- -lhe, sem especificar, o "trabalho" e o "trajecto". E Medeiros Ferreira ganha de longe o prémio da justificação mais original: o antigo ministro e deputado louva a escolha porque num seu aniversário a dra. Maria João, cito, "convidou o plenário dos seus amigos para uma celebração natalícia na Cinemateca". Volto a citar o dr. Medeiros Ferreira: "Está tudo dito sobre o seu amor ao cinema."
Estará? Eu julgo que ainda falta aplaudir a devoção às aves de todos quantos festejam os anos em churrasqueiras. Falta esclarecer em que circunstâncias uma instituição pública se reserva para pândegas particulares. E falta certamente destacar a opinião de Nuno Artur Silva, dono das Produções Fictícias e o único a apresentar uma razão credível para a nomeação da dra. Maria João: o "traquejo político". Traduzido, isso significa que a novel directora foi assessora de António Guterres e mandatária em candidaturas de Jorge Sampaio, Mário Soares e Manuel Maria Carrilho. Agora sim, está tudo dito sobre o seu amor ao cinema.
2 de Janeiro - Aconteceu em Cacia. Durante o anúncio da construção de uma fábrica de baterias, o senhor José Sócrates Pinto de Sousa ergueu a mãozinha e juntou o polegar ao indicador para decretar: "Eu sou dos que acham que quando as cidades tiverem uma percentagem suficiente de carros eléctricos, sem emissões e sem barulho, já não vão querer andar para trás." Em seguida, explicou que Portugal será o primeiro país do mundo com uma rede nacional de abastecimento dos carros em questão. Por fim, conduziu, risonho, um exemplar dos ditos, com tamanho comparável a uma lata de atum e desempenho idem. Terminada a sessão, ficaram no ar clichés dispersos: "aposta", "investimento", "inovação", "ambição", "linha da frente", etc. Contas feitas, tratou-se de um espectáculo notável, mas quem não viu sabe exactamente o que perdeu.
Em quase cinco anos no poder, é impossível registar o número de ocasiões aproveitadas por Sócrates para nos informar de que o Governo, o dele, colocou Portugal na vanguarda internacional de uma maravilha qualquer. Agora é o carro eléctrico. Das outras vezes foram chips de computadores, caixas de computadores, "aerogeradores", placas solares e por aí fora. Invariavelmente, cada maravilha suscita três ou quatro cerimónias de propaganda até se dissolver em falências, fracassos, trapalhadas judiciais ou nas meras intenções. E até perder a atenção de Sócrates, capaz de abraçar a próxima maravilha com a candura de quem nunca se comprometeu com as anteriores.
Havia a anedota do sujeito que vendia bóias na praia enquanto o tsunami se aproximava: Sócrates continua a vendê-las após a devastação e, sobretudo, como se a devastação não tivesse ocorrido. Juro: não quero saber quanto do meu dinheiro reverte para essas duvidosas causas. Nem perguntar se não haverá um bom motivo para que nações de facto prósperas permitam a Portugal ser pioneiro no que quer que seja. Nem mesmo verificar a marca do computador que o primeiro-ministro usa, a origem da energia que consome ou o veículo em que, desde Cacia, se desloca.
O único ponto de interesse consiste em apurar se, depois de habituados às emissões e ao barulho que o PS produz, os portugueses algum dia vão querer seguir em frente. E, já agora, também conviria saber se em frente ainda haverá alguma coisa além do abismo.


Nova Aliança, 7 / Janeiro / 2010

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