30.4.10

Texto de Eduardo Cintra Torres

Com a devida vénia reproduzo um texto de Eduardo Cintra Torres publicado hoje no Público.
«Valença, praça-forte contra o invasor do costume, encheu-se de bandeiras espanholas por causa de atendimentos médicos. Só as consultas da caixa mobilizam a população a ponto de as Urgências serem mais importantes do que a pátria. Como as manifestações e outras acções do repertório dos movimentos sociais não chegaram, foi preciso esta semana recorrer à provocação final, a das bandeiras estrangeiras. A sociedade civil mobiliza-se mais e com mais eficácia contra medidas governamentais quando atraída por formas de acção inovadoras, mediáticas e aparentemente desligadas dos partidos e de como muitos vêem a própria política. E, de facto, vários políticos profissionais ofenderam-se com as bandeiras espanholas agitadas no húmus sagrado da pátria. A provocação simbólica ignorou o cardápio do politicamente correcto. O mesmo maravilhoso povo que há seis anos, a pretexto do futebol, encheu todas as janelas disponíveis com bandeiras verde-rubras, para alegria própria e do poder, fez agora a desfeita ao mesmo poder de desfraldar as amarelo-rubras. Pelas imagens e declarações, percebeu-se que a cena das bandeiras espanholas foi apenas uma provocação, mais para levar os media a explorar o inédito do que por sentimentos antipatrióticos. Os valencianos estão contra o Governo, não contra o seu país. As bandeiras espanholas não escandalizaram porque na fase actual nada escandaliza. Se o primeiro-ministro aparece envolvido em casos atrás de casos, se o Governo faz exactamente o contrário do que prometeu, se a crise se agrava enquanto Sócrates propagandeia diariamente moinhos de vento renovável, porquê escandalizarmo-nos com bandeiras espanholas como repertório de acção de agit-prop popular? O clima político tem-se degradado gradualmente, semana a semana, desde Setembro. Isso nota-se também nos media. Enquanto os noticiários da RTP continuam a missão oficial de gerir os danos que a política governamental causa ao próprio Governo, os noticiários da SIC e da TVI não seguem a mesma reverência perante o querido líder. Nos últimos meses, nas aparições públicas que ainda mantém em agenda, Sócrates aparece como um político acossado. A central de propaganda tentou que as televisões não fizessem perguntas "fora da agenda" ao chefe do Governo. Na altura, a RTP e a SIC aceitaram, mas a TVI noticiou o próprio caso. Agora, que há perguntas inconvenientes, Sócrates não responde. Foge dos jornalistas, foge das perguntas à vista das câmaras e dos espectadores. E, como se viu na TVI, às 13h10 de terça-feira, está rodeado de seguranças que empurram à bruta os repórteres quando estes fazem perguntas que lhe desagradam, incluindo sobre as bandeiras. É a lei do mais forte, comentou o repórter Amílcar Matos em directo. A prazo, veremos se a lei do mais forte é a dos "gorilas" de Sócrates ou a da liberdade de o mostrar em fuga. Protegido pelos empurrões dos guarda-costas, Sócrates em fuga realça o carácter de propaganda das mesmas "TV opportunities" de sempre a que ele ainda vai: fala do palanque, com cenário e discurso preparados, repete no final aos jornalistas o auto-elogio que fizera no palanque (que ou é sobre as energias renováveis ou é sobre as energias renováveis) e foge depois a perguntas sobre a crise, o desemprego, as falências, a dívida externa, a possível recessão, as bandeiras em Valença, os prémios do seu Mexia, os casos incríveis em que esteve ou está pessoalmente metido. Estas marcantes imagens televisivas de uma acção contra o Governo por cidadãos agitando bandeiras estrangeiras e de um primeiro-ministro fugindo da realidade por via de empurrões de guarda-costas retratam a situação do país: um barril de pólvora em cima de um pântano sistémico.»

Nova Aliança, 15 de Abril de 2010

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