12.4.10

O novo Sherlock Holmes e a conta do recém-nascido

16 de janeiro - Assisto a "Sherlock Holmes", o último filme de Guy Ritchie. Gostyo pouco de caricaturas e prefiro sempre os originais. Falo de Tarantino e, já agora, falo do Sherlock Holmes lendário, criado por Arthur Conan Doyle há mais de cem anos. Li as histórias na idade certa; e, depois, com uma gratidão infinita, vi a materialização do herói na composição magistral de Jeremy Brett, que legou o Sherlock Holmes definitivo (e inultrapassável!!) em dezenas de episódios filmados pela televisão britânica nas décadas de 80 e 90. Quem viu, não esquece: Brett não representa Sherlock Holmes; Brett é Sherlock Holmes. De tal forma que, dizem as más línguas, enlouqueceu com o papel. Acontece aos melhores.
O "Sherlock Holmes" de Ritchie diverte e Robert Downey Jr. é estimável como ator. Mas o seu Sherlock, de autêntico, só conserva o nome, embora fosse mais apropriado chamar-lhe "Indiana Holmes": ele corre, ele salta, ele luta. Não tem chicote, mas quase. No meio do frenesim, perdeu-se o essencial: um detective que era puro intelecto, um mestre da dedução lógica que desvendava crimes com a mesma elegância imóvel com que fumava o seu cachimbo.
Sem falar de um pormenor que escapa a Ritchie: o Sherlock de Conan Doyle é, no sentido preciso do termo, o primeiro existencialista moderno, consumido pela angústia do "spleen" urbano: uma angústia que ele tenta aliviar com as substâncias possíveis e a resolução de casos impossíveis. No fundo, duas formas de vício que cumprem o mesmo propósito: impedir que uma mente monstruosamente brilhante se devore a si própria. Conheço casos.
18 de janeiro – Raciocinemos um pouco: o que falta para inverter a baixíssima taxa de natalidade em Portugal? Vontade? Fertilidade? Emprego? Nada disso: faltam exactamente 200 euros, o montante que o Governo vai depositar na conta de cada recém-nascido e que este poderá levantar aos 18 anos - se, ao que percebi, entretanto completar a escolaridade obrigatória.
Bastaria isto para sairmos à rua numa manifestação de apoio. Quantas crianças trocaram precocemente a escola por uma vida de errância graças à inexistência de estímulo material? Ao contrário do que habitual e apressadamente se afirma, os trágicos resultados nacionais a Matemática, Português e etc. não se devem ao facto de os meninos e as meninas não saberem nada de coisa nenhuma, mas ao desânimo de quem sabe não ter 40 contos dos antigos à espera no fim do liceu.
Daqui em diante, o abandono escolar será uma memória difusa. Valerá a pena aguardar 18 anos para ver milhares de jovens iniciarem carreiras repletas de "empreendedorismo" e risco, munidos com o portentoso trunfo profissional que é o diploma do 12.º e os 200 euros (fora juros) que o Estado lhes deu. O que aconteceria se o Governo ousasse estipular donativos graduais para as crianças que adquirissem uma licenciatura (230 euros, por exemplo), um mestrado (245) ou um doutoramento (252)?
Contudo, tal como está, a medida ‘já’ é excelente. E possui a vantagem adicional de servir, nas palavras oficiais, de "incentivo à poupança". Pelos vistos, o Governo dispõe de indícios de que os progenitores nacionais médios são demasiado apalermados para se lembrarem sozinhos de abrir uma conta em prol da descendência. Ou seja, as famílias não poupavam porque não lhes ocorria.
Agora, por obra da generosidade governamental, não há esquecimento possível: os pais poderão poupar, poupar imenso, poupar tanto que os 200 euros virtuais que a criança recebe à nascença talvez alcancem os reais milhares que a criança nasce já a dever, por conta de um défice que medidas assim maravilhosas multiplicam e justificam em pleno.

Nova Aliança, 4 de Março

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