30.1.15

Os culpados

Passos Coelho é suspeito de ter metido umas facturas de almoços numa ONG há vinte anos. Sócrates é acusado ser corrupto enquanto primeiro-ministro. Para os mesmos comentadores o caso tecnoforma revela “falta de carácter de Passos Coelho”. O caso Sócrates revela “um problema de regime do país”. Os mesmos comentadores. Não há conversa sobre Sócrates que não acabe com alguém a utilizar a expressão “é bem-feito”. Na taberna ou na consultora por igual. É bem-feito por tudo o que fez ao país. É bem-feito porque os políticos deviam ser todos presos. É bem-feito porque o gajo merece. O bem-feito é vingança. Não é justiça. Querem prender os verdadeiros responsáveis pelo estado miserável a que o país chegou? Prendam os dois milhões de portugueses que votaram em Sócrates. Prendam os outros oito milhões que abdicaram do seu juízo crítico e preferiram viver o conto de fadas. Prendam todos os dez milhões de portugueses que continuam a queixar-se que “isto está tudo mal” mas depois não se levantam do sofá para fazer alguma coisa. E mais os outros que se queixam que é preciso “fazer alguma coisa” mas depois não deixam que se faça nada. Votar é uma responsabilidade. Só depois é um direito. Sócrates até pode ser culpado de tudo. Mas a responsabilidade não é dele. É nossa. É que neste país extraordinário continuamos a preferir ser mandados que a fazer qualquer coisa que nos possa responsabilizar. Adoramos ser mandados. Do senhor que fala alto dizemos que é um líder carismático. Do senhor que faz sem pensar dizemos que é um lutador. Do senhor que não tem medo de tomar decisões (mesmo as más) dizemos que é um predestinado. Preferimos ser enganados a que alguém nos chateie com a verdade. Preferimos delegar a responsabilidade das nossas vidinhas ao estado e aos outros. Somos assim. Uns palermas. Centenários palermas. E quando a coisa corre mal explicamos no café que é bem-feito. É culpado. Culpado. Na melhor lógica do "rouba mas faz" Sócrates é culpado não do roubo mas de ter roubado sem fazer. É bem-feito? Bem-feito para quem? Saber que um homem está preso sem ter sido julgado ajuda em quê? Há uns anos prenderam preventivamente um primo meu que matou o pai enquanto ouvia uma canção dos The Doors. Isto alegadamente, já que ninguém conseguiu encontrar o álbum. Bem, prenderam o meu primo porque havia risco de fuga, aliás confirmado por uma das moças que trabalhava para ele no bar selecto que tinha para os lados de Quintanilha; risco de fuga associado a uma ideia fixa que ele tinha desde pequenino, que eu lembro-me bem de ele o dizer já quando incendiávamos cães vadios motivados pelo excesso de tempo livre quando a escola era só de manhã e o professor não nos escolhia para explicações individualizadas ao colo durante a tarde, que consistia em dormir com a mãe sem o pai estar ali a incomodar, visto que era um senhor muito peludo. Foi preso preventivamente e, inadvertidamente, acabou por ser acusado de matar um guarda prisional, que apesar da mania de dizer “graças a Deus” por tudo e por nada, até era boa pessoa mas desastrada, já que tropeçou no pé do meu primo e caiu na bigorna guarnecida com picos em chamas esquecida das filmagens de um filme snuff que o meu primo tinha rodado no pequeno-almoço comunal anterior. O meu primo nem nunca foi pessoa particularmente violenta, mesmo nos combates organizados entre claques de futebol, uma actividade recreativa como qualquer outra das patrocinadas pela junta de freguesia e que acabou por lhe valer a alcunha de Triturador; como dizia, não é violento, é só feitio, já que é um tipo assim para o aguerrido, combativo, mas um doce de pessoa com um sentido de humor muito corrosivo, como aquela suástica tatuada na testa demonstra a quem conhece o que lhe vai no coração. Nós bem tentamos, apelamos, escrevemos muitos artigos e até conseguimos demonstrar aos vizinhos que havia uma agenda escondida na justiça e que esta consistia em usar o caso mediático do meu primo para ocultar a bandalheira que havia no quiosque da Dona Fernanda correspondendo ao tráfico de cromos contrafeitos do Euro2004. Essa vergonha e aquele caso do Arménio que continuava presidente do rancho folclórico quando toda a gente sabia que o Arménio tinha comprado cromos no quiosque para a caderneta da filha. Isso não queriam eles que se andasse a divulgar, por isso incriminaram o meu primo, só porque ele bebeu o sangue do pai, uma prática comum em vampirismo, que, como se sabe, não é crime. E a necrofilia também não é crime, o guarda já estava morto e estava, que diferença fazia esperar mais um bocadinho para embalsamar o corpo? O meu primo foi até considerado o Nelson Mandela de Moimenta, na luta pela liberdade e justiça num país dominado pelos lóbis dos poderosos como o Arménio, que por ter três vacas já se acha mais importante do que as pessoas que têm que ganhar a vida a alugar gajas num bar. É por isso que eu não acredito na justiça e acho que o regime está podre. Nova Aliança, 11 / dezembro / 2014

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