16.11.11

O último filme de Woody Allen

19 de Setembro - Woody Allen tem filmado na Europa. Mas a Europa parece ignorá-lo. Eu esperei que "Meia Noite em Paris" chegasse a Portugal.
Veio agora e fui vê-lo. Chegou num Renault dos anos 20 e levou-me para o melhor filme de Woody Allen desde "Crimes e Pecados" (1989). Surpreendidos? Curiosamente, é sempre a mesma coisa: não há filme de Woody Allen que não transporte o mesmo descontentamento. O descontentamento do presente.
Esse descontentamento tem vários nomes, em vários filmes. Em "Stardust Memories - Memórias" (1980), filme pouco citado e pouco amado, chama-lhe Woody "a melancolia de Ozymandias", uma referência ao poema de Shelley no qual um antigo viajante encontra uma estátua de Ozymandias, "rei dos reis", perdida nas areias do deserto.
A melancolia de Woody expressa a perplexidade de Shelley: como é possível alimentar qualquer vaidade sobre a existência terrena quando a morte e o esquecimento são certos? Trata-se de uma questão gélida porque Woody Allen exclui a hipótese literalmente sagrada: a hipótese de um Deus onipresente e onipotente, que confere à passagem terrena um propósito e um sentido.
Mas a questão que devemos colocar é: haverá propósito? Ou então: haverá sentido? Parafraseando as palavras do Prof. Levy em "Crimes e Pecados" (que, sintomaticamente, se suicida no final), são os seres humanos que conferem propósito e sentido às suas vidas; e fazem-no através de coisas tão mundanas como o amor, a amizade, a arte, o trabalho --e a esperança de que talvez as gerações futuras possam saber mais.
Repito: propósito e sentido. É exatamente o que falta a Gil em "Meia Noite em Paris" (soberbo Owen Wilson). Ele, roteirista em Hollywood com assinalável desprezo por Hollywood, visita Paris com a noiva e os futuros sogros. Para ele, Paris é uma festa. Melhor: Paris era uma festa, uma "festa móvel", tal como Hemingway a descreveu no famoso relato dos anos 20. O presente é apenas uma pálida imagem desse tempo ‘jurássico’.
Difícil discordar. Sobretudo para quem leu "Paris é uma Festa" com grata voracidade. E se o fizemos na adolescência, a coisa piora: será possível ser tão pobre e tão feliz, perguntava eu nessa idade, abismado pela vitalidade da prosa límpida de Hemingway?
É possível, dizia-me ele, quando amamos o que fazemos: existe no trabalho bem feito uma gratificação existencial que suplanta qualquer luxo. Era --e é-- uma grande verdade, que só o tempo acabaria por confirmar.
Hemingway foi o meu Virgílio. Imaginava-o a almoçar no Deux Magots e na Brasserie Lipp. (O Michaud era mais caro --mas, espreitando pela vitrine, era possível ver James Joyce a almoçar com a família).
Bebia muito: xerez seco e, nos dias especiais, uma garrafa de Pouilly-Fuissé. Comia ainda melhor e com pouco dinheiro: "pommes à l'huile", ostras "marennes" (melhores que as "portugaises", dizia Hemingway, para me provocar), trutas "au bleu".
Quando o bolso apertava, ficava em casa, a trabalhar, onde havia tangerinas e castanhas assadas. Ou, nas visitas ao salão de Gertrude Stein, ameixas escuras e amoras silvestres.
Foi Miss Stein, aliás, quem me deu o mais importante conselho literário: só ler livros verdadeiramente bons ou verdadeiramente maus. São os únicos que ensinam alguma coisa.
Woody Allen também leu "Paris é uma Festa". E também o viveu. E o que impressiona em "Meia Noite em Paris" é a apropriação criativa da idealização de Hemingway --essa "idade de ouro" que ressuscita com as doze badaladas para resgatar Gil do descontentamento do seu presente, transportando-o para o passado.
Gil vai. Vai e conhece Zelda, Scott Fitzgerald, Cole Porter e Hemingway "himself", que fala como o verdadeiro escrevia: em golfadas de romantismo e fanfarronice. Mas também conhece Adriana (Marion Cottillard, "ma chérie"), que partilha com Gil a mesma nostalgia pelo passado. Só que, para ele, o passado é Paris nos anos 20. Para ela, que vive nos anos 20, a verdadeira nostalgia é Paris na Belle Époque.
E quando ambos recuam ainda mais e vão visitar a Belle Époque ao Moulin Rouge de Toulouse-Lautrec, encontram Gauguin e Degas, descontentes com a Belle Époque --e suspirando pelo Renascimento de Ticiano e Michelangelo.
Vamos recuando, sempre e sempre, para evitar o descontentamento do presente. Mas essa forma de escape não é apenas ilusória porque todas as "idades de ouro" são sempre um tempo presente e, por isso, descontente para quem as habitou. Esse escape permanente impede Gil de viver no seu presente. E de fazer as escolhas que dão sentido e propósito à sua vida.
Não que essas escolhas sejam garantia de nada. Afinal, o descontentamento da nossa condição é erradicável --e constitui o cimento filosófico do cinema de Woody Allen.

Nova Aliança, 30 / Setembro / 2011

Sem comentários: