16.4.13

Grandes leituras

Já lá vai o tempo em que, de quinze em quinze dias, reservava um fim-de-semana para os livros policiais. Ponto prévio: se não gosta de literatura policial, ou se pura e simplesmente nunca leu literatura policial, pode continuar a ler este texto. De tempos a tempos, volto ao meu autor preferido: Rex Stout. Os seus livros valem pela literatura e não pelas histórias neles narradas. Experimente levar alguns livros consigo e verá como encontrou o melhor meio de aplacar mais de um mês de insónias com a figura, as investigações, os tiques, as obsessões e as vitórias fulgurantes de Nero Wolfe. Li-os praticamente todos há alguns anos, mas perdi uns e emprestei outros, deixei alguns em lugares que já não existem. Não comecei com ‘Picada Mortal’ mas com ‘A Caixa Vermelha’ e os mais lidos, até hoje, foram ‘A Montanha Negra’ e ‘Terror a Prestações’. Nero Wolfe pesa cerca de 150 quilos, nunca sai de casa em investigação, vive numa casa na Rua 35, NY; o seu tempo divide-se entre as refeições e a cozinha, a leitura e as orquídeas; o resto do tempo é dedicado ao trabalho de detective e ao consumo de cerveja. Sair de casa, praticamente nunca – e para trabalhar, impossível. Das 9 às 11 e das 16 às 18, orquídeas. As histórias são narradas por Archie Goodwin, o seu secretário particular e detective-adjunto. O que acontece em ‘A Montanha Negra’ e em ‘Terror a Prestações’ é que Nero Wolfe sai de casa. Não é a única vez, há excepções garantidas, desde ‘Caçada a Mr. X’ a ‘Gambito’. Mas em ‘A Montanha Negra’, Wolfe vai até à sua natal Montenegro, na então Jugoslávia, para perseguir os assassinos do seu amigo Marko Vukcic; e em ‘Terror a Prestações’ é obrigado a sair de casa para perseguir e eliminar o seu inimigo fatal, ‘X’, aliás Arnold Zack, o génio do mal que lhe telefonara em três livros anteriores e que em ‘Caçada a Mr. X’ lhe mandara destruir as estufas de orquídeas. É sacrilégio, para qualquer leitor de Stout (que não se dedicou apenas a Nero Wolfe), catalogar os seus hábitos e peculiaridades –desde a sua aversão à "histeria feminina" (‘alguma’ misoginia, decerto), à incompreensível obsessão por ovas de sável, da relação com o sargento Cramer à paixão pela cerveja, da sua cultura enciclopédica à paixão pelo amarelo. Isto porque é inadmissível que não sejam conhecidos. Archie Goodwin (há um certo número de traduções daninhas em que eles se tratam por ‘tu’; nunca podia ter acontecido) , o seu narrador natural do Ohio, merece também cuidado, não só pela sua relação com a milionária Lily Rowan ou pela paixão pelo basebol, mas também por ser um janota americano dos anos cinquenta que assiste com paciência e arrogância o génio de Wolfe – é o próprio Wolfe que se assume como o mais talentoso de todos os detectives privados do universo (com a excepção de um, francês, que nomeia ou a quem recorre ocasionalmente). Nas páginas dos livros de Rex Stout encontramos os momentos mais significativos da história recente dos Estados Unidos, o que faz deles não só uma leitura apaixonante literariamente, mas também histórica e sociologicamente. Neste caso, estamos perante os problemas da segregação racial, os preconceitos mais profundos e dificeis de erradicar. Como sempre, as opiniões de Nero Wolfe são interessantes, afinal estamos perante um leitor infatigável e uma pessoa superiormente culta. Uma palavra final relativamente à edição portuguesa. Os livros do Rex Stout costumam estar miseravelmente traduzidos, os livros costumam estar cheios de gralhas tipográficas e a composição parece ter sido feita no intervalo do almoço e não no período normal de trabalho de um profissional. Neste caso e com o tempo, as coisas melhoraram qualquer coisa. Rex Stout merece-o. Ele não é apenas mais um autor de policiais de cordel: é um grande escritor, que merece a melhor tradução para que não se percam os seus imensos recursos literários. Não se incomodem por mim. Tenho noitadas para alguns meses. Experimentem. Nova Aliança, 31 / outubro / 2012

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