16.4.13

Tolerância religiosa

26 de fevereiro - Um pedaço de papiro levou uma estudiosa americana a dizer que Jesus foi casado. O papiro, provavelmente do século 4 d.C., seria parte de um evangelho apócrifo e prova substancial de que Jesus não teve vida celibatária. Verdade? Mentira? Acompanhei as notícias com curiosidade mediana. Mas o que mais me espantou nessa história sobre a alegada mulher de Jesus foi a tranquilidade com que o Ocidente lidou com o assunto. Ao contrário do que por vezes sucede, não vi mortos nem vi feridos. Não vi embaixadas atacadas e destruídas. Os cristãos não vieram para a rua pedir a morte da professora Karen King pelas suas "blasfémias" contra Jesus. A universidade de Harvard não precisou de reforço policial para evitar um massacre. A descoberta foi apresentada em Roma, discutida entre os eruditos e posteriormente desacreditada. Ou não. Terá isso algum interesse? Talvez não. É até provável que amanhã surja um novo pedaço de papiro com uma nova mulher no enquadramento. Ninguém mata ou morre por causa disso. Se, por mera hipótese, houvesse uma descoberta semelhante e igualmente polémica sobre a vida do Profeta Maomé, não é preciso descrever o cortejo de sangue que viria a seguir. Um cortejo que, admito, já foi nosso e bem nosso: há 500 anos atrás, o lugar da professora Karen King não seria na universidade de Harvard. Seria na fogueira da Inquisição. Mas passaram 500 anos. O Cristianismo teve a sua Reforma e Contra-Reforma; confrontou-se com o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. Depois de todas as guerras religiosas que devastaram a Europa moderna em nome da fé verdadeira, entendeu-se que a "fé verdadeira" é um assunto dos crentes, não do Estado. A liberdade de culto passou a ser uma liberdade inegociável na maioria das sociedades ocidentais - a promessa de que ninguém seria perseguido por professar determinado credo. Mas a liberdade de pensamento e expressão também --a promessa de que ninguém seria perseguido por criticar ou ridicularizar a fé de terceiros. Infelizmente, esta conquista secular foi esquecida pela justiça brasileira, que determinou que o Google retirasse do Youtube-Brasil o filme "A inocência dos muçulmanos", a pedido da União Nacional Islâmica. Porque o filme ofende os muçulmanos e alimentou atos de violência extrema em todo o Médio Oriente? Acredito que sim. Como acredito que milhares de outros filmes, ou livros, ou quadros, ou peças de teatro, ou anedotas de café, ou meros comportamentos quotidianos ofendam muitos muçulmanos. A questão, porém, não é essa. A questão está em saber como é possível que um tribunal de um estado laico possa exercer censura em nome de uma religião particular. O filósofo francês Pascal Bruckner ajuda a entender o gesto. Sobretudo com o seu "A Tirania da Penitência - Ensaio sobre o masoquismo ocidental" (Difel). O título e o subtítulo dizem tudo: o Ocidente vive hoje uma orgia de masoquismo que o faz ter repulsa de si próprio, dos seus valores fundamentais, das suas liberdades inegociáveis. E como explicar essa quebra de confiança, esse torpor niilista e relativista? Pelo passado. Pela forma neurótica como o Ocidente retrata o seu passado. Quem somos nós para afirmar a importância dos valores ocidentais quando o Ocidente produziu incontáveis crimes - o genocídio de populações indígenas no Novo Mundo; o tráfico de escravos; o comunismo e o nazismo; o Gulag e o Holocausto? Curiosamente, o Ocidente que gosta de se autoflagelar pelos crimes do passado é também o mesmo que se esquece da sua própria capacidade para os superar e reprimir. Como afirma Pascal Bruckner, a Inquisição existiu; mas ela está diretamente ligada ao Iluminismo. A escravatura existiu; mas ela está diretamente ligada aos movimentos abolicionistas. O comunismo e o nazismo existiram; mas ambos estão diretamente ligados ao triunfo das democracias liberais no século 20. A singularidade do Ocidente não está na criação de monstros --todas as civilizações o fizeram e fazem. A singularidade está na forma como foi capaz de gerar as armas, teóricas ou bélicas, para enfrentar e derrotar esses monstros. Essa capacidade deveria ser causa de orgulho e confiança --e um imperativo suplementar para que o Ocidente defendesse os valores positivos em que acredita: a separação de poderes; a liberdade de pensamento e expressão; a tolerância perante diferentes concepções religiosas ou de vida; e etc. etc. Fatalmente, não há orgulho nem confiança. Apenas uma vontade psicótica de alimentar um certo nojo-de-nós-próprios, ou seja, uma náusea profunda pelos direitos fundamentais que foram conquistados depois de sangue, suor e lágrimas, como dizia Churchill num discurso célebre. A pergunta, formulada por Pascal Bruckner, é inevitável: como podemos ser respeitados pelos outros se já não somos capazes de nos respeitarmos a nós próprios? Esta será a pergunta que irá definir o futuro de uma civilização. Nova Aliança, 6 / março / 2013

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