18.6.14

Fotografias e os crentes

12 de janeiro - 1. Fotografias: haverá alguém que não goste de olhar para elas? Em tempos arcaicos, talvez. Há quem diga que o maior tesouro que trouxe da casa dos pais eram as fotos de família. Álbuns e álbuns com fotos em preto e branco, algumas coloridas (manualmente, claro) e impressas em cartão grosso. Todas elas insubstituíveis. Estranho tempo, esse, em que os retratos valiam tanto como ouro. Ou até mais que ouro. Hoje vivemos o supremo paradoxo: nunca se tiraram tantas fotos mas nunca elas tiveram tão pouco valor. O jornal "Guardian" avisa que 2014 será o ano em que o mundo vai bater recordes no número de fotos tiradas: qualquer coisa como 3 biliões. Esse excesso não pode ser coisa boa: a facilidade com que hoje se tiram fotos é diretamente proporcional à facilidade com que nos esquecemos delas. Uma amiga, aliás, contava-me há tempos uma história instrutiva: em três anos de maternidade, ela acumulara mais de mil fotos do primeiro filho. Até descobrir que não tinha nenhuma para mostrar em papel ou em moldura -permaneciam todas na memória do computador, ou na máquina, ou no telemóvel. À espera de melhores dias. Três biliões de fotos para 2014, diz o "Guardian". E, no fim de contas, é como se o mundo não tirasse uma única foto que realmente importe. 2. Só existem dois tipos de pessoas que se preocupam genuinamente com Deus: os crentes e os ateus. Os primeiros por razões óbvias. E os segundos por razões ainda mais óbvias: a não crença, sobretudo quando levada a excessos de negação, converte-se sempre numa forma de crença e até de afirmação. O escritor Kingsley Amis é um bom exemplo. Um dia perguntaram-lhe por que motivo ele não acreditava em Deus. Amis corrigiu a pergunta e ripostou: "Não é bem não acreditar; é mais detestá-lo". Haverá forma mais sofisticada de fé na transcendência? Não admira por isso que já existam igrejas ateias nos quatro cantos do mundo ocidental. Leio que a moda começou em Londres, com a Assembleia de Domingo. A autora do artigo publicado no site Salon, Katie Engelhart, foi assistir a uma "celebração". E encontrou um mimetismo perfeito das celebrações religiosas tradicionais, com um "pastor", um "sermão", momentos de "oração" -no fundo, a busca de um sentido de "comunhão" para o rebanho ateu. A coisa fez sucesso em Londres, espalhou-se pelo Reino Unido, emigrou para os Estados Unidos (e para a Austrália) e, palavra de honra, até já teve a sua primeira "reforma protestante": em Nova Iorque, dissidentes da Assembleia de Domingo resolveram fundar a sua própria "igreja" por entenderem que a original não era suficientemente ateia. Imagino que, no futuro, outras "igrejas" se seguirão, dispostas a espalhar a "palavra" (mas qual "palavra"?) em adoração ao "não-deus". O fenómeno é interessante e só confirma o que os clássicos da ciência política sempre escreveram sobre o assunto: a negação da religião estabelecida não liberta os homens da sua condição de "animais religiosos". Que o diga o filósofo Raymond Aron, por exemplo, para quem o nazismo e o comunismo não eram mais do que "religiões seculares", dispostas a oferecer aos seus "fiéis" o Reino da Raça (ou do Proletariado) em substituição do Reino dos Céus. As igrejas ateias, pelo menos, sempre me parecem mais inofensivas e até divertem na sua óbvia palhaçada. Nova Aliança, 23 / janeiro / 2014

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