18.6.14

Ilídio Matos e Alice Munro

A Espuma dos Dias 4 de outubro – Os verdadeiros leitores dificilmente esquecerão alguns nomes. Nem necessitam de ser autores, à volta da ‘produção’ de um livro surgem nomes incontornáveis. Nomes que nunca desaparecerão. Conhecemos os seus nomes: editores que arriscaram a vida e os cabedais, grandes revisores e leitores, excelentes livreiros, notáveis capistas – e agentes literários que, por trabalharem na ‘sombra’, quase ninguém conhece. Ilídio Matos, que nos deixa aos 84 anos, foi, durante anos, esse agente literário. Primeiro, em part-time atrevido; depois, ocupação principal, representando autores que iam de Agatha Christie a Hemingway, de Caldwell a Patricia Higshmith. Nas feiras internacionais de direitos (Frankfurt, Londres, etc.) ele foi, durante anos, o agente português – um George Smiley da nossa pequena edição: discreto (sabia guardar segredos), divertido, cauteloso, prudente, generoso e possuído pela loucura dos livros. Depois dos oitenta, Ilídio Matos continuou a trabalhar; era o seu único vício, além do anonimato. Ele merece as homenagens que lhe são devidas. 10 de outubro - Alice Munro acaba de ganhar o Nobel da Literatura 2013 e é talvez a melhor contista da actualidade. Editada em Portugal pela Relógio d’Água, estreou-se em 1968, mas só foi revelada por cá em 2008. Após as antologias Fugas (de 2004), O Amor de uma Boa Mulher (1998) e A Vista de Castle Rock (2006), edita-se O Progresso do Amor, de 1986. São onze contos sobre as ilusões e desilusões amorosas de homens e mulheres comuns, habitantes sobretudo do Ontário rural, espaço natal e de eleição da autora canadiana. Na maioria dos enredos, trata-se, como refere uma personagem no seu caso individual, de «erros de fuga», confundíveis com erros passionais. Brechas nas ações e cenários quotidianos das personagens que abrem caminho a ligeiríssimos movimentos das placas subterrâneas que sustentam as vidas, por sua vez fonte de intensos, mas subtis, choques à superfície. A grande ficcionista Joyce Carol Oates diz que Munro «escreve contos com a densidade — moral, emocional, por vezes histórica — dos romances de outros autores». A própria esclareceu que os desenvolve como se sentisse «a tensão numa corda, ciente apenas de aonde ela está atada». O que mais espanta é a exímia conjugação de contenção de meios e riqueza densa do mundo interno de cada personagem, explorado sempre na terceira pessoa do singular («Ela, que sempre tivera um ar pálido, sedoso e dócil, mas difícil de seguir, como uma marca de água»; Edgar está sentado «como um adorno polido, quase sempre imóvel»). Munro não é dada a grandes experimentalismos técnicos e não hesita sequer em abusar das metáforas ou da adjetivação. Nela, tudo surge com uma espontaneidade e um talento desarmantes. Notável na elasticidade das frases e dos diálogos, desenvolve estruturas pragmáticas a partir de uma luminosa atenção aos detalhes. Nada é estático, ainda que a evolução das personagens (a vida «a recuar como uma fotografia rasgada e enrolada sobre si, mostrando o que sempre tivera por trás») surja com a densidade de uma espessa camada de neve. No brilhante «Ataques», que só por si vale o livro, o homicídio-suicídio de um casal serve, afinal, para explorar a enigmática personalidade de uma sua vizinha. Indiretamente, Munro descreve a forma direta e dramática como as vidas de gente comum se encontram ligadas, pelo banal e pelo extraordinário. Nos contos de Munro, os catalisadores da acção podem ser movimentos de fuga a um matrimónio, a um passado, aos laços familiares ou às limitações provocadas pela doença ou pelo envelhecimento (como em «Fugas»). Por vezes, resultam de impulsos de identificação, concretização ou repulsa de fantasias (todas elas femininas, em O Amor de Uma Boa Mulher). Mas o que marca a originalidade destas histórias é a extrema atenção dada a pequenos pormenores (lembranças, palavras ou factos) que desencadeiam e iluminam a compreensão do universo de cada personagem. Tal como diz Robin, a protagonista de «Truques» (Fugas), «basta movermo-nos um centímetro para aqui ou para ali e estamos perdidos». A intuição de Alice Munro permite-lhe determinar e descrever esses epicentros de crise. No brilhante «Podre de Rica» (O Amor de Uma Boa Mulher), a personagem Karin descreve-se como «algo de imenso, de tremeluzente e autónomo, com picos de dor em certos sítios, e no restante uma extensa e monótona planície». São assim as personagens de Munro: imensamente iguais a nós e dramaticamente diferentes. Nova Aliança, 17 / outubro / 2013

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