18.6.14

Os tesourinhos deprimentes e os piropos

8 de Setembro - Talvez por terem menos dinheiro para gastar nas eleições, a ingenuidade dos cartazes tem animado esta campanha autárquica. Eis um bom exemplo de como a crise aguçou o engenho. Acontece isto quando a tecnologia facilita a feitura da propaganda. Alguns resultados têm sido iguais aos da velhota espanhola de Borja que "restaurou" uma pintura de Cristo: artisticamente, um desastre, mas todos falaram disso... Como a propaganda eleitoral é exatamente para que se fale, vivemos talvez um grande momento. Em Torre de Moncorvo, Carla Neves, candidata a uma das freguesias, abrilhantou um dos cartazes com uma foto - vestido rosa quase quase a cair e cabelo armado - parecendo de baile de debutante de há cinquenta anos atrás. Ela própria admitiu no Facebook que a foto era "horrível", mas, graças a ela, passou a ser "a pessoa mais amada do meu querido Portugal." Exagero, talvez, mas que o eco (ou pelo menos a photoshop da candidata) chegou longe, chegou. A conclusão essencial a tirar é que a crise descentralizou as campanhas eleitorais e que os candidatos locais podem ver nisso uma janela (ou cartaz) de oportunidades. Há quem apelide os cartazes de "tesourinhos deprimentes". Mas estes podem ser a devolução aos candidatos da sua condição de nos convencerem. Por mais toscos que sejam os de hoje, são mais democráticos do que as resmas mandadas pela sede do partido, com fotos perfeitas e palavras de ordem não discutidas. 10 de Setembro - A grande vantagem do mês de agosto é que , como quase toda a gente está de férias, qualquer assunto maluco pode virar capa de jornal. Este ano surgiu o convite para a promoção de legislação contra o piropo. Certamente com pouco que fazer e na falta de livros e jornais, duas senhoras mostraram-se seriamente preocupadas com os criminosos que elogiam a anatomia feminina na via pública. Garantem que os elogios são "machistas" e ofensivos para a mulher e, naturalmente, exigem medidas adequadas. Claro que, para consumo exterior ao movimento, "piropo" diz-se "assédio verbal" e "proibir" diz-se "abrir o debate". E que se estranha a exclusão, no debate entretanto aberto, do assédio verbal entre homossexuais. E que se duvida da pertinência em discutir semelhante irrelevância. E que toda a gente já dedicou ao problema a galhofa que o problema merece. E que… Falta é constatar o óbvio: na falta de assunto, qualquer assunto é assunto. Depois da legalização do aborto (aprovado), pela institucionalização do casamento gay (aprovada), pela adopção de crianças por casais do mesmo sexo (em vias de facto), pela abolição das touradas (uma palermice regional), pela legalização das drogas leves (ninguém liga) e pela perseguição dos transgénicos (idem), hoje "debate-se" o piropo como amanhã talvez se "debata" a erradicação do pião a pretexto dos perigos do metal. Não sendo uma tragédia humanitária, dá pena. E dá vontade de rir. 14 de Setembro – Em grande plano, o rival eleitoral de Angela Merkel, Peer Steinbrück, apareceu na capa de uma revista com o dedo médio estendido, fazendo o célebre gesto obsceno. Como alguém já referiu, o escândalo é bom para lembrar uma das poucas superioridades lusitanas. Vejam a fotografia e observem o alemão: estende o médio, numa mão onde os outros dedos se limitam a encolher... Nem precisa de ser alemão, quase todo o mundo faz o gesto da mesma forma mole. A peineta espanhola, o doigt d"honneur francês, o rude finger inglês são todos como o agora famigerado Stinkfinger do político alemão: preguiçoso. A linguagem gestual devia ser mais respeitada. É ou não verdade que foi a mão e a forma dos dedos humanos que nos permitiram evoluir. Mas uma coisa é certa, só os portugueses fazem aquele gesto de forma impecável. Há agora a mania de, ao falar, fazer aspas com os dedos, como que pedindo desculpa: "Não é bem isso que queremos dizer..." Ora, quando se estende o dedo médio a alguém, aquilo que queremos dizer é mesmo aquilo, mostrar um sexo masculino. Sendo sempre mal-criado, ao menos que o digamos de forma clara - e isso só os portugueses fazem. O nosso dedo médio estendido é como o dos outros, universal. Mas só os portugueses dão um toque de classe, erguem as falanges dos dedos indicador e anelar, enroladas com as falanginhas e as falangetas, fazendo duas rodas onde se apoia, como o cano de um canhão, o dedo médio. O simbolismo da artilharia fica claro, a solidariedade dos dedos é notável. E querem os alemães dar-nos lições de organização e qualidade... Nova Aliança, 17 / setembro / 2013

Sem comentários: